segunda-feira, 29 de maio de 2017

MINHA NAMORADA, de Ascânio Lopes








Seu nome era besta e ela também

mas quase não falava e só sabia olhar.

Gostei dela

fiz versos puxados

gastei tempo nas rimas raras

e na colocação de pronomes

porque ela era normalista

e gostava de gramática e não perdoava galicismos.

Mas um dia ela descobriu meus versos modernos

e percebeu que fingia

e gostava de errar nos pronomes

e que meus sonetos eram só pra ela.

Então me deu o fora e arranjou um poeta sincero

que a comparava a Marília

e que sabia de cor a "Ceia dos Cardeais"

e que sapecava todos os ritmos novos

e as poesias sem geometria e compasso.



E ficavam cinicamente amando no portão

quando não iam ao cinema delirar com as fitas dramáticas italianas 12 atos.

Ela me deu o fora.

Também nunca mais fiz sonetos.





(Ilustração: Portinari - Maria)




sexta-feira, 26 de maio de 2017

FAZENDO AS MINAS FUGIREM DA BOLÍVIA, de Augusto Céspedes









Fazia frio na sala da gerência do Banco de Oruro. Foram chegando, às 10 horas da manhã, o Dr. Dávalos, o Senador Guamán e o Dr. Gustavo Cuéllar. Entraram esfregando as mãos.


Chegou o Sr. Omonte, acompanhado do gerente Writt e do anunciado Mr. Ahpeld, cor de cenoura, vestido de flanela muito clara, com um permanente havana a um lado da boca, fazendo contrapeso ao gesto do outro lado.


O Dr. Cuéllar, apresentado a Omonte, apressou-se a tirar-lhe o abrigo e a pendurá-lo cuidadosamente. Omonte sentou-se num amplo sofá de couro, e nas duas poltronas que faziam o jogo sentaram-se Dávalos e Writt. Ahpeld colocou-se à escrivaninha, onde depositou sua pasta de papéis e, em umas cadeiras, distanciados como colegiais castigados, os Drs. Cuéllar e Guamán.


Omonte tossiu e começou expressando seu desgosto:


“Na Bolívia não encontro senão quebradores de cabeça. Tenho de atender a tudo pessoalmente, porque tudinho está descuidado. E eu pago salários, milhares e milhares, centenas de milhares... e os senhores nem sequer puderam pôr nos trilhos o governo. De Paris tive de ver essas coisas, eu mesmo. Por isso está aqui Mr. Ahpeld, agora, para explicar-lhes o plano, que já conhecem por escrito.”


Os conselheiros escutaram a reprimenda e o péssimo castelhano, e logo voltaram os olhares para Mr. Ahpeld, que começou a falar:


“Perdoem minha má pronúncia, primeiramente. Segundamente: a situação da empresa é esta: as questões judiciais estão praticamente ganhas. Produzem-se 40 mil toneladas; formou-se um grupo mineiro; exploraram-se minas de volfrâmio até que a cotação baixou; instalaram-se novas sucursais bancárias, de modo que o banco que era fundado para fazer cédulas com destino a salários, atualmente e o primeiro banco comercial do país. A empresa tem também a maior parte das ações do Banco do Estado, que é praticamente dirigido por nós.”


No silêncio, só se ouvia o rangido da cadeira em que estava sentado o Dr. Guamán.


“Terceiramente: o Sr. Omonte adquiriu maioria das ações da Anglo-Chilena, que agora deve ser refundida com o grupo “A Providência”. A exploração deve agora ser por galeria Contato, para sair por Llallagua, devendo ser beneficiado o minério no engenho de Barsola, ampliado. Me faço entender?


Unânime sinal de assentimento.


“O Sr. Omonte recebeu proposta para comprar minas nos Estreitos Malaios e ações de fundições de William Harvey. Isto terá muita grandeza: formar grande truste do estanho. Minas da Bolívia com maior acionista o Sr. Omonte e fundições de estanho com acionista também o Sr. Omonte. Sempre se ganha: se compram estanho barato as fundições, ganham as fundições, e se compram estanho caro, ganham os vendedores, quer dizer, a empresa ganha sempre porque pode fixar com o truste três coisas: quantidade de produção, preço da barrilha e preço do minério fundido, em todo o mundo.”


