No quarto andar dum pardieiro da rua São Bento, encontraram Adolf Hitler, vivo e maltrapilho, trabalhando para um comerciante de blue jeans americanos importados do Paraguay.
Não se sabe como nem por quem foi reconhecido. A verdade é que o ex-fuehrer não teve outro remédio senão bater em retirada. Foi dando nos calcanhares e, antes que atingisse o térreo, já o acossavam escadas abaixo.
O velho nazista, porém, ganhou a rua e embrenhou-se na multidão com tamanha agilidade que ninguém diria tratar-se de um octogenário, muito menos de um depauperado psicopata egresso dum conflito mundial.
Teria virtualmente sumido, não fora a providencial aparição dos agentes de Simon Rosenthal.
De repente, cada office-boy, cada informante, cada balconista, cada jornaleiro, cada bilheteiro, cada manequim era um judeu escapo do nazismo.
Vendo que não alcançaria o Anhangabaú para jogar-se debaixo de um ônibus, Hitler, a ponto de ser agarrado pelos transeuntes semitas, driblou um rabino e, em súbito desvio para a esquerda, entrou no Martinelli pelo corredor dos elevadores.
A multidão aglomerou-se na porta do edifício, enquanto dois policiais penetraram no túnel atrás do fugitivo.
Voltaram de mãos abanando.
Hitler conseguira tomar um dos oito elevadores em funcionamento e já estaria a dezenas de andares acima.
Um clamor tonitroante levantou do povo. Queriam invadir o prédio e vasculhar tudo, mas os policiais recebiam grossos reforços e afastavam a população a golpes de cassetete e rajadas para o ar.
Em poucos minutos, o paleontológico edifício estava militarmente sitiado.
Tropas de choque ocuparam a saída dos cinqüenta poços de elevador, inclusive aqueles que já não tinham fundo, instalando ninhos de metralhadora em todos eles.
Do lado de fora, armaram mini-bases de mísseis teleguiados e, sobre os beirados do fronteiro Banco do Brasil, carabinas nucleares munidas de mira telescópica.
Todo o espigão da avenida São João foi interditado e ocupado por tanques e carros blindados que congestionavam o tráfego do Anhangabaú a ponto de tornar inexeqüível qualquer tentativa de suicídio por atropelamento.
Aquele aparato bélico contrariava os planos dos agentes de Simon Rosenthal.
Obrigados a se afastarem do edifício, tiveram de ficar misturados à multidão que se comprimia na retaguarda das barricadas, improvisadas com material das obras do metrô.
Era indescritível o pesar dos seus rostos enrugados e dos seus olhos monomaníacos.
Depois de seguir a pista do ex-fuehrer por cinco quartos do mundo, perdê-lo para outros caçadores que nem sequer imaginavam como silenciá-lo para sempre...
Na impossibilidade de qualquer atitude reparadora, assistiram estupefatos às manobras militares tendentes a isolar aquela granítica e outrora babilônica muralha de 110 andares de janelas mais 6 de águas-furtadas, há muito desabitada e sombria.
Mais sombria e tenebrosa depois que Hitler se infiltrara em seu bojo.
E os fracassados sequazes de Simon Rosenthal permaneceram estáticos em meio ao povo, mesmo quando este vibrava ao serem disparados os primeiros projéteis de gás lacrimogêneo para dentro das janelas do Martinelli. Só alteraram a postura no momento em que a ordem de fogo foi repentinamente sustada e milhares de olhares convergiram para o corpúsculo que se movia numa das mais superiores sacadas, empunhando misterioso megafone.
Binóculos e miras foram assestados na direção do vulto.
Antes que partisse nova ordem, um discurso estrepitoso e apoplético começou a jorrar como cascata sobre a massa popular.
Os militares, hipnotizados, não esboçaram o mínimo gesto para tentar impedir que aquela voz desmesuradamente esganiçada caísse do alto de tão esdrúxulo púlpito.
O resultado não se fez esperar.
Sob o aspérrimo discurso, as vozes do povo se elevaram uníssonas, urrando um coro de "heils" a cada exortação do carisma.
Àquela altura, mais de um milhão de pessoas tinham afluído em torno do Martinelli, enquanto uma chusma de militantes da TFP saía da catedral da Sé desfraldando estandartes que ostentavam cruzes rampantes e leões suásticos.
Os sectários de Simon Rosenthal testemunharam desolados aquelas cenas projetadas do pesadelo dum ex-combatente neurótico. Depois, como se nada mais houvesse a fazer, tergiversaram cabisbaixos e, varando a custo a multidão magnetizada, voltaram à praça do Patriarca.
Do hotel, enviaram por microtransmissor, via satélite, a senha para a deflagração da Terceira Guerra Mundial.
Antes, porém, renovaram comovidos o juramento de não falhar na próxima caçada.
(Revista "Escrita", 1976)
(Ilustração: Odilon Redon – the egg)
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