segunda-feira, 23 de novembro de 2009

SEGUNDA CARTA, de Mariana Alcoforado











Creio que faço ao meu coração a maior das afrontas aos procurar dar-te conta, por escrito, dos meus sentimentos. Seria tão feliz se os pudesse avaliar pela violência dos teus! Mas não posso confiar em ti, nem posso deixar de te dizer, embora sem a força com que o sinto, que não devias maltratar-me assim, com um esquecimento que me desvaira e chega a ser uma vergonha para ti. É justo que suportes, ao menos, as queixas de desgraças que previ ao ver-te decidido a deixar-me. Reconheço que me enganei, ao pensar que procederias com mais lealdade do que é costume: o excesso do meu amor parece que devia pôr-me acima de quaisquer suspeitas e merecer uma fidelidade que não é vulgar encontrar-se. Mas a tua disposição para me atraiçoar triunfou, afinal, sobre a justiça que devias a tudo quanto fiz por ti. Não deixaria de ser infeliz se soubesse que só ao meu amor ganharas amor, pois tudo quisera dever unicamente à tua inclinação por mim; mas estou tão longe de tal estado que já lá vão seis meses sem receber uma única carta tua. Só à cegueira com que me abandonei a ti posso atribuir tanta desgraça: não tinha obrigação de prever que as minhas alegrias acabariam antes do meu amor? Como poderia esperar que ficasses para sempre em Portugal, renunciasses à tua carreira e ao teu país para não pensares senão em mim? Nenhum alívio há para o meu mal, e se me lembro das minhas alegrias maior é ainda o meu desespero. Terá sido então inútil todo o meu desejo, e não voltarei a ver-te no meu quarto com o ardor e arrebatamento que me mostravas? Ai, que ilusão a minha! Demasiado sei eu que todas as emoções, que em mim se apoderavam da cabeça e do coração, eram em ti despertadas unicamente por certos prazeres e, como eles, depressa se extinguiam. Precisava, nesses deliciosos instantes, chamar a razão em meu auxílio para moderar o funesto excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo quanto sofro presentemente. Mas de tal modo me entregava a ti, que era impossível pensar no que pudesse vir envenenar a minha alegria e impedir de me abandonar inteiramente às provas ardentes da tua paixão. Ao teu lado era demasiado feliz para poder imaginar que um dia te encontrarias longe de mim. E, contudo, lembro-me de te haver dito algumas vezes que farias de mim uma desgraçada; mas tais temores depressa se desvaneciam, e com alegria tos sacrificava para me entregar ao encanto, e à falsidade!, dos teus juramentos. Sei bem qual é o remédio para o meu mal, e depressa me livraria dele se deixasse de te amar. Ai, mas que remédio... Não; prefiro sofrer ainda mais do que esquecer-te. E depende isso de mim? Não posso censurar-me ter desejado um só instante deixar de te querer. És tu mais digno de piedade do que eu, pois vale mais sofrer corno sofro do que ter os fáceis prazeres que te hão-de dar em França as tuas amantes. Em nada invejo a tua indiferença: fazes-me pena. Desafio-te a que me esqueças completamente. Orgulho-me de te haver posto em estado de já não teres, sem mim, senão prazeres imperfeitos; e sou mais feliz que tu, porque tenho mais em que me ocupar.

Nomearam-me há pouco tempo porteira deste convento. Todos os que falam comigo creem que estou doida, não sei que lhes respondo, e é preciso que as freiras sejam tão insensatas como eu para me julgarem capaz seja do que for. Ah, como eu invejo a sorte do Manuel e do Francisco! Porque não estou eu sempre ao pé de ti, como eles? Teria ido contigo e servir-te-ia certamente com mais dedicação.

Nada desejo no mundo senão ver-te. Lembra-te ao menos de mim. Bastar-me-ia que me lembrasses, mas eu nem disso tenho a certeza. Quando te via todos os dias não cingia as minhas esperanças à tua lembrança mas tens-me ensinado a submeter-me a tudo quanto te apetece.

Apesar disso, não estou arrependida de te haver adorado. Ainda bem que me seduziste. A crueldade da tua ausência, talvez eterna, em nada diminuiu a exaltação do meu amor Quero que toda a gente o saiba, não faço disso nenhum segredo; estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a espécie de conveniências. E já que comecei, a minha honra e a minha religião hão-de consistir só em amar-te perdidamente toda a vida.

Não te digo estas coisas para te obrigar a escrever-me. Ah, nada faças contrafeito! De ti só quero o que te vier do coração, e recuso todas as provas de amor que tu próprio te possas dispensar. Com prazer te desculparei, se te for agradável não te dares ao trabalho de me escrever; sinto uma profunda disposição para te perdoar seja o que for.

Um oficial francês, caridosamente, falou-me de ti esta manhã durante mais de três horas. Disse-me que em França fora feita a paz. Se assim é, não poderias vir ver-me e levar-me para França contigo? Mas não o mereço. Faz o que quiseres: o meu amor já não depende da maneira como tu me tratares.

Desde que partiste nunca mais tive saúde, e todo o meu prazer consiste em repetir o teu nome mil vezes ao dia. Algumas freiras, que conhecem o estado deplorável a que me reduziste, falam-me de ti com frequência. Saio o menos possível deste quarto onde vieste tanta vez, e passo o tempo a olhar o teu retrato, que amo mil vezes mais que à minha vida. Sinto prazer em olhá-lo, mas também me faz sofrer, sobretudo quando penso que talvez nunca mais te veja. Por que fatalidade não hei-de voltar a ver-te? Ter-me-ás deixado para sempre? Estou desesperada, a tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao terminar esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim!




(Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcoforado, tradução de Eugénio de Andrade)



(lustração: Clovis Trouille)



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