terça-feira, 29 de abril de 2025

O CHEIRO DE ROLHA QUEIMADA EM ALGUNS POEMAS DE MANUEL BANDEIRA, de Ronald Augusto

 


Hoje dispomos de um conjunto de conceitos para pensar a produção literária de pessoas negras. Temos literatura negra, literatura afro-brasileira, literatura negro-brasileira ou literatura de autoria negra. Ainda que aceitemos diferenças entre as propostas, há um dado em relação ao qual não se verifica nenhuma discordância entre os defensores de cada um dos conceitos, a saber, por princípio, os autores dessa produção literária são negros e de algum modo eles se deixam reconhecer, através das tramas da linguagem literária, como negros na experiência textual que realizam.

Já os textos literários de autores brancos dedicados a recriar, por exemplo, aspectos da cultura afro-brasileira, o elemento negro ou as tensões raciais de nossas interações sociais, podem representar, quando muito, uma literatura negrista. Trata-se de uma literatura de viés temático que atende principalmente ao interesse do autor não-negro decidido a fazer uma incursão através de um conjunto de signos que lhe são exteriores ou alheios, mas que desafiam sua imaginação criativa. René Depestre, em seu estudo Bonjour et adieu à la négritude (1980), analisa a ideia e o imaginário negristas. Segundo o poeta e romancista haitiano, para a construção de uma história do negrismo na América Latina, é inevitável considerar os antecedentes do fenômeno na Europa. Depestre entende o negrismo como o conjunto de múltiplas imagens que se formou das pessoas negras através da chave dos estereótipos.

Na Europa, antes de se revelar como movimento de vanguarda ou de fornecer elementos vanguardistas à arte, o negrismo, de acordo com Depestre, estava presente sob suas formas primitivas, ou seja, nos contos de fadas, nas histórias de viagens, nos escritos de viajantes. No Iluminismo, segundo o escritor haitiano, seus traços podem ser encontrados em escritores profissionais, em todos os tipos de textos, enternecedores ou zombeteiros, até mesmo no romantismo abolicionista e paternalista.

Até agora os textos negristas acabam por sucumbir, de fato, a uma série de estereótipos e clichês, principalmente aqueles textos circunscritos à tradição modernista que, devido a algumas cláusulas dos seus manifestos, tomou para si a missão de redescobrir o Brasil a partir de um olhar em que se pudesse identificar um modo de ser brasileiro que não fosse simples emulação de tiques culturais da civilização europeia.

É possível ler Manuel Bandeira com a intenção de enfrentar o caráter inegavelmente negrista de determinados poemas de sua obra. Consideramos que o paternalismo sentimental de Bandeira, típico de um sinhozinho que foi amamentado por uma negra da casa-grande, transferiu à evocação poética de sua infância uma dimensão demasiadamente edulcorada no que diz respeito à figuração das formas de vida das pessoas negras. Os poemas em questão, além do traço paternalista, estão carregados de um romantismo quase cego à experiência da escravidão, parecem minimizar as consequências do acontecimento para todos os envolvidos – nomeadamente para os negros, mais afetados negativamente – porque o ângulo de corte da imaginação poética é o da ternura da infância doméstica, bem como da ironia bonachona permitida pela intimidade familiar. As memórias pré ou pós-abolicionistas dos poemas de Manuel Bandeira, humildes e ternas, recriam os últimos tempos do colonialismo escravista a partir do ponto de vista de quem sempre segurou o chicote pelo cabo.

Parte expressiva da poética de Bandeira não se afasta de um certo quadro espiritual do período. Depois da abolição da escravidão no século 19, há uma nova promoção da imagem do negro. A condição de liberto soa como um salvo-conduto concedido para seu ingresso no mundo humano. Depestre argumenta que nos Estados Unidos, por exemplo, se produz a literatura da Reconstrução, menos degradante do que a anterior e cujo exemplo mais acabado é a obra A cabana do Pai Tomás (1852). Contudo, a nova imagem do negro seguiu tributária da tradição da plantation. O crítico haitiano denuncia mesmo inteligências negras que, segundo sua opinião, tomam das palavras do negrismo mais tacanho para pretensamente operarem a reconstrução. Para René Depestre, nestas obras tanto de autores brancos como de autores negros, percebe-se “o mesmo negrismo que animava os espetáculos dos menestréis ou acrobatas que pintavam o rosto com cortiça queimada antes de entrarem em cena.”[1]

Depestre reconhece que tanto nos Estados Unidos como na Amárica Latina aos poucos surgem escritores que ultrapassam os limites do negrismo. Langston Hughes, Countee Cullen, Nicolás Guillén, Aimé Césaire, não por coincidência todos criadores negros, produzem um tipo de literatura que não exala o cheiro de rolha queimada. Sobre o caso brasileiro, René Depestre entende que há poucos poetas e escritores negros de fato comprometidos com a “reabilitação da raça negra”, ainda que Cruz e Sousa e Luis Gama, por exemplo, alcancem um bom domínio dos seus meios expressivos, não manifestam em seus escritos “as contradições de classe/raça que determinaram a vida do seu país”. O mínimo que se poderia comentar sobre a percepção de Depestre é que neste ponto ele foi apressado e na verdade não parece ter lido com cuidado a produção dos poetas. “Emparedado”, de Cruz e Sousa, e a balada sarcástico-crítica “Quem sou eu” (também conhecida como “Bodarrada”), de Luiz Gama, bastariam para derrubar as alegações do haitiano de que ambos não capturaram com firmeza as contradições de classe/raça que determinaram e determinam a vida brasileira.

Vejamos agora dois poemas do negrismo de Manuel Bandeira. “Macumba de pai Zusé”: “Na macumba do Encantado/ Nego véio pai de santo fez mandinga/ No palacete do Botafogo/ Sangue de branca virou água/ Foram vê estava morta!”.

Importa notar no poema a imagem que tenta reduzir as manifestações rituais de origem africana a coisas que têm parte com o demônio. Para o senso comum, expressões como magia negra ou mandinga se inserem numa área semântica indicativa de feitiço cuja intenção é causar danos, propondo-se a destruir ou ferir outrem. Bandeira pratica uma variante do racismo recreativo apelando à oralidade negra como “fala errada”, daí irrompe no verso a expressão Zusé (José), ou em outro poema Zizus (Jesus). São mobilizados os conhecidos preconceitos de raça e linguístico em tom zombeteiro. A aura do poético torna inofensivo o conteúdo da agressão racial.

A partir de um viés carnavalesco de que se beneficia parte da poética de Bandeira, tudo o que acontece nos versos evoca um culto religioso de caráter sincrético-fetichista, a princípio ou pretensamente, afro-brasileiro. Essa imagética, no entanto, transfere à religiosidade afro-brasileira acepções batidas e rebaixadas, e repisa a concepção preconceituosa em que esses cultos e sua signância ritualística são vistos como “coisa do demônio”. Enfim, o que se desenrola diante de nossos olhos não passa de uma representação distorcida e definitivamente menor dos signos que dizem respeito ao aspecto filosófico, espiritual e místico da cultura afro-brasileira.

