Ó matemáticas severas, não vos esqueci desde que vossas sábias lições, mais doces que o mel, infiltraram-se no meu coração, qual onda refrescante.
Aspirava instintivamente, desde meu nascimento, a beber em vossa fronte mais antiga que o sol, e continuo ainda a piscar o átrio sagrado de nosso templo solene, eu, o mais fiel de vossos iniciados.
Havia qualquer coisa de vago no meu espírito, um não sei que de espesso como a fumaça; mas eu soube transpor religiosamente os graus que levam a vosso altar e vós dissipastes esse véu escuro, assim como o vento dissipa uma tempestade.
Colocastes em seu lugar uma frieza excessiva, uma prudência consumada e uma lógica implacável. Com a ajuda de vosso leite fortificante, minha inteligência desenvolveu-se rapidamente, tomando proporções imensas em meio à claridade com que presenteais, prodigamente, quem vos ama de um amor sincero, Aritmética ! álgebra ! geometria! trindade grandiosa ! triângulo luminoso ! quem vos desconhece é um insensato ! este mereceria a provação dos maiores suplícios; pois demonstra um cego desprezo em sua ignorante apatia; mas quem vos conhece e vos aprecia nada quer dos bens terrestres; contenta-se com vossos prazeres mágicos; e carregado por vossas asas sombrias, deseja apenas subir com um voo ligeiro, construindo uma espiral ascendente rumo à borda esférica do céu.
A terra só lhe mostra ilusões e fantasmagorias morais; porém vós, matemáticas concisas, pelos encadeamentos rigorosos de vossas proposições tenazes e a constância das vossas leis de ferro, fazei brilhar aos olhos deslumbrados um reflexo poderoso desta verdade suprema, cuja marca se percebe na ordem do universo.
Mas a ordem que vos rodeia, representada principalmente pela regularidade perfeita do quadrado, o amigo de Pitágoras, é ainda maior; pois o Todo Poderoso revelou-se completamente, a si e a seus atributos, nesse trabalho memorável que consiste em fazer saírem das entranhas do caos vossos tesouros de teoremas e vossos magníficos esplendores.
Nas eras antigas e nos tempos modernos, mais de uma grande imaginação humana viu seu gênio aterrar-se na contemplação de vossas figuras simbólicas traçadas sobre um papel ardente, qual outros tantos sinais misteriosos, vivos por um hálito latente, que não são compreendidos pela vulgaridade profana, revelação esplendorosa de axiomas e hieróglifos eternos, que existiram antes do universo e permanecerão depois dele.
E ela se pergunta, debruçada ante um precipício de um ponto de interrogação fatal, como é possível que as matemáticas contenham grandezas tão imponentes e verdades tão incontestáveis, enquanto, ao compará-la com o homem, só encontra neste último o falso orgulho e a mentira.
Então, esse espírito superior, entristecido, a quem a nobre intensidade de vossos conselhos faz sentir ainda mais intensamente a pequenez da humanidade e sua incomparável loucura, afunda a cabeça embranquecida na mão descarnada e permanece absorto em meditações sobrenaturais.
Dobra seu joelho à vossa frente e sua veneração presta homenagem a vosso rosto divino, como à própria imagem do Todo Poderoso.
Na minha infância, aparecestes, numa noite de maio, ao clarão da lua, sobre um prado verdejante, às margens de um límpido regato as três iguais em graça e pudor, as três cheias de majestade, como rainhas. Traçastes alguns passos em minha direção, com vosso longo manto flutuando como um vapor, e me atraístes para vossos altivos seios, como se eu fosse um filho abençoado.
E foi então que acorri rapidamente às mãos crispando-se sobre vosso alvo pescoço. Alimentei-me com reconhecimento de vosso maná fecundo e senti que a humanidade crescia em mim e se tornava melhor.
Desde então, ó deusas rivais, nunca mais vos abandonei. Desde então, quantos projetos enérgicos, quantas simpatias que acreditava gravadas nas páginas do meu coração como no mármore não foram apagando lentamente suas linhas configurativas da minha razão desenganada, assim como a aurora nascente apaga a sombra da noite ! Desde então, eu vi a morte, com a intenção visível a olho nu de povoar os túmulos, devastar os campos de batalhas alimentados pelo sangue humano, fazendo crescerem flores matinais sobre as ossadas fúnebres.