Omonte ouvia, as mãos cruzadas sobre o abdômen, em atitude aborrecida. Mr. Ahpeld acendeu outro havana e continuou:


“O estanho não é indústria para país pequeno. O grande capital é internacional e deve dirigir-se dos grandes centros, para manejar a indústria de todo o mundo. Então, é absolutamente necessário radicar desde agora a Empresa Omonte nos Estados Unidos, formando sociedade anônima lá.”


O Dr. Guamán, em cuja cara branca e ventruda não se desenhavam feições, formando um conjunto de calvície no qual só se percebiam os olhinhos de porco, achou oportuno fazer notar:


- Uma palavrinha, permita-me... Será preciso pagar dividendos aos acionistas...


Ahpeld sorriu depreciativamente:


- As ações serão inventadas, imaginárias! No mercado, só se fará aparecer umas poucas ações! Tudo seguirá pertencendo ao Sr. Omonte, entende? Além disso, ao fixar-se determinado valor às ações para pagar o capital da mina, eleva-se nominalmente o capital. Com isto, a Empresa pode mostrar lucros menores que a realidade, tanto para o dividendo como para pagar impostos. Além disso, nos balanços calcula-se uma soma para amortização do capital, embora não haja nada que amortizar, porque todo o capital da mina é seu estanho.


Omonte passou repetidas vezes o nariz por entre o indicador e o polegar.


- Magnífico, magnífico – disse o Dr. Guamá, dirigindo-se ao milionário. – Com um pequeno número de ações estrangeiras, pode-se invocar ante o Governo a qualidade internacional da companhia, para que nos respeite!


Omonte tossiu e olhou para seus advogados:


- Bem, doutores, tiveram três dias para estudar este plano. Agora o que preciso é que me digam como vão obter a autorização do Governo para a transferência do capital para... a ... para que a empresa se torne sociedade anônima.


Dávalos acendeu um cigarro, que levou a seus lábios de negroide por entre os bigodes amarelos, e falou lentamente:


- Aqui estamos, meu senhor Dom Zenon, sempre trabalhando, fazendo o possível. Mas é que... em Paris, perdoe-me o senhor, as coisas se veem mais simples, simples... mas aqui é diferente. Tudo o que disse Mr. Ahpeld sobre a prosperidade da empresa é o fruto do talento do Sr. Omonte. Mas nós, aqui, temos de lutar com o Governo. Tudo estaria bem, os minérios iriam da mina até as fundições, mas no meio se colocou o Governo com seus impostos. A Bolívia não é só as minas. Há outros centros, cidades, especialmente La Paz, onde há demagogos que pensam que o Estado deve viver às custas da mineração. Não lhe ocorre desenvolver outras indústrias, a madeira, por exemplo, a coca.


“Nós – deu outra chupada no cigarro – temos apoiado o Partido Liberal e o Partido Republicano Genuíno. Porque respeitavam os direitos do capital. Não nos descuidamos, Sr. Omonte” Até pensamos, como lhe escrevi, que embora tivéssemos certos vínculos pessoais com o liberalismo, a empresa continuava apolítica e então podia olhar sem temor, no caso de uma revolução, que fosse eleito presidente o chefe da oposição. Homem equânime que é, jamais teria lançado uma lei antiliberal como a da participação do Estado nos lucros mineiros. Mas, com o novo golpe de Estado, subiu o segundo chefe, que, como sabemos, desculpando a palavra, é um cholo rebelde, ambicioso e atrabiliário. "

O qualificativo de cholo soou imprudentemente no conciliábulo.


- Eu não o conheço – comentou Omonte. – Nunca o vi.


- Eu sim – continuou Dávalos. – É um advogado de má fé. Defrontamo-nos em algumas questões. Ele é liberal e teoricamente não aceita esses golpes do Governo contra o capital. Mas, na prática, como precisa de dinheiro para sustentar-se, adere ao assalto. A gente bem o ignora, e ele se irrita, porque sua ambição tem sido formar parte da elite liberal, conosco, desculpando a imodéstia. Não pôde. Encontra-se só, cheio de raiva. Isto é o que se tem de explorar! No fundo, o Governo quer é dinheiro.