Em “Murmúrio d’água”, Manuel Bandeira evoca nostálgico sua infância de menino da casa-grande. A imagem da ancestralidade negra vem à superfície dos versos como uma condenação. Enebriados pela música do poema, acompanhamos um discurso circunscrevendo essa ancestralidade ao desvio da escravidão no Brasil (perversa narrativa de origem imposta em termos ontológicos às diásporas africanas). “Murmúrio d’água” serve à perfeição como uma forma de redução, de confinamento, que, de resto, evoca um vago preconceito por sob a capa da compaixão. A dor e a alegria do “povo negro” seriam invariavelmente emanações da escravidão no Brasil do período colonial? É como se seu sofrimento e a desejada superação fossem meros sucedâneos da escravidão, sintomas enclausurados aquém e além de outras chances e predicações relativas à condição humana. Segue o trecho final do poema: “(…) A minha mãe ouvi dizer que era minh'ama/ Tranquila e mansa./ Talvez ouvi, quando criança,/ Cantigas tristes que cantou à minha cama./ Talvez por isso eu me comova a aquela mágoa./ Talvez por isso eu me comova tanto à mágoa/ Do teu rumor, murmúrio d'água…// A meiga e triste rapariga/ Punha talvez nessa cantiga/ A sua dor e mais a dor de sua raça.../ Pobre mulher, sombria filha da desgraça!// — Murmúrio d'água, és a cantiga de minh'ama.”.

Bandeira manifesta uma forma de solidariedade herdeira de concepções ready-mades sobre as quais se equilibra a curiosidade quanto à vida dos negros – seja nas senzalas, seja nas periferias, seja junto ao calor da cozinha do senhor –, o fetichismo a respeito de como acontece esse ser negro que sucumbe, por assim dizer, ao quantificar o povo negro. Cada sujeito negro estaria fadado a exprimir apenas isto e mais nada: uma abissal alma negra, porém como decalque do raciocínio negrista-essencialista e de base racial; uma interioridade tão desconhecida quanto exaustivamente parafraseada por emblemáticos pensadores e artistas do modernismo.



Nota:

[1] A rolha queimada, tinta ou graxa, eram usadas para pintar o rosto de pessoas brancas que deveriam representar pessoas negras.



(Correio do Povo, 27 de abril de 2024)



(Ilustração: Al Jolson no filme The Jazz Singer – 1927)

sábado, 26 de abril de 2025

MINERAI NOIR / MINÉRIO NEGRO, de René Depestre

  


 Quand la sueur se trouva brusquement


…………tarie para le soleil

quand la frénésie de l’or draîna au marché la dernière

…………goutte de sang indien

de sorte qu’il ne resta plus un seul Indien

…………aux alentours des mines d’or

on se tourna vers le fleuve musculaire de l’Afrique

…………pour assurer la relève du désespoir

alors commença la ruée vers l’inépuisable trésorerie

…………de la chair noire

alors commença la bousculade échevelée vers le

…………rayonnant midi du corps noir

et toute la terre retentit du vacarme des pioches

…………dans l’épaisseur du minerai noir

et tout juste si des chimistes ne pensèrent aux

…………moyens d’obtenir quelque alliage précieux

avec le métal noir

tout juste si des dames ne rêvèrent d’une batterie

………….de cuisine en nègre du Sénégal d’un service

………….à thé en massif négrillon des Antilles

tout juste si quelque audacieux curé ne promit à sa

…………..paroisse

une cloche coulée

…………dans la sonorité

……………………du sang noir

ou si quelque vaillant capitaine

……………………ne tailla son épée

………………………………dans l’ébène minéral

ou encore si un brave Père Noël

………….ne songea à des petits soldats

………………………………de plomb noir

…………pour sa vie annuelle.

Toute la terre retentit de la secousse des foreuses

…………dans les entrailles de ma race dans

……………………le gisement musculaire

…………………………………………de

………………………………l’homme noir.

Voilà de nombreux siècles

………………………………que dure l’extraction

…………………………………………des merveilles

…………………………………………de cette race.

Ô couches métalliques de mon peuple

minerai inépuisable de rosée humaine

combien de pirates ont exploré de leurs armes

les profondeurs obscures de ta chair

combien de flibustiers se sont frayé leur chemin

à travers la riche végétation de

…………………………………………clartés de ton corps

jonchant tes années de tiges mortes

…………………………………………et de flaques de larmes

Peuple dévalisé peuple de fond en comble retourné

……………………comme une terre

…………………………………………en labours

peuple défriché pour l’enrichissement des grandes foires

……………………………………………………du monde

Mûris ton grisou dans le secret de ta nuit corporelle

…………nul n’osera plus couler des canons

…………et des pièces d’or dans le noir métal de ta colère en crues!



Tradução de Ernesto von Artixzffski:



Quando seco pelo sol o suor do índio

…………esgotou-se

quando a febre d’ouro drenou a derradeira

…………gota de sangue índio

varrendo do entorno das minas d’ouro todo Índio

…………nos voltamos ao veio muscular d’África

…………para garantir a emersão da miséria

então começou o assalto à infinda riqueza

…………da carne negra

então começou o desordenado ataque ao

…………radiante esplendor do corpo negro

e toda a terra retumbou ao retinir do alvião

…………na densidade do minério negro

e tudo bem se químicos não pensassem em meios

…………de obter uma preciosa liga

do metal negro

tudo bem se as damas não sonhassem com batedeiras

…………de cozinha em negra do Senegal serviços de chá

…………em maciço negrinho das Antilhas

tudo bem se um pároco audacioso não prometesse à sua

…………paróquia

um sino soldado

…………na sonoridade

……………………do sangue negro

ou se algum valente capitão

……………………não talhasse sua espada

………………………………no ébano mineral

ou ainda se algum bravo Papai Noel

……………………não sonhasse soldadinhos

………………………………em chumbo negro

……………………para sua anual visita.

Toda a terra retiniu ao abalo das brocas

…………nas entranhas de minha raça na

……………………jazida muscular

………………………………do

……………………homem negro.

Eis os numerosos séculos que

……………………duram a extração

……………………das maravilhas

……………………desta raça.

Ó tálamos metálicos do meu povo

minério inesgotável do rocio humano

quantos piratas exploraram suas armas

as profundezas obscuras de tua carne

quantos flibusteiros abriram caminhos

pela rica vegetação

……………………de clarezas de teu corpo

espalhando teus anos de troncos mortos

………………………………e poças de pranto

Povo despojado povo todo assim revirado

……………………como a terra

………………………………lavorada

povo devastado para o enriquecimento das grandes feiras

……………………………………………………do mundo

Amadureces teu grisu no segredo de tua noite corporal

…………ninguém mais ousará lançar canhões

…………e moedas de ouro no negro metal de tua cólera em cheia!



(Minerai Noir, 1952)



(Ilustração: Johann Moritz Rugendas: Jogar Capoeira ou Danse de Guerre)

quarta-feira, 23 de abril de 2025

DISCURSO FINAL DE “O GRANDE DITADOR”, de Charles Chaplin

 



Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio… negros… brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem… um apelo à fraternidade universal… à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora… milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia… da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais… que vos desprezam… que vos escravizam… que arregimentam as vossas vidas… que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!.”



(Tradução, provável, de Bruno Yashinishi)

Fonte:



(Ilustração: Charles Chaplin - O Grande Ditador – 1940)

domingo, 20 de abril de 2025

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO, de Vinícius de Moraes



E o Diabo, levando-o a um alto monte,

mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo.

E disse-lhe o Diabo:

- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória,

porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero;

portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

E Jesus, respondendo, disse-lhe:

- Vai-te, Satanás; porque está escrito:

adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.



Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

De sua grande missão:

Não sabia, por exemplo

Que a casa de um homem é um templo

Um templo sem religião

Como tampouco sabia

Que a casa que ele fazia

Sendo a sua liberdade

Era a sua escravidão.