Desde então, assisti às revoluções de nosso planeta; os tremores de terra, os vulcões com sua lava ardente, os simum dos desertos e os naufrágios da tempestade tiveram minha presença como espectador impassível. Desde então, eu vi inumeráveis gerações humanas erguerem pela manhã seus olhos na direção do espaço, com a alegria inexperiente da crisálida que saúda sua derradeira metamorfose, para morrerem ao entardecer, antes do pôr do Sol, a cabeça curvada, como flores murchas embaladas pelo soprar lamentoso do vento.
Vós, porém, permaneceis sempre as mesmas. Nenhuma mudança, nenhum ar empestado roça os rochedos escarpados e os imensos vales da vossa identidade. Vossas pirâmides modestas durarão muito mais que as pirâmides do Egito, formigueiros erguidos pela estupidez e pela escravidão. O fim dos séculos ainda verá, em pé sobre as ruínas dos templos, vossas cifras cabalísticas, vossas equações lacônicas e vossas linhas esculturais sentadas à direita vingadora do Todo Poderoso, quando as estrelas afundarem em desespero, como trombas, na eternidade de uma noite horrível e universal, enquanto a humanidade, contorcendo-se, tentar prestar contas ao Juízo Final.
Obrigado pelos inúmeros serviços que me prestastes. Obrigado pelas qualidades singulares com que enriquecestes minha inteligência. Sem vós, talvez eu fosse derrotado em minha luta contra o homem. Sem vós, poderia ter rolado na sujeira e beijado a poeira de seus pés. Sem vós, com uma pérfida garra teriam retalhado minha carne e meus ossos. Mas fiquei em guarda, como um atleta experiente.
Vós me destes a frieza que nasce das vossas concepções sublimes, isentas de paixões. Dela servi-me para recusar com desprezo os prazeres efêmeros da minha breve viagem e para devolver à minha porta as oferendas, simpáticas porem ilusórias, dos meus semelhantes. Vós me destes a prudência incessante que se decifra a cada passo em vossos métodos admiráveis de análise, síntese e dedução. Delas servi-me para derrotar as artimanhas perniciosas de meu inimigo mortal, para atacá-lo por minha vez e para enfiar nas vísceras do homem um punhal agudo que permanecerá para sempre cravado em seu corpo; pois essa é uma ferida da qual ele não se curará. Vós me destes a lógica, que é como a alma de vossos ensinamentos cheios de sabedoria; com seus silogismos, cujo labirinto complicado é cada vez mais compreensível para mim, minha inteligência viu duplicarem-se suas forças audazes.
Com a ajuda desse auxiliar terrível, descobri na humanidade que nada para as profundezas, frente aos escolhos do ódio, a maldade negra e horripilante que vegetava no meio de miasmas deletérios, contemplando seu próprio umbigo. Fui o primeiro a descobrir, nas trevas das suas entranhas, o vício nefasto, o mal! superior nela ao bem. Com essa arma envenenada que me concedestes, fiz descer de seu pedestal, construído pela covardia do homem, o próprio Criador! Rangia os dentes, enquanto sofria o ignominioso insulto; pois tinha como adversário alguém mais forte que ele. Porém deixá-lo-ei de lado, como um pacote de trapos para baixar meu vôo...
O pensador Descarte fazia, certa vez, a reflexão de que nada sólido foi construído sobre vós. É um modo engenhoso de fazer entender que o primeiro recém chegado nunca poderia descobrir imediatamente vosso valor inestimável.
Com efeito, o que pode haver de mais sólido que as três qualidades principais já nomeadas, elevando-se entrelaçadas como uma coroa única, sobre o píncaro augusto de vossa arquitetura colossal? Monumento que cresce sem cessar em cotidianas descobertas em vossas minas de diamantes, e explorações científicas em vossos soberbos domínios. Ó matemáticas santas, que possais, por meio de vosso comércio perpétuo consolar o resto dos meus dias da maldade do homem e da injustiça do Grande Todo!
(Cantos de Maldoror - tradução de Claudio Willer)
(Ilustração: Dalí – construção mole com feijões cozidos)
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