Prezada sra. Cropper:
Agradeço-lhe a comunicação que a senhora me fez de sua experiência com a planchette. De fato, interessa-me todo e qualquer escrito que tenha vindo da pena de Samuel Taylor Coleridge. Devo confessar, porém, o que farei sem rodeios, que me repugna em extremo a ideia de que o espírito magnífico deste poeta, finda sua cansativa e opressora jornada neste mundo, veja-se agora obrigado a arrastar mesas de mogno, ou pairar no ar em salas penumbrosas, parcialmente materializado, ou desperdiçar sua inteligência finalmente liberta da carne em parvoíces constrangedoras e ridículas como as que a senhora me enviou. Não deverá estar Coleridge agora – para citar seu “Kublai Khan” – bebendo o leite do Paraíso?
Falo sério, minha senhora. Eu próprio tenho participado de sessões como as que a senhora descreve – nihil humanum a me alienum puto é meu lema, tal como deveria ser também de todos os meus colegas de profissão –, e creio que a explicação mais provável é um misto de fraude deslavada e uma espécie de histeria coletiva, um miasma de ansiedade espiritual e agitação febril que infesta saraus e chás na nossa melhor sociedade atualmente. Poder-se-ia aventar a hipótese de que a causa deste miasma é o materialismo crescente de nossa sociedade, bem como o questionamento rigoroso – ao mesmo tempo natural e inevitável, dado o atual estado de nosso desenvolvimento intelectual – de nossas narrativas religiosas históricas. De fato, neste capítulo tudo são incertezas, de modo que o historiador e o cientista cada vez mais minam nossa fé simples. Ainda que o resultado final destas investigações infatigáveis venha a ser o fortalecimento desta fé, tal resultado será doloroso e dificilmente se dará ainda em nosso tempo. Isto não implica, porém, que as panaceias oferecidas a um público faminto de certezas sejam eficazes ou tenham bases sólidas.
Tanto o historiador quanto o cientista, pode-se dizer, vivem em consórcio com os mortos. Cuvier investiu de carne, movimento e apetites o extinto Megatério, e os ouvidos vivos dos senhores Mechelet e Rena, Carlyle e Irmãos Grimm ouviram os gritos já silentes dos desparecidos e a eles deram vozes. Quanto a mim, tenho também, com a ajuda da imaginação, atuado neste sentido, como ventríloquo, emprestando minha voz e minha vida àquelas vidas e vozes do passado que todo homem e mulher pensante têm obrigação de ressuscitar em suas próprias vidas, como advertências e exemplos, como a vida do passado sobrevivendo em nós. Mas há maneiras muito diversas de fazer tal coisa, como a senhora bem sabe; algumas são consagradas pela experiência, enquanto outras estão carregadas de perigos e decepções. Tudo o que é lido, compreendido, meditado e intelectualmente apreendido é nosso, minha senhora e pode ser usado em nossas vidas. Nem toda uma vida dedicada ao estudo nos poderá dar acesso a mais que um fragmento de nosso passado ancestral, quanto mais aos milênios que transcorreram antes da formação da espécie humana. Mas este fragmento, cabe a nós apossar-se dele e legá-lo às gerações futuras. Hoc opus, hic labor est. Sou levado a afirmar que não há atalhos, não há vias fáceis: todo aquele que tenta encontrar um tal caminho assemelha-se à personagem de Bunyan que encontra um caminho para o Inferno bem junto aos portões da Cidade Celestial: e o nome desta personagem é Ignorância.
Pense bem, minha senhora, no que resultam estas tentativas de dirigir-se aos mortos, este seres venerandos e terríveis, diretamente. Que pérolas de sabedorias eles lhe proporcionaram, depois de tanto tempo desperdiçado? Que vovó deixou seu broche novo dentro daquele carrilhão, ou que uma tia remota reclama, do além-túmulo, de lhe terem colocado um caixão de criança sobre o seu no jazigo da família. Ou, como o seu Coleridge lhe afirmou, que “há beatitude eterna para aquelas que merecem-na e há um tempo de correção para aqueles que não merecem-na” no Além. (Coleridge, que jamais errou na colocação de pronomes em sete idiomas!) Para nos dizer isto, minha senhora, não é necessário vir um fantasma do além.
É possível que haja espíritos errantes, bolhas emanadas da terra, criaturas do ar, que de vez em quando cruzam com nossas correntes usuais de apreensão, enquanto seguem em seu caminho incognoscível. Também há vagos indícios de que lembranças angustiadas permaneçam sob alguma forma mental em certos lugares terríveis. Há, sem dúvida, mais cousas entre o céu e a terra do sonha nossa vã filosofia. Porém tais cousas há de ser descobertas, creio eu, não por meio de estalidos e ruídos ou apalpações, ou pelo ser Home a flutuar em torno do candelabro de braços levantados, nem tampouco por meio das escrevinhações de sua planchette, e sim por meio da contemplação demorada e paciente da complexa interação entre mentes mortas e organismos vivos, por meio da sabedoria que examina o antes e o depois, por meio do microscópio e do espectroscópio, e não de perguntas dirigidas a espectros eternamente obcecados com a vida terrena. Conheci alguém de boa alma e mente sã que foi totalmente destruído por tais invencionices.
Se me estendi tanto nesta carta, foi para que a senhora não pense que faço pouco de seu interesse por mim, nem que nutro em relação a sua pessoa quaisquer sentimentos hostis. Porém tenho convicções profundas – e tenho tido certas experiências pessoais – que me impedem de receber sua comunicação espiritual com interesse ou prazer. Peço-lhe que não me mande mais tais escritos. Todavia, em relação à sua pessoa, à sua busca desinteressada pela verdade, não poderia eu sentir senão respeito e entusiasmo. Sua luta pela emancipação da mulher é uma nobre causa, que certamente há de ter sucesso, mais cedo ou mais tarde. Muito me interessaria receber notícias sobre esta luta. Aceite os protestos de estima e consideração de
R. H. Ash
(*) Randolph Henry Ash é um poeta vitoriano, criação fictícia da autora.
(Possessão – tradução de Paulo Henriques Britto)
(Ilustração: Emile Nolde - dance around the golden calf)
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