De fato, como podia

Um operário em construção

Compreender por que um tijolo

Valia mais do que um pão?

Tijolos ele empilhava

Com pá, cimento e esquadria

Quanto ao pão, ele o comia...

Mas fosse comer tijolo!

E assim o operário ia

Com suor e com cimento

Erguendo uma casa aqui

Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente

Um quartel e uma prisão:

Prisão de que sofreria

Não fosse, eventualmente

Um operário em construção.



Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

- Garrafa, prato, facão -

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo o que existia

Era ele quem o fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão.



Ah, homens de pensamento

Não sabereis nunca o quanto

Aquele humilde operário

Soube naquele momento!

Naquela casa vazia

Que ele mesmo levantara

Um mundo novo nascia

De que sequer suspeitava.

O operário emocionado

Olhou sua própria mão

Sua rude mão de operário

De operário em construção

E olhando bem para ela

Teve um segundo a impressão

De que não havia no mundo

Coisa que fosse mais bela.



Foi dentro da compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo

Em largo e no coração

E como tudo que cresce

Ele não cresceu em vão

Pois além do que sabia

- Exercer a profissão -

O operário adquiriu

Uma nova dimensão:

A dimensão da poesia.



E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.



E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas

A que não dava atenção:



Notou que sua marmita

Era o prato do patrão

Que sua cerveja preta

Era o uísque do patrão

Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão

Que o casebre onde morava

Era a mansão do patrão

Que seus dois pés andarilhos

Eram as rodas do patrão

Que a dureza do seu dia

Era a noite do patrão

Que sua imensa fadiga

Era amiga do patrão.



E o operário disse: Não!

E o operário fez-se forte

Na sua resolução.



Como era de se esperar

As bocas da delação

Começaram a dizer coisas

Aos ouvidos do patrão.

Mas o patrão não queria

Nenhuma preocupação

- "Convençam-no" do contrário -

Disse ele sobre o operário

E ao dizer isso sorria.



Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção

Viu-se súbito cercado

Dos homens da delação

E sofreu, por destinado

Sua primeira agressão.

Teve seu rosto cuspido

Teve seu braço quebrado

Mas quando foi perguntado

O operário disse: Não!



Em vão sofrera o operário

Sua primeira agressão

Muitas outras se seguiram

Muitas outras seguirão.

Porém, por imprescindível

Ao edifício em construção

Seu trabalho prosseguia

E todo o seu sofrimento

Misturava-se ao cimento

Da construção que crescia.



Sentindo que a violência

Não dobraria o operário

Um dia tentou o patrão

Dobrá-lo de modo vário.

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário

Fez-lhe esta declaração:

- Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser.

Dou-te tempo de lazer

Dou-te tempo de mulher.

Portanto, tudo o que vês

Será teu se me adorares

E, ainda mais, se abandonares

O que te faz dizer não.



Disse, e fitou o operário

Que olhava e que refletia

Mas o que via o operário

O patrão nunca veria.

O operário via as casas

E dentro das estruturas

Via coisas, objetos

Produtos, manufaturas.

Via tudo o que fazia

O lucro do seu patrão

E em cada coisa que via

Misteriosamente havia

A marca de sua mão.

E o operário disse: Não!



- Loucura! - gritou o patrão

Não vês o que te dou eu?

- Mentira! - disse o operário

Não podes dar-me o que é meu.



E um grande silêncio fez-se

Dentro do seu coração

Um silêncio de martírios

Um silêncio de prisão.

Um silêncio povoado

De pedidos de perdão

Um silêncio apavorado

Com o medo em solidão.



Um silêncio de torturas

E gritos de maldição

Um silêncio de fraturas

A se arrastarem no chão.

E o operário ouviu a voz

De todos os seus irmãos

Os seus irmãos que morreram

Por outros que viverão.

Uma esperança sincera

Cresceu no seu coração

E dentro da tarde mansa

Agigantou-se a razão

De um homem pobre e esquecido

Razão porém que fizera

Em operário construído

O operário em construção.



(Rio de Janeiro, 1959)



(Ilustração: Edvard Munch - Workers Returning Home, 1913-1915)

quinta-feira, 17 de abril de 2025

COMO NASCEU O CAJÓN COMO INSTRUMENTO MUSICAL, de Mario Vargas Llosa

 


O cajón é uma grande invenção da música peruana cuja origem se perde na noite dos séculos, embora provavelmente tenha surgido no tempo da Conquista, já que muitos negros e mestiços — escravizados ou livres — vieram com os espanhóis. Nos livros de história há um grande silêncio a respeito dessa população de gente de pele escura que chegava ao Peru desde o final do século junto com os conquistadores — a começar por Cristóvão Colombo — e participou ativamente da tomada de Tahuantinsuyo. Naqueles primórdios distantes, os negros e mestiços chegaram a constituir algumas vezes um terço dos membros das expedições espanholas ao país. E muitos escravizados eram recompensados com a alforria por sua bravura e pelos serviços prestados durante a conquista. O historiador Porras Barrenechea afirma que, apesar das proibições da Inquisição, muitas músicas, cantos e danças africanas se filtraram população adentro desde aquele promissor alvorecer do Peru, em que a população escura vinda da Espanha desempenhou um papel tão importante. Muitos desses negros ou mestiços eram muçulmanos que tinham se convertido ao catolicismo na pátria-mãe, de modo que o islamismo também tem sua participação nas intensas misturas raciais que originaram os peruanos. Em nossas fotografias mais antigas há conjuntos musicais em que o cajón e o cajonista aparecem ocupando um lugar de destaque.

O cajón é indissociável da pobreza e do engenho daqueles que não tinham nenhum dinheiro para comprar uma gaita, uma viola de mão nem, muito menos, um violão. Por isso inventaram esse instrumento musical que acompanha, como se fosse uma sombra, a marinera, a valsa, o huainito e, de modo geral, toda a música criada país afora desde que a independência culminou todas as conspirações dos peruanos buscando se emancipar da tutela estrangeira e o exército do general San Martín chegou do Chile para consagrá-la.

Foi assim que nasceu o cajón como instrumento musical. Quem o inventou? Os historiadores lembram os nomes dos grupos musicais mais antigos — apontam sobretudo os negros — que já o usavam. Mas, embora mencionem muitos nomes, o fato é que ninguém sabe ao certo. E eu penso que, diante da dúvida, devemos designar o cajón como o que ele realmente é: um símbolo do que são capazes os peruanos mais necessitados e amantes da música que, por falta de recursos, recorreram a esse instrumento de percussão para acompanhar os cantores de música criolla.

O cajón é qualquer caixote, claro. Mas, de preferência, feito de madeira dura e envelhecida — o cedro florestal, por exemplo, mas também há muitos de alfarrobo —, porque é a madeira que soa melhor, obediente à mão e ao ritmo. Mais tarde, já nos dias de hoje, as lojas de música inventaram os “cajones de fábrica”, que, como você, leitor, há de imaginar, não costumam ser os melhores, e muitas vezes são bem piores que os outros, os de rua. O som desse instrumento é fascinante. Certa vez uns cantores espanhóis, chegando a Lima direto da Andaluzia, se apaixonaram pelo cajón e o levaram à Espanha, onde parece que se tornou, pelo que me contaram músicos mais viajados, um instrumento típico, em especial no sul do país, ao lado das castanholas e do violão, elementos substanciais do flamenco.

