ANTES DAS REFEIÇÕES
Nunca se assentar sem antes lavar as mãos, porém, limpa, primeiro, as unhas.
Que elas não escondam sujeiras senão podes levar o apelido de “unhas encardidas”.
Antes ainda cuida de urinar, à parte; e, se necessário, esvazia o intestino.
Se te incomoda o cinto apertado, trata de folgar a fivela. Fazer isso, já assentado, não cai bem.
Ao enxugar as mãos, afasta todo tipo de pensamento melancólico de tua mente. Durante a refeição, não deves aparentar tristeza como não entristecer a ninguém.
A ORAÇÃO ANTES DO REPASTO
Se pedirem a ti para abençoar a comida, assume uma atitude de acolhimento total, seja com as mãos, seja com a fisionomia. De frente para a pessoa de maior respeito, ali, presente ou voltado para a imagem do Cristo, se houver. Chegado ao nome de Jesus e de sua mãe, a Virgem Maria, faze flexão com os dois joelhos.
Caso seja tal função confiada a outrem, ouve e responde com a mesma devoção.
LUGAR DE HONRA
De bom grado, cede para algum outro o lugar de honra. Se fores convidado para ocupar um espaço de mais destaque, escusa-te com amabilidade. Se há firme insistência e repetida por várias vezes, sendo que quem roga é uma autoridade, cede com simplicidade. Deixar de anuir já não seria cortesia e, sim, obstinação.
POSIÇÃO DAS MÃOS
Uma vez assentado, pousa as duas mãos sobre a mesa, mas não juntas nem sobre o prato. Igualmente deseducado é ficar com uma ou com as duas mãos sobre o peito.
POSIÇÃO DO CORPO
Não se perdoa a mania de pôr um ou dois cotovelos sobre a mesa. Isso passa despercebido nos velhos e nos doentes. Cortesãos há refinados que se permitem tais posturas. Não dês atenção a eles nem os imites.
Entrementes, sê atento para não incomodar com os cotovelos a quem está assentado ao teu lado. Também não, com os pés, a quem está a tua frente,
Não fiques a balançar sobre a cadeira, apoiando-te, ora sobre uma das nádegas, ora sobre a outra. Tal atitude sugere o trejeito de quem está para liberar gases do tubo digestivo ou, pelo menos, se esforça para tanto.
O correto é ficar de corpo direito, em equilíbrio estável.
O GUARDANAPO
Se te oferecem o guardanapo, coloca-o ao ombro esquerdo ou sobre o braço do mesmo lado.
O CHAPÉU
Sendo indeclinável estar à mesa em companhia de pessoas mais gradas, posto que tens os cabelos bem penteados, dispensa então o chapéu, a menos que o costume do lugar aconselhe diversamente ou haja exigência em contrário por parte da autoridade do anfitrião ao qual não seria airoso contrariar.
Regiões há onde o costume obriga que criança, junto de adultos,
tome a refeição na ponta da mesa, tendo a cabeça coberta.
Em todo caso, a criança não se aproxime da mesa a não ser que expressamente convidada. Também não pode permanecer junto da mesa até o final da refeição. Logo assim que se alimentou, suficientemente, tome do prato e retire-se, após ter saudado os convivas, fazendo uma leve genuflexão máxime àqueles de maior categoria.
TALHERES
O copo fica à direita como também a faca, devidamente asseada, para talhar a carne. O pão à esquerda.
O PÃO
Alguns cortesãos se distraem em apertar o pão com a palma da mão para depois parti-lo em pedaços com as pontas dos dedos. Tu, porém, deves cortá-lo, normalmente, com a faca, sem tirar a côdea ao derredor, mas indo de um lado a outro. Isso sim revela modo de gente refinada.
Os antigos, durante a refeição, tinham um rito religioso de manusear o pão como se fosse objeto sacro. Daí veio o costume de beijá-lo, se ocorre de cair sobre o piso.
BEBIDA
Principiar a refeição bebendo é hábito dos alcoólatras que bebem não por sede e, sim, por impulso. Isso, além de inconveniente, prejudica a saúde.
Não há necessidade alguma de tomar líquido logo depois de ter tomado sopa ou bebido leite.
Aliás, beber mais de duas ou três vezes, no decorrer da refeição não é elegante nem saudável para as crianças. Bebam uma única vez ao começar o segundo prato, principalmente se for um assado. Depois, no final da refeição, bebam, mas sorvendo o líquido com moderação, não engolindo de um sorvo nem fazendo aquele rumor típico de cavalo.
