Honório Junqueira era o nome dele. Todo mundo conhecia Seu Honório naquela cidadezinha. Mais afazeres não tinha, vivia de uma considerável herança de família e como a sorte não chega pouco, ainda ganhava um bom dinheiro com o leite da fazenda que era vendido em toda a região. O leite vinha da vaca, que engordava com o capim que vinha da terra. Tudo assim, de mão beijada. Mas não era pessoa de grande ostentação. Vivia recluso em seu casarão. O povo dizia que dentro daquela casa velha, que de idade já ia para mais de cem, tinha pelo menos umas trinta pessoas, mas ele jurava que ali só vivia ele e sua esposa, Dona Cota, como era conhecida por todos. O sobrenome dela, antes de ser Junqueira, ninguém sabia. E ela nem fazia questão de informar. Dizem que nem ela mesma sabia. - Pra que mais nome - dizia ela - se os dois que tenho são mais que suficientes .
Mas o fato é que Dona Cota tinha viajado até a capital para fazer um tratamento de saúde. Era a maldita asma, que piorava com a mudança do tempo e a insistência da poeira que cobria a cidadezinha de meia dúzia de ruas de terra batida. Nos dias que a boiada passava ou que a jardineira 1929 vinha trazer comerciantes, então é que a asma da esposa do Seu Honório ia mesmo ficar ruim.
Quatro dias de viagem até a capital, com outros tantos para voltar, mais os dez que lá ficou, somaram dezoito na matemática do esposo. Mas só na matemática, pois que na solidão e na saudade os dezoito pularam para a eternidade.
Mas o dia da volta havia chegado. Seu Honório fez exceção ao seu recato e chamou até uma bandinha para tocar na porta de entrada do casarão.
Os músicos, que eram todos das redondezas vinham chegando, cada um carregando seu instrumento. A tuba foi a primeira e foi logo se afinando. Sem mais tardar o surdo respondeu. A flauta logo ajuntou e o violino não se fez de rogado. Os pratos estalaram e as notas começaram a animar a entrada do edifício.
Lá dentro só mesmo Seu Honório, apreciando alegremente o burburinho, tentando acalmar sua ansiedade pela chegada da esposa.
Tudo corria como o certo estabelecido até que se ouviu uma voz:
- Não estou gostando dessa gentarada aqui não.
Seu Honório quase caiu da cadeira de balanço, que insistia em enxergar a estrada no horizonte.
- Quem falou isso? Resmungou com raiva pela insolência do intruso e medo daquela voz que lhe soou familiar.
- Fui eu.
- Mas eu quem homem de Deus?
- Eu, Honório.
- Mas Honório sou eu. E não me lembro de ter mais alguém com esse nome aqui na cidade.
- Vai me desculpar - acrescentou a voz - mas eu sou Honório.
- Honório do quê? - Perguntou Seu Honório.
- Honório Junqueira.
- Mas o que está acontecendo? Você entrou aqui sem ser convidado, fica escondido que eu não te vejo com os olhos, usa meu nome e ainda quer o nome da minha família?
- Tudo isso que você falou é meu, não seu- respondeu o outro Honório.
- Olha aqui seu atrevido. Cai fora logo que eu estou esperando minha esposa e não quero ninguém para estragar minha satisfação.
Do lado de fora, os músicos e os mais chegados viam apenas o Seu Honório falar sozinho, gesticulando e esbravejando sabe-se lá com quem. O certo é que já começavam a ficar com medo, pois na cidade não havia um único vivo que não achava que na casa tinha uns que eram mortos.
- Você que vá esperar em outra parada, pois aqui é o meu lugar de espera e a recepção hoje quem vai fazer sou eu. - falou aquela voz que parecia tão doméstica.
- Quem você está esperando?- questionou Seu Honório -.
- E você, a quem está esperando?
- Minha esposa, que há muito tempo não vejo.
- E eu estou esperando a minha, que há muito tempo também não vejo.
- Não vai me dizer que ela viajou para tratamento médico?
- Asma.
- Mas quem foi tratar da asma foi a minha- esbravejou Seu Honório de tal forma que na rua não ficou mais ninguém e a boataria pegou carona no vento e subiu cidade afora.
- A asma é democrática, não pertence a uma pessoa só. respondeu a voz mantendo a serenidade.
- Mas aqui nessa casa só uma pessoa tem asma e é uma mulher e essa mulher é minha.
- Mas se a casa é minha por que sua mulher viria ter asma na minha casa?
- Olha aqui - falou Seu Honório tentando se acalmar - A asma é da minha mulher, a mulher é minha, a casa é minha e faça-me um favor, ou você vai embora ou me arranja uma idéia que me explique o que está acontecendo.
-Só pode ser uma coisa.
Os dois falaram juntos:
- Estamos falando da mesma mulher.
- O nome da minha é Cota.
- O sobrenome da minha é Junqueira.
- Mas esse é o sobrenome da minha Cota.
- E Cota é o primeiro nome da minha Junqueira.
- Então nós dois estamos casados com a mesma mulher há mais de trinta anos?
- É desajuizado. Se fosse uma amante ainda vá lá. Mas ela viveu comigo como esposa.
- E comigo também.
- Mas como pode, enganar a dois homens durante mais de trinta anos?
- E embaixo do mesmo teto?
Seu Honório fez uma longa pausa e de súbito resolveu olhar pela janela. Virou-se para os dois lados da rua e não viu mais ninguém, nem mesmo os músicos. Como se tivesse achado o acontecido voltou-se para o seu interlocutor invisível:
-Descoberto. Você é um fantasma. Não sobrou ninguém na rua, nada, só as moscas e uma cadela vira-lata. Então só pode ser isso, Fantasma. Você é um fantasma.
-Fantasma eu não sou, pois ainda não morri. Vai lá no cemitério e procura o túmulo de Honório Junqueira.
- Eu sei que com esse nome eu não vou encontrar.
- Claro, e é porque eu ainda não morri.
- Não, não é por isso. É porque Honório Junqueira sou eu.
- Como pode ser você se sou eu?
- Espera – falou o invisível – Você pode me ver?
- Se tivesse você sob meus olhos já tinha te matado- Respondeu Seu Honório-.
- Mas eu estou te vendo.
- Isso só pode ser uma coisa.
- Exatamente, então eu devo ser sua alma.
- E eu o seu corpo. Bem, isso resolve o nosso problema.
- A Cotinha não me traiu. Ela é minha.
- De jeito nenhum. É a alma que manda no corpo, portanto a Cotinha é minha.
- Eu sou corpo, é minha.
- Ela é da alma.
Os dois continuaram naquela discussão e nem perceberam que Dona Cota Junqueira havia chegado e ao ver que seu marido gritava com alguém que ela não podia ver e dava socos no ar tentando atingir o invisível, saiu correndo e foi se juntar aos outros habitantes que estavam todos na igreja rezando pelas almas.
(Ilustração: Mia Makila)
O duplo ou o alterego é a própria voz da desconfiança, do medo da perda, do vazio da alma. É dar voz àquele "impostor" que coabita com o sujeito e jamais se contenta em ser um bom aliado coadjuvante; ao contrário, há o prazer sádico de extrapolar as raias da razão e fazer conhecer a loucura do apego e da fragilidade a que está sujeita a própria alma encarcerada. Algo neste conto, talvez a própria alma dele, me fez lembrar Cortázar. Gostei muito! Valeu Sibila. Um abraço. Felipe Moreno
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