Para ser um bom cajonista é preciso ter mãos endurecidas e calejadas e um bom ouvido — mais nada. E uma voz que não desafine muito. Hoje em dia também se ensina a tocar o instrumento em escolas e conservatórios de música, mas todos dizem que os melhores percussionistas são os de rua, que aprenderam a tocar de ouvido e nunca cometem erros. E é uma maravilha para os olhos e para os ouvidos — sei por que estou dizendo — ver esses artistas populares, às vezes analfabetos, especialistas em tocar cajón, produzindo aqueles sons que, com os dedos e a palma das mãos, vão espalhando pelas melodias que ouvimos da valsa. Dizem que é por isso que os cantores de valsa e marinera sempre exigem que haja um cajonista nos grupos musicais que os acompanham. É verdade que os melhores executantes e cultores do instrumento, em geral incorporados à bateria, são homens, mas já existem algumas mulheres que tocam também, em especial entre as andaluzas e limenhas, e o fazem com a mesma elegância e bom ouvido. É com prazer que cito aqui alguns exemplos de cajonistas famosos de Lima; todos os que atuam em grupos mais ou menos conhecidos o são.

Dizem, por exemplo, que o pai da famosa Lala Solórzano, o sr. Juanito Solórzano, era um grande cajonista que até morrer, de pura velhice, quando estava prestes a completar cem anos, ainda era um astro tocando esse instrumento no cortiço de Morones, onde morava com sua multidão de netos, bisnetos e achegados.

Atualmente o cajón se espalhou pelo mundo inteiro e muitos países reivindicam o crédito por tê-lo descoberto. Mas o fato é que é peruano. Nasceu aqui, para orgulho da nossa música. E aqui temos os melhores cajonistas, para nosso orgulho. Não só em Lima, claro. Também em todas as províncias do litoral e da montanha. E até na Amazônia. Sem o cajón, a música peruana não seria o que é. Seu som tem um gostinho especial, uma alma de madeira. Nossa marinera, nossas polcas, nossas valsas não seriam as mesmas sem esse perfume das árvores e das plantas das nossas florestas, sobretudo da Amazônia. É isso que o cajón nos proporciona. E quanto mais velho, melhor. Por isso os nossos cajonistas mantêm seus instrumentos até literalmente se desmancharem.

Já ouviram o Manco Lañas tocando? O Manco Lañas nunca quis entrar num grupo musical, apesar das muitas propostas que recebeu. De vez em quando aparece em algum palco ou numa boate, com a irregularidade dos boêmios, quando sabe que vai encontrar um conjunto que aprova. E então começa a tocar.

Deus do céu, que ouvidos e que mãos. Lañas é um homenzinho insignificante, teve poliomielite na infância, mas quando toca ele cresce, engorda e parece até que se levanta. É uma espécie de Lalo Molfino do cajón. E hoje ninguém tenta mais contratá-lo. Já se cansaram. Todos os grupos ficam apenas à espera de que ele apareça e os acompanhe. Há muitos cajonistas magníficos no Peru. Outro grande é o que acompanhava Chabuca Granda em suas turnês internacionais: Carlos “Caitro” Soto, majestoso com seu famoso cajón.

Em seu interessante livro sobre a valsa peruana (intitulado El Waltz y el valse criollo), César Santa Cruz Gamarra, irmão de Victoria, a ilustre folclorista, diz que na década de 1950 havia três grandes cajonistas no país: Francisco Monserrate, Víctor Arciniega, o “Gancho”, e Juan Manuel Córdova, apelidado de “Pibe Piurano”, especialista em tonderos, sobretudo. E também que esses bateristas participavam dos programas de rádio, quase sempre ao final, pois costumavam encerrar com alguma marinera ou tondero do Norte. E que foi Yolanda Vigil, dona do mais belo apelido, “a Peruana”, quem introduziu a música criolla com seu show no Embassy, em Lima e no grande espaço nacional, e o fez com a graça e a brejeirice típicas da mulher do litoral. Segundo ele, só a partir de então a música criolla rompeu a carapaça que a restringia aos cortiços e se espalhou por todo o país.

Sem desmerecer a sabedoria do ilustre Cruz Gamarra, creio que foi um pouco antes disso que a música criolla começou a ganhar terreno e foi se impondo em todos os setores do Peru, com diversos coletivos sociais adotando o cajón e os cajonistas como um fato essencial do gênero, inseparável dele, como mais tarde seria reconhecido.

Por outro lado, César Santa Cruz Gamarra não parece ser de todo simpático a essa expansão da música criolla na década de 1950, que se deveu sobretudo aos programas de rádio. Pelo contrário, manifesta seu descontentamento, como se a valsa, ao se espalhar pelos estratos sociais, tivesse perdido algo da sua qualidade, da sua originalidade, e, mais que isso, houvesse empobrecido. Eu não concordo com ele, é claro. Para mim, essa ruptura do pequeno círculo em que a música peruana estivera confinada até então foi a melhor coisa que nos aconteceu como país. Foi um grande mérito dessa arte, com a qual enfim puderam nascer as canções que os peruanos, de qualquer classe social, passaram a reconhecer como próprias.

César Santa Cruz Gamarra chegou a ter um grande destaque em nosso país, primeiro como intérprete e compositor de canções, depois como decimero, isto é, como autor de décimas, que improvisava com uma facilidade enorme perante diversos públicos, retomando uma antiquíssima tradição nacional cuja origem se perde nos anos da colônia. Ele ressuscitou essa tradição e se tornou muito popular, apesar dos preconceitos que marginalizavam os negros na época. Embora fosse um negro retinto, não fazia parte dos setores mais pobres do país. Nasceu na classe média, passou a infância no bairro de La Victoria, em Lima, e vários de seus parentes — em especial sua irmã Victoria — contribuíram com muito talento para enriquecer o folclore nacional, tanto pelas informações divulgadas em artigos, conferências e livros como pela prática do canto e da dança, que trouxe fama a todos os membros dessa família. Mas foi César Santa Cruz Gamarra, com as suas décimas, que ficou célebre em todo o país. Depois partiu para a Espanha, onde, provavelmente com menos sucesso que aqui, divulgou a música criolla e se tornou bastante conhecido. Creio que morreu lá, onde sem dúvida deixou um bom número de admiradores.

Como decimero, ele era insubstituível e foi muito amado e respeitado. É verdade que sabia de cor muitas das décimas que declamava e já as tinha usado em diferentes circunstâncias, mas outras vezes realmente improvisava, em resposta aos estímulos que ia recebendo, e o fazia de forma maravilhosa. Tive oportunidade de ouvi-lo diversas vezes, em apresentações públicas ou em programas de rádio, e não se pode negar que recitava com uma facilidade extraordinária, de uma forma inesquecível, muito pessoal, que desencadeava aplausos formidáveis. Era figura popular em todos os ambientes peruanos, e talvez sua ida para a Espanha o tenha prejudicado, porque em Madri perdeu o clamor da pátria e nunca gozou da enorme celebridade que tinha no Peru. Essa posição de destaque, infelizmente, César Santa Cruz Gamarra não conseguiria ter entre os espanhóis.



