terça-feira, 22 de setembro de 2009

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES, de Osman Lins










Hermelinda e Hermenilda trespassam-se entre si. Observo-as, todo princípio de mês, ante os balcões de pedra da Delegacia Fiscal. Usam dentaduras postiças, sendo uma guarnecida com caninos de ouro. Tanto metem na boca uma peça como a outra. Vivendo sempre juntas, perderam, distraídas, o controle que exercemos sobre o corpo. Ambas deixam-se invadir e invadem a irmã. Venha uma de brincos ou, em dias mais frios, com um fichu em torno do pescoço. Basta que se cruzem no saguão, uma através da outra – já os brincos mudam de orelhas e o abrigo de espáduas. Não só os brincos, nem só o abrigo, ou os anéis baratos. As orelhas que elas trazem em maio aparecem em junho nas cabeças opostas; trocam de língua, de voz; seus quatro olhos mudam sempre de órbitas; uma transmigração se cumpre, uma troca perpétua, entre esses corpos mirrados mas ainda eretos. Arrisco-me a supor que os pesadelos de uma assustam a outra.



Hermenilda? Hermelinda?... Constato, ao travarmos relações, que se interpelam usando livremente aqueles nomes. Acabo não sabendo com qual das duas falo. Apesar do que ambas revelam de pouco habitual, e por mais que deseje estudá-las na intimidade, observo-as ao largo. São elas (“Qual? As duas?”) que me abordam, afáveis, junto à Caixa, dão-me o endereço e instam para que as visite, não em conseqüência de algum incidente – favor meu, gentilezas – que as lisonjeasse, mas por lhes caber uma função: a de me desviarem – a mim, sobrevivente da cisterna – de caminhos afastados de Cecília, pondo-me, para alegria nossa, meu luto e perdição dela, aqui, onde a sua existência ser-me-á anunciada e onde ela mesma, afinal, surgirá, abrirá o portão, ingressará no alpendre com seu andar de lavandeira.



Prossegue a música de Hermelinda, a que os pássaros respondem. Levanto-me da rede. Olho de uma em uma as gaiolas de junco, fabricadas pelas velhas, algumas de formato original, com suas aves cantantes (corto e cruzo nomes de pássaros: papa-campinas, xeúnas, os, galos-de-capins, rios, curinás, caxéus, sagrabiás); rodeio a mesa na sala de jantar, entro na oficina: gaiolas não terminadas, o rústico instrumental, o perfume silvestre de verniz e de madeira lixada; em toda parte a evocadora valsa de Hermelinda, em toda parte as gargantas ativas dos pássaros; aventuro-me à peça onde ficam o guarda-roupa, a grande cama de casal, a cômoda: em cima, o santuário, frascos de remédio, um mealheiro; o soalho da casa, de ladrilhos vermelhos, deve ter sido lavado nas primeiras horas da manhã; evitando, ociosamente, pisar entre um ladrilho e outro, torno à sala de jantar e vejo sobre a mesa, vejo, no centro de um pano redondo de filé, um álbum de fotografias. Não o percebera? Com decisão e rápido, como se no alpendre e nos quartos andasse à caça do álbum, apanho-o. Volto para a rede, examino-o.



Obras do tempo em que os fotógrafos, não captando o artifício existente na impossível naturalidade dos modelos e ambicionando dar uma impressão de vida aos seus trabalhos, fixam atitudes e gestos só aceitáveis longe da objetiva. O amarelamento das imagens e os danos das traças contestam a dolorosa aparência de ação.



- De quem são esses retratos?



- Pessoas. A maioria, aí, já conheceu a dextra. Teve o beneplácito.



- Sempre se recebe o beneplácito?



- Depende dos malfairos e da contrição.



Dois meninos de joelhos, sérios, no dia da Primeira Comunhão. Homens de c   péu e bengal  , lado a lado, uma pe na estendida e o har distante, como se a câmara os surpreendesse num escasso silêncio entre diálogos profundos; mulheres sentadas, otovel apoiado numa esa de és etorcidos; fechando graciosamente um leq entres as aos; moças de meias n gras e longos vesti claros, grande ç branco nos cabelos, sustendo um livro com uma frol entre as páginas e os o os voltados para mim; outras em meio a pedras e almeiras reais refletidas no telão ao fundo; ao lado de cães; famí s reunidas, cada qual olhando numa direção: no centro do grupo, um casal de crianças com chapéus de al vestidos de mar , segurando um ar ... Em meio a essa galeria composta e descorada, onde já inclusive se dissolve a identidade dos modelos, salta-me de súbito entre as mãos uma foto pouco hábil, datada de um mês, tirada em algum espetáculo circense: uma jovem sorrindo para a câmara, tendo nos braços um leão ainda novo, amordaçado. No verso, em letras achatadas e vagamente pretensiosas, esta inscrição: Cercília não tem medo de leões. 15, Junho, 1962. Cortado, porém, o R do nome.



Ouço (na estrada?) sons precipitados, cruzados, rodas e eixos, uma estrutura pesada desmembrando-se. O álbum estremece em minhas mãos. Movimento algum na estrada: a mesma paz. Mas Cecília, a que não tem medo de leões – as grades e a sombra vertical das grades barrando seu vestido amarelo –, abre o portão. Inicia, abrindo-o, uma frase metálica: o tilintar da pulseira no antebraço frágil, com pequenos astros e moedinhas de ouro, o ranger do ferro nos gonzos não lubrificados, o badalo de bronze na campainha de cobre, suspensa de um arco flexível de aço. Cai a aldrava no encaixe, pesada. O mesmo ruído, o mesmo, de uma jaula cerrando-se. Cecília, a Madona dos leões?



(...)



O leve e ritmado som dos sapatos de Cecília, com saltos de latão, percute no piso do alpendre. Passos rápidos, de quem necessita andar muito e vive com uma certa urgência. O homem, no outro lado da rua, baixa o braço e some com os meninos. Desce a mão de Hermelinda, firme, sobre as cordas do instrumento. O gato, na porta, pousa a pata no chão, os pássaros soltam o canto. Hermelinda vara o círculo de leões que ameaça Cecília e beija-a no rosto. Também o canto dos pássaros soa, nítido, metálico. Cecília, com um sorriso, faz os leões subirem nos telhados balançando a cauda. O que conversam, Hemenilda e Cecília, não escuto. A língua de Cecília: leão lascivo. Hermenilda faz um gesto em minha direção e indica-a: “Chama-se Cecília. Trabalha no Hospital Pedro II. Serviço Social.” Ela inclina a cabeça, fita-me um instante e desvia o olhar. Volta a fitar-me rápida (abelhas solitárias, esses olhos, riscando as superfícies.) “Abel é homem das letras e dos livros. Filósofo. Conhece o outro lado da Terra.” Zumbem leões negros e velozes nos olhos de Cecília. Cecília senta-se no banco de vinhático ao lado de Hermenilda e cruza as pernas delgadas. Visível a ossatura dos joelhos. O silêncio de Cecília é atravessado por leões.





(Avalovara)


(Nota: as falhas datilográficas em um dos parágrafos do texto seguem indicação exata do autor).

(Ilustração: Aaron Coberly)




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