O vinho e a cerveja, que têm igual teor inebriante, prejudicam a saúde das crianças e depravam os costumes.
Preferível mesmo é que a juventude, por ser mais acalorada, beba apenas água.
De acordo .com a idade dos menores é mais adequado tomar água ferventada. Se tal não se adequar ao clima e a outras coisas mais, então bebam cerveja menos forte ou vinho mais suave diluído em água.
Pelo mais, eis alguns dos prêmios que contemplam pessoas dadas ao vinho: dentes amarelados, pálpebras caídas, olhos embaciados, estupor mental, velhice prematura.
Antes de beber, engole a comida. Nunca aproximar o copo dos lábios sem, primeiro, tê-lo limpado com a guardanapo ou com o lenço, principalmente se um dos convivas te apresenta o próprio copo ou se todos bebem da mesma taça.
REPARAR NOS OUTROS
Girar os olhos enquanto se bebe a fim de observar os outros, nada é mais indiscreto. Também é impróprio o costume de inclinar o pescoço para trás, à guisa de cegonhas, a fim de esvaziar o copo até a última gota.
BRINDE
Se alguém levanta um brinde a tua saúde, retribui com cortesia e, tocando os lábios com o copo, limita-te só a umedecê-los, fingindo beber. Isso é quanto basta para também atender ao festivo conviva. Se o indivíduo insiste como vilão, retruca, dizendo que, um dia, como adulto lhe darás troco adequado.
SOFREGUIDÃO EM COMER
Há gente que, mal se aproxima da mesa, mete a mão nas travessas. a saúde das crianças e depravam os costumes. Isso é coisa de lobo ou de quem devora as carnes da panela antes mesmo de serem feitas as libações aos deuses, como diz o provérbio.
Não tocar, de imediato, no prato servido, não só para não só para não ostentar gula, mas ainda por causa do perigo, por vezes, conexo. Se introduzido na boca, sem o devido cuidado, alimento muito quente resulta ser necessário ou cuspir fora ou queimar a goela. Ambas as reações são tão ridículas quanto mortificantes.
Aguarda um pouco. É vantajoso ir-se acostumando ao controle do apetite. Em virtude de tal conselho, e não por causa da idade, que Sócrates sempre declinava tomar da primeira taça.
PRECEDÊNCIA
Quando uma criança toma lugar à mesa em companhia de pessoas mais velhas, seja a última a servir-se da travessa, e mesmo assim, após ter sido convidada. É gesto grosseiro enfiar os dedos no molho. Pega com a colher ou o garfo o que te apetecer. Ao invés de pôr-te a escolher dentre todas as porções da travessa, à moda de guloso, retira aquela parte que está bem à tua frente.
A propósito, aprendamos de Homero, onde é frequente este verso: "eles estendiam as mãos para aqueles pedaços de carne cozida que estavam diante deles".
Se um pedaço for mais apetecível, deixa-o para outrem e serve-te de outra porção próxima.
Posto que remexer o conteúdo da travessa inteira passa por gulodice, o simples movimento para girar a travessa a fim de selecionar as melhores partes não deixa de ser descortês.
Se te oferecem uma porção de melhor aspecto, então agradece com cortesia e aceita. Em seguida, tendo separado uma parte pequena para ti, devolve o restante a quem te apresentou o prato ou então passa-o ao vizinho.
O que não pode ser segurado com os dedos, seja posto no prato.
Se te for oferecido um pedaço de bolo ou de torta, pega-o com o talher, coloca-o no prato e devolve o talher. Se for algo de mais mole, recebe para degustar e devolve a colher depois de limpa na toalha de mão.
Em todo caso, lamber os dedos untados ou enxugá-los na roupa é de todo inconveniente. O correto seria servir-te da toalha ou do guardanapo.
MODO DE DEGLUTIR
Deglutir bocados inteiros, apressadamente, é próprio das cegonhas e dos histriões.
Quando alguém está a separar uma fatia, não fica bem já aproximar a mão ou o prato antes que o garção ofereça. Então parece que queres pegar o que estava sendo destinado para outra pessoa. O que te for oferecido, segura-o com três dedos ou apresenta o prato para receber.
Se o que foi oferecido não agrada ao teu paladar, não vás dizer como Clitifones da comédia: "Pai, não aguento!" Pelo contrário, agradece com suave sorriso. Essa é a maneira elegante de refugar.
Dado que o ofertante insiste, replica, com cortesia, que o prato não te apraz ou que já te sentes suficientemente atendido.