(Dedico a você meu silêncio; tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman)



(Ilustração:grupo de percussionistas negros peruanos; foto da internet, sem indicação de autoria)

sexta-feira, 11 de abril de 2025

AN EINEN VORGEBORENEN / ÀQUELE QUE NASCEU ANTES, de Max Czollek

 


I.



in die städte kam ich zur stunde

der hochzeiten als da

freude herrschte

unter den menschen



ich tanzte mit ihnen



schlief unter den stummen

ohne sprache den mund voll

gestopft mit brücken



die kraft meiner arme

ging in koffern

trug ich die angst



II.



es ist wahr

ich tauchte im großen meer

verlor mein haar dabei



getragen von glück

als das aussetzte

war ich unterwegs



die hoffnung dünn wie ein blatt

im wald (ich rede von bäumen

rede ich)



und kann den weg nicht finden

zu den häusern aus luft



III.



wirklich ich lebe in zeiten

wo die unglücklichen nicht

mehr weinen wir einfach

weiterschreiben – überall

die finger am abzug wer

kann da noch freundlich

bleiben was hilft es wozu

sind wir geworden am ende

der eismeere



wohin die straßen führten

zu meiner zeit



Tradução de Ricardo Domeneck:



I.



cheguei às cidades à hora

das bodas quando

ali a alegria imperava

entre os homens



eu dancei com eles



dormi entre os mudos

sem língua a boca cheia

entupida de pontes



a força dos meus braços

foi-se em malas

carreguei o medo



II.



é verdade

mergulhei no mar cheio

perdi nisso os cabelos



carregado pela sorte

quando isso falhou

eu estava de partida



a esperança magra feito folha

na mata (eu falo de árvores

eu falo)



e não encontro o caminho

para as casas de ar



III.



de verdade vivo em tempos

em que os infelizes nem

choram mais nós somente

escrevemos adiante – por todo

lado os dedos em gatilhos quem

pode seguir simpático de que

adianta por que nos tornamos

ao fim do oceano ártico



aonde levavam as ruas

para o meu tempo



(Nota do blogger: o autor faz referência ao poema de Brecht, “Aos que vierem depois de nós”, ou é uma resposta a ele. Leia Brecht neste mesmo blog, em várias traduções:

https://trapichedosoutros.blogspot.com/search/label/Brecht%20-%20An%20Die%20Nachgeborenen%20%2F%20Aos%20que%20vir%C3%A3o%20depois%20de%20n%C3%B3s%2F%20Aos%20que%20v%C3%A3o%20nascer)



(Ilustração: Hannah Höch)

terça-feira, 8 de abril de 2025

DO VALE DA MORTE, de Olga Tokarczuk

 


Com a minha idade e nas minhas condições atuais, deveria sempre lavar bem os pés antes de dormir, caso uma ambulância precise vir me buscar à noite.

Se tivesse examinado nas Efemérides o que acontecia no céu naquela noite, nem me deitaria para dormir. Entretanto, caí num sono muito profundo; recorri ao chá de lúpulo e tomei ainda dois comprimidos de valeriana. Por isso, quando fui acordada no meio da noite pelo som — violento, excessivo, e por isso agourento — de alguém batendo na minha porta, não consegui me recompor. Levantei às pressas e fiquei em pé junto da cama, vacilando, pois o corpo sonolento, trêmulo, não conseguia dar o salto da inocência do sono para a vigília. Desfaleci e cambaleei, como se estivesse prestes a perder a consciência. Isso tem me acontecido ultimamente, e está relacionado com as minhas moléstias. Precisei me sentar e repetir algumas vezes para mim mesma: estou em casa, é noite, alguém está batendo na porta, e só então é que consegui controlar os nervos. Enquanto procurava os chinelos no escuro, podia ouvir que aquele que tinha batido agora circundava a casa, murmurando. No térreo, na caixa do relógio de luz, guardo gás de pimenta que ganhei de Dionísio por causa dos caçadores ilegais. Foi justamente nele que pensei agora. Consegui achar na escuridão o formato frio e familiar do aerossol e, assim armada, acendi a luz do lado de fora. Olhava para o alpendre pela janela lateral.

A neve rangeu e apareceu no meu campo de visão o vizinho que costumo chamar de Esquisito. Estava enrolado numa velha samarra, com a qual às vezes o via quando trabalhava do lado de fora de casa. Debaixo dela podia ver seu pijama listrado e suas botas pesadas para caminhar nas montanhas.

— Abra — disse.

Com um espanto evidente olhou para o meu terno de linho (durmo vestida com as peças que o Professor e sua esposa quiseram jogar fora no verão, e que me lembram da moda antiga e da minha juventude. Assim, combino o útil com o sentimental) e entrou sem pedir licença.

— Vista-se, por favor. Pé Grande morreu.

Por um instante perdi a fala e, em silêncio, calcei as botas de cano alto e vesti o primeiro casaco de frio que encontrei no cabideiro. Lá fora, a neve, na mancha de luz jogada pelo abajur no alpendre, virava uma ducha vagarosa e sonolenta. Esquisito estava do meu lado, calado, alto, esbelto e ossudo como uma silhueta esboçada com alguns riscos a lápis. A neve caía do seu corpo ao mínimo movimento, como se fosse um cavaquinho polvilhado com açúcar de confeiteiro.

— Como assim “está morto”? — perguntei, por fim, ao abrir a porta, com a garganta apertada, mas ele não me respondeu.

De modo geral, ele fala pouco. Deve ter Mercúrio num signo silencioso, acho que em Capricórnio ou em conjunção, quadratura, ou talvez em oposição a Saturno. Podia ser, também, um Mercúrio retrógrado — que, nesse caso, acarretava discrição.

Saímos de casa e, imediatamente, nos envolveu esse ar muito familiar — frio e úmido — que nos relembra todos os invernos que o mundo não fora criado para a humanidade, e durante pelo menos a metade do ano nos demonstra a sua hostilidade. O frio atacou brutalmente as nossas bochechas, e emergiram nuvens brancas de vapor de nossas bocas. A luz no alpendre se apagou automaticamente e caminhamos pela neve crepitante na escuridão completa, a não ser pela lanterna de cabeça de Esquisito que penetrava as trevas num único ponto oscilante logo à sua frente. Eu andava na penumbra, saltitando às suas costas.

— Não tem lanterna? — perguntou.

Claro que tinha, mas conseguiria achá-la apenas de manhã, à luz do dia. Com as lanternas é sempre assim: são visíveis só durante o dia.

A casa de Pé Grande ficava um pouco afastada, acima das demais. Era uma das poucas habitadas durante o ano inteiro. Apenas ele, Esquisito e eu vivíamos aqui sem temer o inverno; os outros moradores fechavam a casa já em outubro; esvaziavam os canos de água e voltavam para a cidade.

Desviamos então levemente da estrada, desobstruída, que passa pelo nosso vilarejo e se ramifica em trilhas que levam às respectivas casas. Um caminho pela neve profunda, tão estreito que nos obrigava a pisar colocando um pé atrás do outro, alternadamente, enquanto tentávamos manter o equilíbrio, nos guiava até Pé Grande.

— Não vai ser uma imagem nada agradável — avisou Esquisito, virando-se para mim e, por um átimo, me cegando completamente. Não esperava nada de diferente. Silenciou por um instante e, em seguida, disse, como se quisesse se desculpar:

— Fiquei preocupado com a luz acesa na cozinha e o latido desesperado da cadela. Você não ouviu nada?

Não, não ouvi. Estava dormindo, entorpecida pelo lúpulo e pela valeriana.

— Onde ela está agora, essa cadela?

— Levei embora, está na minha casa. Eu a alimentei e ela pareceu se acalmar. Mais um instante de silêncio. — Ele sempre ia dormir cedo e apagava as luzes para economizar, e dessa vez a luz ficou acesa o tempo todo. Uma faixa brilhante de luz sobre a neve, visível da janela do meu quarto. Foi por isso que decidi ir até lá. Pensei que ele poderia estar bêbado, ou que estivesse implicando com o cão, para que latisse daquele jeito.

