domingo, 11 de julho de 2010

ANTES DE REGRESSAR AO MUNDO DOS SONHOS, de Marcel Proust







Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”. E, meia hora depois, despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela; durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia alguns segundos ao despertar; não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu sobre meus olhos, impedindo-os de ver que a luz já não estava acesa. Depois começava a parecer-me ininteligível, como, após a metempsicose, os pensamentos de uma existência anterior; o tema da obra destacava-se de mim, ficando eu livre para adapatar-me ou não a ele; em seguida recuperava a vista, atônito de encontrar em derredor uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, mas talvez mais ainda para meu espírito, ao qual se apresentava como algo sem causa, incompreensível, algo de verdadeiramente obscuro. Indagava comigo que horas seriam; ouvia o silvo dos trens que, ora mais, ora menos afastados, e marcando as distâncias como o canto de um pássaro em uma floresta, descrevia-me a extensão do campo deserto, onde o viajante se apressa em direção à estação próxima: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pela recente conversa e as despedidas trocadas à luz de lâmpada que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.

Apoiava brandamente minhas faces contras as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como as faces de nossa infância. Riscava um fósforo para olhar o relógio. Em breve seria meia-noite. É esse o instante em que o enfermo obrigado a partir e que teve de pousar em um hotel desconhecido, desperto por uma crise, alegra-se ao perceber debaixo da porta uma raia de luz. Que ventura! Já é dia! Dentro em pouco os criados se levantarão, poderá chamar, virão prestar-lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá ânimo para sofrer. Agora mesmo julgou ouvir passos; os passos se aproximam, depois se afastam. E a raia de luz que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado partiu, e será preciso ficar toda a noite a sofrer sem remédio.

Tornava a adormecer, e às vezes não despertava senão um breve instante, mas o suficiente para ouvir os estalidos das madeiras, para abrir os olhos e ficar o caleidoscópio da escuridão e saborear, graças a um lampejo momentâneo de consciência, o sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte mínima e em cuja insensibilidade logo tornava a integrar-me. Ou então, enquanto dormia, retrocedera sem esforço a uma época para sempre transcorrida de minha primitiva existência, tornando a encontrar alguns de meus terrores infantis, como o medo de que meu tio-avô me puxasse os cachos e que se dissipara no dia – início para mim de uma era nova – em que mos haviam cortado. Tal acontecimento, eu o esquecera durante o sono, mas sua lembrança voltava-me assim que conseguia despertar para fugir das mãos de meu tio-avô; em todo caso, como medida de precaução, envolvia completamente a cabeça com o travesseiro antes de regressar ao mundo dos sonhos.





(Em Busca do Tempo Perdido – O Caminho de Swann, tradução de Mário Quintana)



(Ilustração: Camile Pissarro – rainbow)



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