- O Governo quer é Omonte – observou, com voz melíflua o Dr. Cuéllar.


- Mas eu – exclamou, rindo, Omonte – assim, prefiro que o Governo não me queira!


Riram todos, e Writt reiterou sua opinião, expressada uma semana antes:


- É que, como amigo, o Governo pode tirar menos dinheiro que como inimigo. Isso é o que quer dizer o Dr. Cuéllar.


- É preciso ver, antes, como anda o Governo.


Dávalos sacudiu com os dedos a cinza que caía sobre sua lapela e afirmou:


- Em poucas palavras: o Governo não durará mais de seis meses.


- Depende do Sr. Omonte – observou o Dr. Guamán. 


- Eu acredito que não durará seis meses! Está sendo combatido por todos os lados e, embora tenha fechado os jornais da oposição, inclusive o nosso, é atroz a propaganda acusando-o de esbanjamento e violências. Os desterrados escreveram um folheto terrível contra a tirania. Nós o fizemos editar no Chile, em número de vinte mil exemplares que foram introduzidos na Bolívia em caixotes de maquinaria da empresa.


- Então – argumentou Omonte, levantando a parte da pele que correspondia às sobrancelhas – declaramos guerra ao Governo?


- A empresa não pode estar contra o Governo, senhor. Não tem partido.


Isso disse o Dr. Gustavo de Cuéllar, sentado na ponta de uma cadeira, brincando com uma leopoldina do bolsinho do colete e jogando para frente seu enrugado pescoço, estreito embaixo e mais largo em cima, onde se convertia em cabeça, pois o maxilar inferior só salientava-se como um machucado na flácida pele que desde a cara o suspendia. Debaixo da testa semicalva, seus olhos miúdos na ossuda órbita, com pestanas de meia-lua, nunca olhavam de frente, mas, ao falar, projetavam-se até a ponta do nariz de cartucho. Sua postura, dobrado para a frente, das costas curvadas até o nariz, aprecia ter sido adquirida no exercício da humilde audição.


Disse isso e calou-se. Então o Dr. Marín Guamán tomou a palavra:


- A situação é esta. Eu tive uma atuação parlamentar muito elogiada pela imprensa e paridos opositores, esmiuçando o projeto sobre lucros mineiros. Disse, Sr. Omonte, que a única tese financeira que o Governo tem é conseguir dinheiro para sustentar-se no poder. Mas, a lei foi aprovada. Tinha de ser. Mas, acabou-se tudo aí? Não, senhor. Agora vem o bem. Essa lei nos servirá para embolsarmos o Governo! Qual é atitude com que, não tendo força, pode-se amansar um assaltante? Oferecer-lhe, adormecê-lo. Mas... somente até que chegue a Polícia. Para isso temos gente suficientemente hábil. Eu não me ofereço, porque estou qualificado como inimigo do Governo. Mas, aí está o Dr. Cuéllar, que não se mete em política, aí estão tantos amigos que podem entender-se com o senhor Presidente. O cortês não elimina o valente.


- Como é isto?


- Não é nada de altas finanças. É algo bem conhecido. Assim como se prende um operário à empresa mediante adiantamentos no barracão, podemos fazer empréstimos ao Governo e assim o teremos no bolso.


- Empréstimo? A um Governo que me quer roubar? – murmurou Omonte.


O Dr. Guamán esfregou as mãos para esquentá-las e continuou:


- Empréstimo, sim senhor. Mas, em que condições! Prazos curtos, empréstimo GARANTIDO (remarcou a palavra com sua voz de orador), garantido contra os mesmos impostos que em pagamento irá computando por conta da empresa, e com o compromisso de não elevá-los, pois que seu montante já estaria comprometido numa obrigação bilateral.


- Mas, o Governo aceitaria isso?


- E para que existimos nós, senhor?