Passamos por um estábulo arruinado e, logo em seguida, a lanterna de Esquisito caçou na escuridão dois pares de olhos reluzentes, esverdeados, fluorescentes.

— Olha só, corças — eu disse num sussurro excitado e agarrei a manga de sua samarra. — Chegaram muito perto da casa. Não têm medo?

As corças estavam com as patas imersas na neve até a altura da barriga. Olhavam para nós com calma, como se as tivéssemos apanhado no meio de um ritual cujo sentido não conseguimos entender. Estava escuro, portanto não sabia reconhecer se eram as mesmas jovens que vieram da República Tcheca no outono. Ou será que eram outras, novas? E por que, essencialmente, havia apenas duas? Aquelas eram no mínimo quatro.

— Voltem para casa — eu disse, espantando-as com as mãos. Estremeceram, mas não se moveram. Elas calmamente nos acompanharam com o olhar até a porta. Senti calafrios.

Enquanto isso, Esquisito limpava os sapatos, batendo os pés contra o solo diante da porta de uma casa descuidada. As pequenas janelas haviam sido calafetadas com papéis de vedação e plástico. Feltro betumado cobria as portas de madeira.

Pedaços de lenha de diversos tamanhos recobriam as paredes do vestíbulo. Era, de fato, um interior desagradável, sujo e descuidado. Sentia-se o cheiro de mofo, madeira e terra — molhada e voraz. O odor de fumaça, de longa data, envolveu as paredes com uma camada de gordura.

A porta da cozinha estava entreaberta. Assim, de imediato avistei o corpo de Pé Grande prostrado no chão. Meu olhar roçou nele fugazmente, para logo recuar. Demorou um bocado antes que eu conseguisse olhar para lá outra vez. Era uma cena horrível.

Estava deitado, retorcido numa posição estranha, com as mãos junto do pescoço como se quisesse afrouxar a gola apertada. Ia me aproximando aos poucos, como que hipnotizada. Vi os seus olhos abertos fixados em algum ponto debaixo da mesa. A camiseta suja estava rasgada na altura da garganta. Parecia que o seu corpo tinha travado uma luta consigo mesmo, foi derrotado e se entregou. Fiquei com frio de tanto horror, meu sangue gelou nas veias e senti como se tivesse cedido para o próprio fundo do meu corpo. Ainda ontem havia visto esse corpo vivo.

— Meu Deus — balbuciei. — O que aconteceu?

Esquisito deu de ombros.

— Não consigo ligar para a polícia, o sinal da operadora tcheca deu interferência outra vez.

Tirei meu celular do bolso e digitei o número que conhecia da televisão — 997 — e, em seguida, uma voz tcheca automática ressoou no aparelho. Aqui é assim. O sinal vagueia, sem se importar com as fronteiras nacionais. Às vezes, a fronteira entre as operadoras ficava por um tempo na minha cozinha. Outras, se fixava durante alguns dias junto à casa de Esquisito ou no terraço. No entanto, era difícil prever o seu caráter quimérico.

— Você devia ter subido a colina — o aconselhei tardiamente.

— O corpo vai enrijecer por completo antes que eles cheguem — disse Esquisito num tom que eu não gostava, particularmente no seu caso: era um tom sabichão. Tirou a samarra e a pendurou no encosto da cadeira. — Não podemos permitir que fique assim. Está com um aspecto repugnante, mas, enfim, era nosso vizinho.

Olhava para o pobre e retorcido corpo de Pé Grande e me custava entender que ainda ontem tinha medo desse homem. Não gostava dele. Talvez não gostar fosse até um eufemismo. Deveria, aliás, dizer: ele me parecia repugnante, horrível. De fato, nem sequer o considerava um ser humano. Agora estava prostrado no chão manchado usando uma cueca suja, pequeno e magro, impotente e inofensivo. Ora, um fragmento de matéria que, em consequência de transformações difíceis de ser imaginadas, virou um ser frágil, isolado de tudo. Fiquei triste, extremamente triste, pois mesmo uma pessoa tão desagradável não merecia morrer. Aliás, quem mesmo merece morrer? Eu também compartilharei o mesmo destino, assim como Esquisito e aquelas corças lá fora; todos nós seremos um dia nada mais que um corpo morto.

Olhei para Esquisito, na esperança de algum consolo, mas ele já tinha se entregado à tarefa de arrumar a cama revirada, improvisada sobre um sofá-cama em ruínas, então fiz o possível para me consolar sozinha. Passou, então, pela minha cabeça a ideia de que a morte de Pé Grande poderia ser considerada, de alguma forma, algo bom, pois o libertou da bagunça que era a sua vida. E libertou outros seres vivos dele. Eis que, repentinamente, me dei conta dos benefícios da morte e de como ela era justa, à semelhança de um desinfetante ou de um aspirador. Admito, foi o que pensei, e continuo com a mesma convicção. Era meu vizinho, menos de um quilômetro de distância separava as nossas casas, mas, por sorte, o meu contato com Pé Grande era esporádico. Normalmente avistava-o de longe — sua figura franzina e rija, sempre um pouco instável, se deslocava com a paisagem ao fundo. Ao andar, balbuciava algo e, de vez em quando, a acústica ventosa do planalto propagava os farrapos desse monólogo, essencialmente simples e pouco diversificado, trazendo-os até mim. Seu vocabulário era composto principalmente de palavrões aos quais acrescentava apenas nomes próprios.

Conhecia cada pedaço de terra deste lugar, pois parece que nasceu aqui e nunca foi além de Kłodzko. Era perito na floresta — sabia como usá-la para ganhar dinheiro, o que poderia vender e para quem. Cogumelos, mirtilos, lenha roubada, gravetos para acender o fogo, armadilhas, o rali offroad anual, as caçadas. A floresta alimentava esse pequeno gnomo, e por isso ele deveria respeitá-la, mas não era o caso. Uma vez, em agosto, durante a estiagem, ele incendiou todo o mirtileiro. Liguei, aliás, para os bombeiros, mas não consegui salvar quase nada. Nunca soube por que ele fez aquilo. No verão, caminhava pelas redondezas com uma serra e cortava as árvores cheias de seiva. Quando chamei sua atenção, reprimindo a raiva com dificuldade, ele respondeu de forma simples: “Cai fora, sua velha”. Só que com mais grosseria. Ele sempre ganhava um dinheirinho extra roubando alguma coisa, dando um jeitinho; quando os veranistas deixavam uma lanterna ou um podador no quintal, Pé Grande sempre aproveitava a ocasião para levar tudo e depois vender na cidade. Na minha opinião, inúmeras vezes deveria ter recebido punições, ou até ido para a cadeia. Não sei como sempre saía impune. Talvez tivesse a proteção de certos anjos; às vezes eles tomam o lado errado.

Sabia também que ele caçava ilegalmente de todas as formas possíveis. Tratava a floresta como se fosse a sua própria fazenda — tudo o que havia lá lhe pertencia. Era do tipo saqueador. Passei muitas noites em claro por sua causa. Por impotência. Algumas vezes liguei para a polícia — quando alguém enfim atendia, minha denúncia era registrada, mas nada acontecia. Pé Grande outra vez percorria o seu caminho com uma armadilha no ombro, gritando de forma agourenta. Uma divindade pequena e malvada. Maldosa e imprevisível. Sempre estava um pouco embriagado, e era provavelmente isso que lhe despertava o humor rancoroso. Balbuciava e batia nos troncos das árvores com uma vara, como se quisesse espantá-las do seu caminho. Ele parecia já ter nascido num leve estado de entorpecimento. Muitas vezes eu segui os seus caminhos e recolhi as armadilhas grosseiras de arame que ele deixava para os animais, laços amarrados a pequenas árvores inclinadas de tal forma que o animal preso neles era lançado para o alto, como se tivesse sido arremessado de uma atiradeira, e ficava suspenso no ar. Às vezes, achava animais mortos — lebres, texugos e corças.