MODO DE CORTAR A CARNE
Recomendável é que, desde logo, as crianças, sem aquela afetação de certos indivíduos, aprendam a técnica de cortar com a devida propriedade. Assim, paleta não se corta como perna de carneiro; nem pescoço como costela. Por sua vez, frango, faisão, perdiz e pato, todos eles são dissecados de maneira diversificada.
OUTRAS PRECAUÇÕES EM BANQUETES
Longe de ti passar para os outros um bocado já comido
É costume de caipira estar a imergir no caldo o pão mordido. Nada mais repugnante que repor, no prato, o alimento já mastigado, retirando-o da goela. Se ocorrer que algo, já na boca, não deve ser deglutido, então, voltando-se para trás, trata de retirá-lo de qualquer jeito, discretamente.
Tem-se como de mau gosto repor, no prato, alimento já provado ou ossos descarnados.
Não jogar para debaixo da mesa ossos e outros detritos a fim de não conspurcar o pavimento. Também não depositar sobre a toalha da mesa nem dentro da travessa de serviços. O certo é deixar, num canto, dentro do teu prato ou no pires que, segundo o costume corrente, destina-se a receber os restos.
Revela inépcia quem tira alimento da mesa para dá-lo aos cães dos outros. Pior ainda é estar a acariciá-los.
É ridículo retirar a casca do ovo, usando as unhas ou o polegar. Também detestável é servir-se da língua para descascá-lo. O correto é o uso da faca. Roer os ossos fica bem só para cães. Gente educada sabe como descamar os ossos com a faca.
Mancha de três dedos no saleiro, como se diz por escárnio, são as pegadas do caipira. A regra manda pegar o sal com a faca. Se o saleiro estiver distante, pede por favor e apresenta o prato.
Em todo caso, lamber os dedos untados ou enxugá-los na roupa é de todo inconveniente. O correto seria servir-te da toalha ou do guardanapo.
É coisa de felinos e não de humanos lamber, com a língua, prato ou tigelas onde ficou aderente o mel ou resíduo açucarado.
Primeiro, corta a carne em fatias dentro do prato; a seguir, junto com o pão, mastiga por algum tempo e depois podes engolir. Tal procedimento é preceituado não só pela boa educação como ainda pela saúde.
Indivíduos há que, ao comer, mais parecem devorar e assim se assemelham aos que estão para serem, incontinenti, encarcerados. Tal sofreguidão 'revela o ladrão.
Outros engolfam tanta coisa na boca que estufam as cavidades do rosto.
Alguns, ao mastigar, abrem de tal modo a boca que chegam a grunhir como suíno.
Não falta quem come com tal avidez que aspira como se estivesse sendo sufocado.
Beber e falar com a boca cheia, sobre ser mal-educado, é também perigoso.
Convém que as ceias prolongadas tenham intervalos para a conversação descontraída.
Muita gente há que bebe e come sem fazer pausa ou tomar fôlego, não por causa da fome ou da sede, mas porque não é capaz de ficar sossegada. São indivíduos impulsivos que, ora coçam a cabeça, ora limpam os dentes ou gesticulam, ora brincam com a faca, ora tossem ou escarram e cospem.
Tais cacoetes tanto demonstram o desajustamento dos rústicos como podem até ser indício de anomalias. Convém esconder o enfado, quando escutas a conversa dos outros sem ter chance de falar.
Não há utilidade alguma em sentar-se à mesa e ficar meditabundo.
São até vistos indivíduos tão concentrados que, além de nada ouvirem de quanto os outros falam, não percebem que estão a comer. Se forem chamados pelo nome, tomam o ar de despertados do sono. Isso porque estão de olhos pregados nos pratos.
Feio mesmo é ficar de olho vivo no vizinho para observar o que ele come. Também não é elegante assestar os olhos, fixamente, em determinada pessoa.
Igualmente pouco polido é olhar de soslaio para aqueles que estão ao lado. Pior de tudo é girar a cabeça para trás a fim de ver o que acontece em outra mesa.
Mexericos a respeito do que é dito e feito entre um copo e outro, não fica bem para ninguém e muito menos para um menino.
Criança, à mesa com pessoas mais velhas, deve ficar em silêncio, a não ser que tenha necessidade de dizer alguma coisa ou seja solicitada a falar.
Rir, moderadamente, de alguma palavra chistosa, nada de errado, porém, em ocasião alguma rir motivado por palavra obscena. Sequer levantes as sobrancelhas, se quem a proferiu é pessoa de classe. Ao invés, deves tomar o jeito de quem nada ouviu ou, ainda melhor, fazer que não entendeu.