Interveio o Dr. Cuéllar:


- Eu sou chuquisaquenho. Conheço o ambiente de lá. O Governo recebe5rá de joelhos um empréstimo, porque as reivindicações regionais de Sucre e do Oriente, para a estrada de ferro, estão sendo terrivelmente agitadas pela oposição naqueles lugares. É preciso continuar agitando.


- Hum... – exclamou Omonte, em dúvida, olhando Ahpeld.


- Isto é apenas o começo – continuou Cuéllar. – Isto é o engodo para que o Governo vire a cara para o outro lado, enquanto a empresa leva seus capitais para o estrangeiro.


Bruscamente, o Dr. Dávalos interrompeu, para evitar que Cuéllar lhe roubasse a originalidade do plano:


- Este é o grande plano que estudamos, Mr. Writt, os Drs. Guamán e Cuéllar e este servidor: consiste numa dupla manobra. De acordo com as demais empresas mineiras e os Bancos, sitiamos o Governo pela fome. Então lhe oferecemos um empréstimo... prudente.


- E se tenta nos meter mais impostos?


Interveio, rapidamente, Guamán:


- Para isso já teremos os capitais no exterior. O Governo, comprometido a não aumentar impostos, não pode violar o contrato subscrito com uma empresa estrangeira. Além disso, ao tempo de fazer o empréstimo, a empresa deve pedir garantias de tranquilidade política, sugerir, insinuar que acordos financeiros só cabem a um Governo respeitável, o que só pode haver quando se cumprem as duas condições clássicas: gabinete de todos os partidos e suspensão do estado de sítio. Um gabinete assim seria integrado, com aplaudo do país, por homens da confiança da empresa, em especial a Pasta da Fazenda, à qual podemos emprestar um grande elemento técnico. Gabinete de coalizão, ministros conscientes, não atropelariam a indústria mineira.


- E se o presidente não aceita tal gabinete?


- Diminuímos os embarques de estanho, impugnamos os impostos ante o Supremo, negamos empréstimo ao Governo, colaboramos com a oposição. Com menos dinheiro e mais oposição, o Governo cai...


- Mas, e se não cai?


- Então lhe emprestaremos mais dinheiro. Sr. Omonte: o senhor é um homem admirável; disse que a empresa não deve intervir em política, a não ser quando o Governo nos prejudica com suas leis. Isto aconteceu. Em defesa da mineração, conseguimos que este Governo fosse classificado como bolchevique, odiado pela opinião sensata. Agora damos-lhe uma injeção, só para que aceite a transformação da empresa, mas não nos comprometemos muito, porque cairá, de qualquer modo. Fiquemos bem com o presidente, aparentemente, mas guardando a oportunidade para aparecer à cabeça da revolução, no momento oportuno, fazendo pacto desde este momento, em segredo, com os dirigentes opositores. Todos estão ansiosos por tratar com a empresa. Então, em lugar de cair junto com este Governo, seremos os criadores do seguinte, os eixos. Teremos libertado o país da tirania!....


O Dr. Cuéllar adiantou o nariz:


- Agora, permita-me que eu fale, doutor, para reforçar sua brilhante ideia. Como temos de resguardar os interesses da empresa, comerciamos eventualmente com o Governo. O empréstimo, está muito bem. Um ministro nosso, está muito bem. Mas, sem mostrar que é nosso., ele deve permanecer um breve tempo ao lado do déspota e... fazer renúncia sensacional, no momento que a empresa o notificar, às vésperas de um golpe...


Com os polegares nos bolsos do colete, ostentando uma corrente de ouro, o Sr. Omonte tamborilava com seus outros dedos sobre o ventre. Olhou para todos. O Dr. Cuéllar voltou a avançar até a beira da cadeira, ficando seus joelhos pontiagudos quase à altura de seu nariz semítico.


- Eu me comprometo a propor o empréstimo ao Governo. Como sou neutro em política, posso fazê-lo.


