quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O MARTÍRIO DE JOÃO DA SILVA, de Dalton Trevisan






Maria não aceitava sua condição de dona casada e mãe de uma filha. Queria prazeres e mais prazeres, tais e tantos que ela era duas lágrimas azuis se não podia ir a algum baile, deslumbrando com sua presença as noitadas alegres da Sociedade Operária Internacional Beneficente da Água Verde. Vestida de ouro, reinava no salão até manhazinha, regressando na hora do marido ir para o serviço; antes de sair, ele ainda lhe trazia café na cama.

João fazia extraordinário para ganhar um dinheirinho mais, guardando somente alguns miúdos para o cigarro. Sonhava com um lar feliz e, de tão contente, era com um assobio que abria o portão; homem sem vício, a sua única fraqueza, além de Maria, era o cigarrinho. Mas ela – pobre de João – era dona tirana, vaidosa e perdida por bailes e festinhas. Foi vista aconchegada nos braços de um e outro tipo, ora na Sociedade 27 de Abril, ora na Sociedade Cristo-Rei, com os quais frequentava antros de perdição.

Ela só cuidava de passeio e diversão; na volta, dizia ter encontrado seus antigos noivinhos José e Joaquim, humilhando o esposo ao proclamar que os tais não haviam morrido, que eram galãs apaixonados, ao mesmo tempo que se arrenegava de ter casado com João. 

- Você é um palhaço, João. Sabe o que é um palhaço? 

Além do mais, o sogro interferia na intimidade do casal, e a ele é quem a filha pedia autorização para fumar ou tingir de louro os cabelos. 

Da discussão de quem era mais homem, o esposo ou o pai, resultou que Maria cuspiu na cara de João e ele revidou com um bofetão. A dona furiosa enterrou-lhe as unhas no pescoço. Com o rosto em sangue, João a agarrou pelo pulso e a obrigou a sentar-se na cama. Foi o bastante para que a mulher, aos gritos de socorro, fizesse o maior escândalo. E o velho pai, que morava ao lado, acudiu em defesa da filha, aos socos e pontapés no genro. Bem assim João apanhou a pior surra de sua vida, sendo espancado até perder os sentidos. Não fosse a intervenção de uma senhora Zezé, estaria ele no cemitério, pois o sogro queria por força matá-lo. 

- Hoje eu acabo com o desgraçado do nhô Silva. 

Entre pai e filha pouco valia o seu nome de batismo, era sempre o apelido de nhô Silva, que nada tinha a ver com João. 

Esforçava-se em levar a fartura ao lar: o salário entregue inteirinho nas mãos de Maria. Com o dinheiro dos biscates ainda oferecia regalos de fruta, bombom e teteia. Ela anunciou-lhe que estava grávida. Dias após, pela menor contrariedade, revelou que o filho não lhe pertencia. Era de outro homem que gostava, doida de paixão por um tal Paulinho. Uma noite, ao chegar a casa, ele econtrou atirados na rua os seus objetos de uso pessoal e a porta trancada. Para não acordar os vizinhos foi bem quieto dormir num banco de praça. 

Na sua vida desregrada, em perseguição da regalias do mundo, a dona só voltava noite velha: 

- Você não tem nada comigo nem eu com você. 

Foi expulsa pela guarda-civil do cine Curitiba por seu comportamento vergonhoso na companhia de dois tipos suspeitos. Tão outra era ela que, depois de conhecer galã de bigodinho, banquetear-se em churrascaria e dormir em quarto de hotel, não suportava mais viver com o excomungado do nhô Silva. 

O nosso João, que não era Silva e ao qual nunca ninguém tinha escrito, começou a receber cartas anônimas: 

“É meu dever alertá-lo sobre sua mulher. Não fui só eu que vi. Não posso mais assistir a tais canas de traição. Vigie bem a sua dona, um dia é o bastante”. Ou então: “D. Maria é infiel dentro do próprio lar, na mesma cama do casal e na presença dos filhos menores”. 

- João, eu fiz tudo para você ver. Sei que você é louco por mim. Não quis enxergar e agora vou lhe dizer: sou adúltera há mais de cinco anos. Mas não pense que estou arrependida. 

Confessou mais que, por três vezes, enquanto dormia, havia ensaiado matá-lo com o facão de cozinha e só desistiu porque, se fosse presa, iria se privar das bacanais. 

Tudo o que João toca ela despreza. A louça e os talheres que ele usa Maria atira longe com ódio. É ele quem lava a própria roupa. Os filhos menores, esses vivem nervosos e assustados. 

No sábado, entrando em casa, não deu com a mulher. 

- Ela está na praia com os meninos e o novo marido – bradou-lhe a vizinha sobre a cerca. – O senhor não sabia? 

De volta, Maria abateu o último frango do galinheiro, em homenagem a um doutor que lá foi almoçar. João protestou que era galo de raça vermelha e, por ser de estimação, ela não tinha o direito de matá-lo. Acudiu Maria que nunca foi de raça, tanto que era simples galo comum e, nada sendo bom demais para um doutor, o prato do dia era galo vermelho. 



(A Guerra Conjugal) 




(Ilustração: Jack Vettriano – a very married woman)

















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