Se o silêncio é ornamento para a mulher, muito mais para a criança.
Há quem responde bem antes que o interlocutor tenha findado a frase. Acontece então que, dando resposta, provoca risada e enseja recordar o velho provérbio: "Eu te pedia o ancinho " [1].
Aliás, certo rei de grande sabedoria tinha na conta de idiotice o hábito de responder antes de ter ouvido a pergunta. Com efeito, não se ouviu o que não foi entendido.
Se não entendeste bem a pergunta, fica, por um instante, em silêncio até que o interlocutor, espontaneamente, torne a interrogar. Se ele não o faz e mesmo assim insiste na resposta, então a criança, com uma amável escusa, pede que repita o que foi dito.
Dado que a pergunta foi entendida, ocorre pensar um pouco e depois responder com brevidade e de modo simpático. Durante o convívio não deixes escapar nada que prejudique o clima de alegria.
É desairosa a prática de falar mal de pessoas ausentes. Não é de louvor recordar para algum dos convivas qualquer de seus pesares.
Criticar o que está servido na mesa, além de deseducado, revela ainda ingratidão para com o anfitrião.
Quando os gastos com o banquete saírem de tua posse, é gentil pedir compreensão pela exiguidade de fartura, porém, elogiar e proclamar os gastos é o pior dos condimentos para os convivas.
Se, durante a ceia, alguém for grosseiro por ignorância, é de relevar o episódio, ao invés de zombar. Afinal, beber em companhia implica certa liberdade. Em todo caso é cruel estar a propalar, lá fora, como, aliás, já advertia Horácio, algo que escapou do controle, durante a festa. O que, aliás, foi falado e acontece deve passar com o vinho. Caso contrário, ter-se-ia que ouvir o ditado: ”Odeio o conviva de boa memória”.
Se o convívio se prorroga além do tolerável para a idade juvenil e vai se encaminhando para descomedimentos, então, apenas satisfeito o apetite, retira-te, discretamente, ou depois de pedir licença.
Aqueles que submetem crianças à dieta, no meu pensar, são indivíduos tão desmiolados quanto aqueles que os fazem comer em demasia. Realmente, se o regime debilita a resistência de organismos ainda tenros, o excesso de alimentos atordoa o vigor mental. Eis porque, desde cedo, a criança deve aprender a temperança.
O corpo de criança deve estar alimentado aquém da plena saturação. E preferível comer diversas vezes a empanturrar-se.
Há indivíduos que desconhecem os limites do empanzinamento a não ser quando estão a perigo de explodir ou de rejeitar, com o vômito, a sobrecarga.
É sinal de desamor pelas crianças permitir a tão tenra idade participar de ceias que se prorrogam pela noite adentro.
Se for necessário retirar-te da ceia, que se delonga por horas a fio, toma contigo o prato com as sobras e, depois de ter feito uma saudação ao convidado de maior destaque, em seguida, afasta-te com outros convivas, mas retorna bem logo, a fim de que não pensem que estivesses a fazer gracejos ou qualquer coisa de pior.
Ao voltar à mesa, serve-te, se ainda necessitas de algo ou então toma lugar e fica em respeitosa espera de qualquer ordem. Em todo caso, seja ao trazer para a mesa qualquer coisa, seja ao tirar, cuida para não sujar a veste.
FINAL DO BANQUETE
Se fores apagar as velas, primeiro, afasta-as da mesa, e, apenas extinta a chama, submerge-a em areia ou pisoteia-a sob a sandália para que o odor desagradável não seja causa de irritação para os outros.
Quando for para pegar ou entornar alguma coisa, cuida para não te servir da mão esquerda.
Se for pedido para fazer a oração final de agradecimento, toma a atitude adequada para demonstrar que estás pronto ao rito, enquanto aguardas o momento oportuno para executá-lo em meio ao silêncio dos convivas. Enquanto esperas, mantém o rosto voltado, respeitosamente, para quem preside a refeição.
Nota:
(1) Trata-se do antigo provérbio em latim "falces petebam" ("eu te pedia foice"), citado por Svida. Diálogo entre camponeses. Um pede a foice e outro responde: "Só tenho enxadão". Em suma, diálogo entre surdos. Alguém pede uma coisa e o outro responde atravessado. (NT)
(De civilitate morum pueorum / Sobre a civilidade dos costumes dos meninos - 1530; tradução de Luiz Feracine)
(Ilustração : James Ensor - The Banquet of the Sartarved – 1915)