- Muito bem – Ahpeld. O primeiro passo é o empréstimo. Com empréstimo, obteremos o Ministro da Fazenda. Com o Ministro da Fazenda, a autorização para a transferência do capital para Nova Iorque e a transformação da empresa em sociedade anônima. É perfeito. Já me haviam dito que o senhor tinha excelentes advogados, Sr. Omonte.


- Obrigado, obrigado...


- Só uma observação – advertiu o Dr. Cuéllar, engolindo saliva por seu pescoço de lagartixa. – Opinou o Dr. Guamán que se deve pedir a suspensão do estado de sítio. Não! Agora, mais do que nunca, a imprensa deve estar calada. Não faltará um jornal para pôr a boca no mundo, dizendo que queremos fazer as minas fugirem da Bolívia!


- Isso é, isso é...


A conferência havia durado duas horas. Omonte pôs-se de pé e deu palmadas amáveis nos ombros de Guamán e Cuéllar; este, por sua vez, limpou-lhe um ombro com um lenço. O Dr. Dávalos arrependeu-se de o haver chamado a La Paz. 


Saíram do salão do Banco para comparecer ao almoço que a Associação dos Pequenos Mineiros oferecia a Omonte. Ao colocar-lhe o abrigo, o Dr. Dávalos, sorrindo, disse-lhe ao ouvido:


- Parece os Drs. Guamán e Cuéllar querem ser ministros, mesmo que seja do tirano.



(Metal do Diabo; tradução de Ana Arruda)



(Ilustração: REAL SOCAVÓN – MINAS DE PLATA Y ESTAÑO – POTOSÍ; BOLÍVIA; início do século XX)


terça-feira, 23 de maio de 2017

A MAÇÃ, O PUNHO, O ÚTERO, de Bárbara Lia









Pêndulo invisível em um mundo palco

Não sou a poeta pop

Meu útero é do tamanho da primeira maçã

E confundo as lendas

E esmurro o primeiro homem (não o seduzo)

E esmurro o segundo e o terceiro

A serpente enlouquece

Diz alguma coisa como

“A mulher nasceu para conquistar”

Conquisto apenas os passarinhos

Eles assediam-me nas manhãs

Um deles prometeu ensinar-me

Os benefícios de ser fêmea

E a receita do pecado válido

O pecado abençoado

O pássaro diz…

Um punho é um punho

Um útero é um útero

Uma maçã é uma maçã



(creio mais nos passarinhos que nos poetas)





(Onde andará Esmeralda Green?)




(Ilustração: Saturno Buttò)






sábado, 20 de maio de 2017

ÁGUAS VERTIGINOSAS ATIRARAM-LHE AOS PÉS UMA VASILHA QUEBRADA E UMA PALHINHA, de Virginia Woolf






A noite estava escura; a treva era profunda; mas era por uma noite assim que tinham esperado. Era por uma noite assim que tinham planejado fugir. Recordava tudo. O tempo chegara. Num transporte de paixão, atraiu Sacha e sussurrou-lhe ao ouvido:


- Jour de ma vie*! - Era a senha. À meia-noite, deviam encontrar-se numa pousada próximo a Blackfriars. Os cavalos esperavam aí. Tudo estava preparado para a sua fuga. Assim se separaram, cada um para sua tenda. Faltava ainda uma hora.


