Mas o seu verdadeiro amor ia todo para a chanteuse a quem oferecia os ímpetos amortecidos da sua paixão debilitada. Todos perguntavam como é que Cirmeni podia adorar tão desesperandamente a chanteuse carne para marinehiro, resto de prostíbulos, aventureira aposentada, destroços de beleza naufragada, vénus caída, bocado mastigado de mulher; como é que amava um corpo onde nada restava de elegância de linhas ou harmonia de formas. Como é que podia amar uma mulher envelhecida pelos anos e pelas pinturas, na qual a sensualidade devia ter afrouxado como a pele do pescoço, como os seios, como as ancas.
Poucos compreendem a verdadeira essência do amor. Julga-se geralmente que um homem é atraído para a mulher pela frescura do seu rosto, pela esbeltez da cintura, pela agilidade das pernas, pelo mistério magnético dos olhos, pela muda promessa dos lábios impudicamente carnudos, pela palidez da fronte pura, pela tácita oferta das ancas rebolando, pela garridice indisciplinada da cabeleira. Julga-se que a mulher se sente atraída para um homem pela prepotência do seu olhar másculo, pela dobra da boca autoritária, pelo sorriso de sonhador ou de desiludido, pelos cabelos animalescos dos pulsos ou pela face depilada de efebo; pelo espírito que demonstra, pela inteligência que esconde, pela nobreza do seu carácter, pela malvadez da sua alma, pela sensualidade que promete a sua mandíbula nervosa.
A beleza, pois, a linha, a forma, a cor são, no juízo da maioria, os elementos que atraem um para o outro o macho e a fêmea. Só por meio deste erro se explica a pergunta que ouvimos constantemente:
—Como podes gostar daquela mulher, que não tem seios, que é magra, que tem boca pequena e olhos apagados?
O amor - respondemos nós — não é produzido pela mútua contemplação da cor dos olhos ou da forma do nariz. O amor, este magnetismo animal mediante o qual um indivíduo é atraído para outro indivíduo, é causado pela afinidade química de dois corpos. No indivíduo devem-se distinguir duas entidades: a forma e a substância, isto é, a linha exterior e a matéria.
O amor é devido, não à forma, mas à matéria; o amor é atracção física, afinidade química de dois organismos. A beleza não influi nada. A juventude não influi nada. O espírito, o talento, a elegância, a honestidade, a traição não têm o mínimo papel no magnetismo animal que faz um corpo sentir a necessidade de se misturar noutro. Quando um homem e uma mulher, tendo-se encontrado num ponto do espaço, experimentam a necessidade imperiosa (digo necessidade imperiosa e não desejo distraído) de se unirem, isso quer dizer que no corpo «daquela» mulher existe a substância, a matéria, o produto químico que com implacável ânsia procura a substância, a matéria encerrada no corpo «daquele» homem.
Nem de outro modo se explicaria o desejo de certas mulheres belas por homens que todos, e elas também, acham horríveis; nem de outro modo se explicaria o amor doido de certos homens por mulheres feias ou gastas.
O amor eterno, isto é, o inextricável retorcimento de uma vida em torno de outra vida, é o produto do encontro de um corpo em cujos tecidos existem metais e metalóides que têm afinidade química pelos metais e metalóides de um determinado corpo de sexo diverso.
(Esta expressão vai fazer rir os farmacêuticos, mas estou-me nas tintas.)
Os homens e as mulheres que se amam com um amor assim tenaz, podem, é verdade, praticar infidelidades com relação uns aos outros. Mas a aventura não é o amor; a cópula ocasional deixa intacta a paixão constante. Pode-se amar desesperadamente um homem e ir humedecer os lençóis de outro. A aventura não é mais que uma espécie um pouco refinada de masturbação, depois da qual, ainda que os sentidos tenham saído extenuados, permanece inalterada a paixão da mulher pelo indivíduo que emulsionou estavelmente a própria vida com a sua vida.
O amor do dr. Cirmeni pela «chanteuse» era a verdadeira paixão inextinguível. O amorzinho intermitente com a esposa legítima era um incidente fortuito como uma aventura, insignificante como uma masturbação. Certas vezes, de manhã, acordando saciado, cansado, esgotado na cama da esposa jovem e bela, o seu desejo corria para a «chanteuse», a velha amante gasta pelos anos, pelas pinturas, pelas massagens.
— Não, meu amigo. O ciúme não é o estado alotrópico do amor — objectava o doutor Cirmeni ao doutor Axenfeld, que frequentemente discutia com ele psicologia. — Eu não amo a minha mulher e tenho ciúmes dela, simplesmente porque, aproximando-me dela por desfastio, por distracção, por uma novidade, tenho necessidade de saber que aquela mulher, cuja posse não passa de acidente mínimo na minha vida, me pertence, só a mim. O ciúme, reconheço, é um sentimento bárbaro, selvagem, primitivo, que os séculos e a civilização deviam ter abafado e dissolvido. Mas não tenho culpa, se sou um homem da minha época, se vivo neste século em que os animais da minha espécie, que vivem em colónias no meu país, não chegaram ainda a tal ponto de evolução que consintam que a mulher de cada um seja também mulher dos outros. Com os séculos, com a evolução animal, o ciúme do homem irá desaparecendo, como já está a dar-se com o dente do siso e as vértebras do cóccix. Mas ainda não chegamos a esse ponto de aperfeiçoamento, e eu sofro o ciúme como acontecia com aqueles guerreiros da Idade Média que, antes de partirem para as demoradas guerras, impunham à própria esposa o cinto de castidade.
— Lenda!
— Lenda? Então nunca estiveste no Museu de Cluny, em Paris? Há lá dois, em tão perfeito estado de conservação, que ainda hoje se poderiam usar. Pois bem, eu compreendo o ciúme como o compreendiam aqueles enamorados primitivos.
— É grotesco.
— Isso sei eu, que é grotesco.
— E ainda por cima, ingénuo. Que te importa que a tua mulher — objectou o amigo Axenfeld — não entregue a outro homem aquela parte do corpo que o cinto de castidade resguarda, se lhe pode dar a boca, a paixão, a alma? Com o cinto de castidade não fazes mais que impedir um acto, o acto sexual, o contacto de duas mucosas. Mas não podes impedir todo o resto, o amor, a paixão, o desejo.
— Palavras! — retrucou Cirmeni. — O nosso ciúme, o ciúme verdadeiro, o grande ciúme que leva ao delito, o ciúme que se manifesta da maneira mais animalescamente sublime, está todo resumido na aproximação das duas mucosas, como tu dizes. Aquele que faz cenas de ciúmes com a amante ou com a mulher porque trocou um olhar, um sorriso, um beijo furtivo com um estranho, não é um ciumento. O verdadeiro ciumento pouco se importa que a mulher crave o olhar no olhar de um homem ou a língua numa boca masculina. O ciúme verdadeiro é o horror terrificante que experimentamos ao pensar que as suas mucosas situadas na fonte da vida sofreram o contacto das mucosas de outro. O homem verdadeiramente ciumento só tem medo deste contacto, da adesão daquelas duas mucosas húmidas. Entendes-me?
— E lamento-te.
(O Cinto de Castidade, tradução de Pires Carneiro)
(Ilustração: Klimt – kiss)
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