— Precisamos transferi-lo para o sofá-cama — disse Esquisito.

Não gostei dessa ideia. Não gostei da ideia de tocar nele.

— Acho que deveríamos esperar pela polícia — disse, mas Esquisito já tinha arranjado espaço no sofá-cama e arregaçado as mangas do suéter. Ele me fulminou com seus olhos claros.

— Você não gostaria de ser encontrada assim, não é? Nessas condições. Isso é desumano.

Pois é, o corpo humano é certamente desumano. Especialmente um corpo morto.

Não era um paradoxo sinistro que agora nós precisássemos nos ocupar com o corpo de Pé Grande, que ele tivesse nos deixado esse último problema? Nós, os vizinhos que ele nunca respeitou, de quem não gostava, e com quem nunca se importou?

Na minha opinião, depois da morte, a matéria deveria ser aniquilada. Seria o método mais adequado para lidar com o corpo. Assim, os corpos aniquilados voltariam diretamente para os buracos negros de onde vieram. As almas viajariam para a luz com a velocidade da luz. Isso se de fato existir algo como a alma.

Quebrando uma terrível resistência, eu agia conforme Esquisito mandava. Seguramos o corpo pelas pernas e braços e o transferimos para o sofá-cama. Para minha surpresa, constatei que ele era pesado, mas não de todo inerte, teimosamente rijo como lençóis recém-engomados. Vi também as suas meias, ou aquilo que ele usava nos pés — panos sujos, grevas feitas de um lençol rasgado em tiras, agora cinzento de tão manchado. Não sei por que a imagem dessas grevas causou em mim um impacto tão forte que me atingiu no peito, no diafragma, no corpo inteiro, de tal forma que já não conseguia estancar o soluço. Esquisito olhou para mim com frieza, de relance, e com uma nítida reprovação.

— Precisamos vesti-lo antes que cheguem — disse Esquisito, e notei que o seu queixo também tremia ao olhar para essa miséria humana (embora por algum motivo não quisesse admiti-lo).

Primeiro tentamos remover sua camiseta suja e fedorenta, mas não havia como tirá-la pela cabeça, então Esquisito sacou do bolso um canivete complexo e rasgou o tecido ao longo do peito. Pé Grande estava prostrado agora diante de nós em cima do sofá-cama, seminu, peludo como um troll, com cicatrizes no peito e nas mãos, com tatuagens já ilegíveis, entre as quais não conseguia reconhecer nada que fizesse sentido. Seus olhos estavam ironicamente semicerrados enquanto procurávamos no armário quebrado algo decente para vestir antes que o seu corpo endurecesse para sempre e voltasse a ser aquilo que essencialmente era — um torrão de matéria. A cueca rasgada aparecia debaixo das calças de moletom prateadas, novinhas em folha.

Desenrolei cuidadosamente as grevas repulsivas e vi os seus pés. Fiquei surpresa. Sempre tive a impressão de que os pés são a parte do corpo mais íntima e pessoal, e não os genitais, ou o coração, nem mesmo o cérebro — órgãos insignificantes e supervalorizados. É nos pés que se encontra todo o conhecimento sobre o ser humano, é para lá que flui todo o sentido fundamental daquilo que realmente somos e de como nos relacionamos com a terra. Todo o mistério — o fato de sermos compostos de elementos da matéria e, ao mesmo tempo, estranhos a ela, isolados — jaz no contato com a terra, em sua ligação com o corpo. Os pés são nossos pinos da tomada. Contudo, nesse momento, esses pés nus eram, para mim, a prova de sua estranha ascendência. Não podia se tratar de um ser humano. Devia constituir uma forma inclassificada, uma daquelas que, como disse Blake, dissolvem os metais em vastidão, transformam a ordem em caos. Talvez ele fosse uma espécie de demônio.

As criaturas demoníacas sempre podem ser reconhecidas pelos pés, pois carimbam a terra com um selo distinto.

Esses pés — muito compridos e finos, com dedos delgados e unhas negras e disformes — pareciam preênseis. O dedão destacava-se levemente dos restantes, como um polegar. Estavam cobertos por uma pelagem negra e espessa. Alguém já viu algo parecido? Esquisito e eu trocamos olhares.

No armário quase vazio encontramos um terno cor de café um tanto manchado, mas obviamente pouco usado. Nunca o tinha visto com ele. Pé Grande sempre usava valenkis, calças desgastadas, uma camisa xadrez e um colete acolchoado, independentemente da época do ano.

Associei o ato de vestir o morto a uma forma de carícia. Duvido que ele tenha recebido tanto carinho enquanto vivo. Nós o seguramos gentilmente pelos braços e o vestimos. Sustentava seu peso com meu peito e, depois de uma onda inevitável de asco que me deixou nauseada, de repente me ocorreu abraçar esse corpo, dar tapinhas nas suas costas para acalmá-lo e dizer: não se preocupe, vai ficar tudo bem. Não o fiz porque Esquisito estava presente e poderia pensar que era algum tipo de perversão.

Meus gestos abortados transformaram-se em pensamentos e fiquei com pena de Pé Grande. Talvez sua mãe o tenha abandonado, e ele tenha sido infeliz durante toda a sua triste vida. Longos anos de infelicidade degradam um homem mais do que uma doença letal. Nunca vi convidados em sua casa, não aparecia nenhuma família, nem amigos. Nem sequer os catadores de cogumelos paravam na frente de sua casa para conversar. As pessoas tinham medo e não gostavam dele. Parece que andava apenas com os caçadores, mas mesmo isso era raro. Eu diria que ele tinha por volta de cinquenta anos. Quem me dera ver a sua oitava casa para verificar se havia lá a conjunção de Netuno, Plutão e Marte em algum aspecto no ascendente, pois, com aquela serra de dentes afiados nas mãos, lembrava um predador que vivia apenas para semear a morte e provocar sofrimento.

Esquisito o sentou para lhe vestir o paletó. Percebemos, então, que sua língua grande e inchada prendia algo na boca. Assim, depois de um momento de hesitação, cerrando os dentes de asco e retirando a mão sucessivas vezes, segurei o objeto pela ponta e percebi que o que tinha apanhado entre os dedos era um osso longo e fino, afiado como um punhal. Um som gutural e um pouco de ar emergiram da boca morta formando um assovio suave que lembrava um suspiro. Ambos pulamos para trás. Esquisito deve ter sentido o mesmo que eu: horror. Sobretudo porque, depois de um instante, um sangue escuro, quase negro, apareceu na boca de Pé Grande. Um fio sinistro começou a verter dali.

Ficamos paralisados, aterrorizados.

— Então — Esquisito disse com uma voz trêmula — ele se engasgou. Ele se engasgou com um osso. Um osso ficou preso em sua garganta, engoliu um osso, se engasgou — repetia nervosamente. E depois, como se estivesse acalmando a si próprio, acrescentou: — Mãos à obra. Não é um prazer, mas nossos deveres com os vizinhos nem sempre são prazerosos.