Muito antes da meia-noite, Orlando já estava à espera. A noite era de um negrume de tinta: um homem podia assaltar outro, antes de poder ser visto - o que afinal era melhor; mas era também do mais solene silêncio, de modo que a pata de um cavalo ou o choro de uma criança podiam ser ouvidos a uma distância de meia milha. Por várias vezes, medindo com os seus passos o pequeno pátio, Orlando suspendeu o bater do seu coração aos estrépitos do firme passo de um cavalo nas pedras, ou ao sussurrar de um vestido de mulher. Mas o transeunte era apenas algum mercador, que voltava tarde para casa, ou alguma mulher do bairro, cuja missão era menos inocente. Passavam, e a rua ficava mais silenciosa que antes. Então, aquelas luzes que ardiam pelo rés do chão, nas pequenas, intrincadas habitações onde viviam os pobres da cidade, subiam para os quartos de dormir, e depois iam sendo apagadas, uma por uma. Eram poucos os lampiões da rua, nesse remoto sítio, e a negligência do guarda-noturno muitas vezes permitia que se apagassem muito antes da madrugada. A treva tornava-se então ainda mais profunda. Orlando olhou para o pavio da sua lanterna; examinou a cilha; escorvou as pistolas; examinou os coldres; e fez todas essas coisas pelo menos uma dúzia de vezes, até não encontrar mais nada que necessitasse a sua atenção. Embora faltassem ainda uns vinte minutos para a meia-noite, não se decidia a entrar na sala da pousada, onde a estalajadeira estava ainda servindo vinho seco e o mais barato vinho das Canárias a alguns marítimos que se instalavam ali, arrastando suas canções e contando suas histórias de Drake, Hawkins e Grenville até virarem os bancos e rolarem adormecidos na areia do chão. A obscuridade se compadecia mais do seu dilatado e violento coração. Prestava atenção a cada passo; investigava cada som. Cada grito de ébrio e cada gemido de algum desgraçado deitado na palha ou em alguma outra angústia cortava-lhe o coração num golpe súbito, como se anunciasse maus presságios para a sua aventura. Contudo, não se inquietava por Sacha. A aventura não era nada para a sua coragem. Chegaria sozinha, com sua capa, suas calças, e de botas, como um homem. Tão leve era o seu passo que não seria ouvido, mesmo naquele silêncio.


Assim esperava na escuridão. De repente, uma pancada macia, embora pesada, lhe caiu no rosto. Tal era a tensão da sua expectativa que deu um salto e levou a mão à espada. A pancada repetiu-se uma dúzia de vezes na testa e na face. A geada tinha durado tanto tempo que levou um minuto para compreender que aquilo eram gotas de chuva caindo; as pancadas eram pancadas de chuva. A princípio, caíam vagarosamente, deliberadamente, uma a uma. Mas em breve as seis gotas eram sessenta, logo eram seiscentas; e depois correram todas juntas, num forte aguaceiro. Era como se o próprio céu, firme e maciço, se derramasse todo numa profusa catarata. Em cinco minutos, Orlando estava ensopado até os ossos.


Abrigando apressadamente os cavalos, procurou refúgio sob o dintel da porta, de onde podia ainda observar o pátio. O ar estava agora mais grosso do que nunca, e da torrente se elevavam um vapor e uma zoada que abafavam o som de qualquer passo de gente ou de animal. As estradas, crivadas de grandes buracos, deviam estar inundadas e impraticáveis. Ele, porém, quase não dava atenção ao efeito que isso pudesse ter sobre a sua fuga. Todos os seus sentidos estavam concentrados, espreitando pelo caminho empedrado - que cintilava à luz da lanterna - a chegada de Sacha. Às vezes, na escuridão, parecia vê-la, envolta nas pancadas de chuva. Mas o fantasma se desvanecia. De repente, com uma voz terrível e agourenta, uma voz cheia de horror e sobressalto, que arrepiou cada pelo de angústia na alma de Orlando, bateu em São Paulo a primeira pancada da meia-noite. Implacável, bateu quatro vezes mais. Com a superstição de um amante, Orlando tinha estabelecido que ela chegaria ao soar a sexta pancada. Mas a sexta pancada esmoreceu, e vibraram a sétima e a oitava, e à sua mente apreensiva apareceram notas anunciando, primeiro, e proclamando, depois - morte e desgraça. Quando soou a décima segunda, viu que sua sentença estava selada. Era inútil que a sua parte de razão raciocinasse; podia estar atrasada; podia estar detida; podia ter errado o caminho. O apaixonado e sensível coração de Orlando sabia a verdade. Outros relógios soaram, discordantes, e sucessivamente. O mundo inteiro parecia repicar com a notícia da sua ilusão e da sua humilhação. As velhas suspeitas que nele trabalhavam subterrâneas, levantaram-se do seu esconderijo, abertamente. Foi picado por uma multidão de víboras, cada qual mais venenosa. Permaneceu à entrada da porta, imóvel, sob a chuva tremenda. Com o passar dos minutos, afrouxaram-se-lhe um pouco os joelhos. O aguaceiro continuava. Dentro dele parecia troarem canhões. Grandes barulhos, como um despedaçar e abater de florestas, podiam ser ouvidos. E também gritos selvagens, e terríveis lamentos inumanos. Mas Orlando ficou ali imóvel, até o relógio de São Paulo bater duas horas, e então, bradando com uma horrível ironia, com todos os dentes à mostra: "Jour de ma vie!", arrojou a lanterna ao chão, montou a cavalo e galopou sem saber para onde.


