segunda-feira, 7 de setembro de 2009

ABUTRE, de Franz Kafka










Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava- me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.
- É que estou sem defesa - respondi. - Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.

- Mas deixar-se torturar dessa maneira! - disse o senhor. -Basta um tiro e pronto!

- Acha que sim? -disse eu. – Quer o senhor disparar o tiro?

- Certamente - disse o senhor. – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?

- Não sei lhe dizer – respondi.

Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:

- De qualquer modo, vá, peço-lhe.

- Bem – disse o senhor. –Vou o mais depressa possível.

O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.




(Ilustração: João Ruas)



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