Percebi que ele se autodeclarara o chefe desse plantão noturno e me subordinei a ele.

Entregamo-nos por completo ao trabalho ingrato de meter Pé Grande no terno cor de café e acomodá-lo numa posição digna. Fazia bastante tempo que eu não tocava em nenhum corpo estranho, muito menos num morto. Eu podia sentir a inércia fluindo rapidamente dentro dele, que se tornava mais rígido a cada minuto. Era por isso que tínhamos tanta pressa. E, no momento em que Pé Grande estava deitado vestido com seu melhor terno, seu rosto enfim perdeu a expressão humana, e ele definitivamente virou um cadáver. Apenas o dedo indicador da mão direita não queria se sujeitar complacentemente à tradicional posição das mãos entrelaçadas, e se erguia para o alto, como se quisesse atrair nossa atenção e interromper por um instante nosso esforço nervoso e apressado. “E agora prestem atenção!”, dizia esse dedo. “Agora prestem atenção, há algo que vocês não enxergam, o ponto de partida essencial de um processo oculto, mas digno da maior atenção. Graças a ele todos nós nos encontramos neste lugar e tempo, numa pequena casa no planalto, entre a neve e a noite. Eu como um corpo morto, e vocês como seres humanos pouco importantes e um tanto envelhecidos. Contudo, é apenas o início. Tudo está apenas começando.”

Lá estávamos nós, num cômodo frio e úmido, no vazio gelado que tomou conta daquela hora cinzenta e monótona, e me ocorreu que aquilo que se desprende do corpo suga um pedaço do mundo, e não importa o quanto foi bom ou mau, culpado ou imaculado, ele deixa atrás de si um grande nada.

Olhei pela janela. Amanhecia e, aos poucos, os vagarosos flocos de neve começaram a preencher esse vácuo. Caíam vagarosamente, vacilando no ar e girando em torno do seu próprio eixo como se fossem plumas.



Pé Grande já partira, portanto não havia sentido em guardar qualquer ressentimento ou mágoa. Permaneceu apenas um corpo morto, enfardado num terno. Nesse momento parecia tranquilo e contente, como se o espírito se alegrasse de ter se livrado, enfim, da matéria, e a matéria contentava-se de finalmente ter se livrado do espírito. Durante esse curto espaço de tempo efetuou-se um divórcio metafísico. O fim.

Sentamo-nos à porta da cozinha e Esquisito pegou uma garrafa de vodca aberta que estava sobre a mesa. Achou um copo limpo e o encheu — primeiro para mim, depois para ele. A alvorada, leitosa como as lâmpadas hospitalares, penetrava lentamente pelas janelas nevadas e nessa luz percebi que Esquisito estava com a barba por fazer, uma barba tão branca quanto o meu cabelo, e que o seu pijama de listras esmaecidas aparecia desabotoado debaixo da samarra, que estava suja, com todos os tipos possíveis de manchas.

Tomei um grande copo de vodca que me aqueceu por dentro.

— Acho que cumprimos nosso dever com ele. Quem mais teria feito isso? — disse Esquisito, dirigindo-se mais para si mesmo do que para mim. — Era um pequeno filho da mãe miserável, mas e daí?

Encheu mais um copo, o tomou de uma vez e depois sacudiu-se, enojado. Claramente não estava acostumado a beber.

— Vou telefonar — disse e saiu. Pensei que estivesse tonto. Levantei-me e comecei a observar essa terrível bagunça. Esperava achar em algum lugar a carteira de identidade de Pé Grande com a sua data de nascimento. Queria saber, verificar seus números.

Sobre a mesa coberta por uma toalha impermeável gasta, havia uma caçarola com pedaços assados de algum animal; na panela ao lado, dormia um pouco de borsch sob uma camada branca de gordura. Uma grossa fatia de pão, a manteiga envolta em papel vegetal. No chão revestido de linóleo rasgado ainda havia alguns restos de animais, espalhados, caídos da mesa junto com o prato, o copo e os pedaços de bolacha. Tudo isso estava esmagado, pisoteado no chão sujo.

Foi então que vi algo numa bandeja de metal sobre o parapeito da janela que o meu cérebro, num esforço de fugir, reconheceu apenas depois de um longo instante: era a cabeça de uma corça cortada com precisão. Junto dela havia quatro patas. Os olhos semicerrados devem ter seguido, constante e atentamente, todos os nossos passos.

Sim, era uma dessas jovens esfomeadas que, no inverno, se deixam atrair ingenuamente pelas maçãs congeladas e, apanhadas na armadilha, morrem em tormento, estranguladas pelo arame. Enquanto percebia, aos poucos, segundo após segundo, o que acontecera ali, fui tomada pelo horror. Ele apanhou a corça na armadilha, a matou, então esquartejou, assou e comeu seu corpo. Uma criatura havia comido outra no silêncio e na quietude da noite. Ninguém protestou, nenhum raio caiu do céu. No entanto, o castigo atingiu o demônio, ainda que nenhuma mão tivesse guiado a morte.



(Sobre os Ossos dos Mortos; tradução de Olga Bagińska-Shinzato)



(Ilustração: Andrea Kowch, 1986)

sábado, 5 de abril de 2025

SONETO ERÓTICO, de anônimo do Século de Ouro espanhol

 




- ¿Qué me quiere, señor ? - Niña, hoderte.

- Dígalo más rodado. - Cabalgarte.

- Dígalo a lo cortés. - Quiero gozarte.

- Dígamelo a lo bobo. - Merecerte.



- ¡Mal haya quien lo pide de esa suerte,

y tú hayas bien, que sabes declararte!

y luego ¿qué harás ? - Arremangarte,

y con la pija arrecha acometerte.



- Tú sí que gozarás mi paraíso.

- ¿Qué paraíso ? Yo tu coño quiero,

para meterle dentro mi carajo.



- ¡Qué rodado lo dices y qué liso!

- Calla, mi vida, calla, que me muero

por culear tiniéndote debajo.



Tradução de José Paulo Paes:



— Que quer de mim, senhor? — Filha, foder-te.

— Diga com mais rodeios. — Cavalgar-te.

— Diga ao modo cortês. — Então, gozar-te.

— Diga ao modo pateta. — Merecer-te.



— Bem hajas que consigo compreender-te

e mal haja quem peça de tal arte.

Depois, o que farás? — Arregaçar-te

e com a pica alçada acometer-te.



— Tu sim hás de gozar meu paraíso.

— Que paraíso? Eu quero é minha porra

metida bem no fundo do teu racho.



— Com que rodeio o dizes, tão precioso!

— Caluda, amor, que de prazer já morra,

fodendo-te, eu por cima, tu por baixo.





Tradução de Silvério Duque:



– De mim, o que quer, Senhor? – Moça, foder-te.

– Diga-o com mais rodeios. – Cavalgar-te.

– Diga, ao modo cortês. – Quero gozar-te.

– Diga-mo feito um bobo. – Merecer-te.



– De certo, muito fiz por receber-te,

e fi-lo bem, pois sabes declarar-te!

– E logo, o que farás? – Arregaçar-te,

e, com minha pica em riste, vou comer-te.



– Tu gozarás, enfim, em meu paraíso…

– Que paraíso? Eu quero é o teu rabo

e nele enfiar inteiro o meu caralho.



– Diga-mo, então, de um modo mais preciso!

– Cala, minha vida, cala, que eu me acabo,

tilintando em teu cu com o meu vergalho.



(Ilustração: Agostino Carracci - Bachus et Ariane)