Algum cego instinto, porque estava incapaz de raciocínio, deve tê-lo conduzido pela margem do rio, em direção ao mar. Pois, quando rompeu a aurora, com uma rapidez fora do comum, com o céu volvendo-se amarelo-pálido, e a chuva quase acabada, achou-se na margem do Tâmisa, para além de Wapping. Seus olhos deram, então, com o mais extraordinário espetáculo. Aquilo que, por mais de três meses, tinha sido sólido gelo, de tal grossura que parecia permanente como pedra e no qual uma alegre cidade tinha estado toda edificada, era agora uma torrente de turbulentas águas amarelas. O rio conquistara, aquela noite, a sua liberdade. Era como se um jorro de enxofre (e muitos filósofos se inclinavam a pensar assim) se tivesse levantado de regiões vulcânicas inferiores, rompendo o gelo em pedaços, com tal veemência que varria e apartava os enormes e maciços fragmentos. O simples espetáculo da água era suficiente para entontecer. Tudo era tumulto e confusão. O rio estava juncado de avalanchas de gelo. Algumas eram amplas como um relvado e altas como uma casa; outras não eram maiores que um chapéu de homem, porém fantasticamente retorcidas. Agora descia um comboio inteiro de blocos de gelo, derrubando tudo o que encontrava em seu caminho. Agora, redemoinhando e rodando como uma torturada serpente, o rio parecia estar-se arremessando a si próprio entre os fragmentos e sacudindo-os de margem a margem, de modo que podiam ser ouvidos a esfacelar-se contra diques e pilares. Mas o mais terrível, e que inspirava mais horror, era o espetáculo das criaturas humanas que tinha sido colhidas de surpresa, durante a noite, e agora caminhavam por aquelas tortuosas e precárias ilhas, na maior agonia de espírito. Saltassem na correnteza ou ficassem no gelo, sua sentença era certa. Às vezes, um bando inteiro dessas pobres criaturas descia junto, umas ajoelhadas, outras amamentando os filhos. Um velho parecia ler em voz alta um livro sagrado. Outras vezes, e essa era talvez a sorte mais pavorosa, um infeliz solitário caminhava pela sua estreita habitação deserta. Ao serem arrastados para o mar, podia-se ouvir a inútil súplica de alguns, fazendo desesperadas promessas de corrigir-se, confessar seus pecados e doar altares e bens, se Deus ouvisse suas imprecações. Outros estavam tão estonteados de terror que se sentavam imóveis e silenciosos, olhando firme para a frente. Uma multidão de barqueiros ou estafetas, a julgar por suas librés, rugindo e berrando as mais baixas cantigas de taverna, como por bravata, foi de encontro a uma árvore e afundou, com blasfêmias nos lábios. Um velho nobre - como o proclamavam seu traje de peles e sua corrente de ouro - submergiu perto do lugar onde estava Orlando, pedindo vingança contra os rebeldes irlandeses, que - gritava com o seu último alento - haviam tramado aquela coisa diabólica. Muitos pereceram apertando ao peito algum jarro de prata ou qualquer outro tesouro; e pelo menos uma vintena de pobres infelizes se afogou pela sua própria cupidez, preferindo arrojar-se da margem à torrente do que deixar escapar algum cálice de ouro ou ver desaparecer alguma roupa de peles. Porque móveis, valores, objetos de toda espécie eram arrastados para longe pelas avalanchas. Entre outros estranhos espetáculos, via-se uma gata amamentando os filhotes; uma mesa suntuosamente preparada para a ceia de vinte convivas; um casal na cama, junto com um extraordinário número de utensílios de cozinha.


Aterrado e atônito, Orlando não pôde fazer nada, durante algum tempo, senão observar a medonha corrida das águas que se desencadeavam a seus pés. Por fim, como voltando a si, deu de esporas ao cavalo e galopou firme, ao longo do rio, em direção ao mar. Dobrando uma curva, chegou defronte àquele sítio onde, havia menos de dois dias, os navios dos embaixadores pareciam imobilizados para sempre. Contou-os apressadamente: o francês, o espanhol, o austríaco, o turco. Todos flutuavam ainda, embora ao francês se houvessem quebrado as amarras e o turco, com uma grande fenda no costado, estivesse fazendo água. Mas o navio russo não se avistava em parte alguma. Por um momento, Orlando pensou que tivesse afundado; mas, erguendo-se nos estribos e sombreando os olhos, que tinham o alcance dos de um falcão, conseguiu distinguir a forma de um navio no horizonte. As águias negras flutuavam no mastro principal. O navio da Embaixada Moscovita fazia-se ao largo.


Atirou-se do cavalo, como se, na sua cólera, quisesse acometer a corrente. Com água até os joelhos, lançou à infiel mulher todos os insultos que sempre tem recebido o seu sexo. Falsa, inconstante, volúvel, chamou-a: demônio, adúltera, traidora; e as águas vertiginosas receberam suas palavras e atiraram-lhe aos pés uma vasilha quebrada e uma palhinha. 



(Orlando; tradução de Cecília Meireles)




(Ilustração: Sergei Aparin)


quarta-feira, 17 de maio de 2017

EROS ES EL ÁGUA / EROS É A ÁGUA, de Gioconda Belli






Entre tus piernas

el mar me muestra extraños arrecifes

rocas erguidas corales altaneros

contra mi gruta de caracolas concha nácar

tu molusco de sal persigue la corriente

el agua corta me inventa aletas

mar de la noche con lunas sumergidas

tu oleaje brusco de pulpo enardecido

acelera mis branquias los latidos de esponja

los caballos minúsculos flotando entre gemidos

enredados en largos pistilos de medusa.

Amor entre delfines

dando saltos te lanzas sobre mi flanco leve

te recibo sin ruido te miro entre burbujas

tu risa cerco con mi boca espuma

ligereza del agua oxigeno de tu vegetación de clorofila

la corona de luna abre espacio al océano

De océano los ojos plateados

fluye larga mirada final

y nos alzamos desde el cuerpo acuático

somos carne otra vez

una mujer y un hombre

entre las rocas.



Tradução de José Agostinho Baptista:



Entre as tuas pernas

o mar revela-me estranhos recifes

rochas erguidas corais altaneiros

contra a minha gruta de búzios concha nácar

o teu molusco de sal persegue a corrente

a pequena água inventa-me barbatanas

mar da noite com luas submersas

tua ondulação brusca de polvo congestionado

acelera nas minhas guelras um latejar de esponja

e os cavalos minúsculos flutuam entre gemidos

enredados em longos pistilos de medusa.

Amor entre golfinhos

aos altos lança-te sobre o meu flanco leve

recebo-te sem ruído olho-te entre bolhas

cerco o teu riso com a minha boca espuma

ligeireza da água oxigênio de tua vegetação de clorofila

a coroa de lua abre espaço ao oceano.

Dos olhos prateados

flui longo olhar final

e erguemo-nos do corpo aquático

somos carne outra vez

uma mulher e um homem

entre as rochas.





(Ilustração:  Jean-Marie Poumeyrol - Les_Amants de la veranda)




domingo, 14 de maio de 2017

O POETA DOS 1001 AMORES, de Humberto Werneck






Pode ser que eu, sem me dar conta, tenha topado com Jésu de Miranda, o Poeta Soldado (ele gostaria dessa rima). É até bem provável, pois, no acanhado carrossel dos bares, cafés e livrarias da Belo Horizonte de meio século atrás, você topava com todo mundo, quisesse ou não. O fato é que só muito mais tarde fui tomar conhecimento da existência de Jésu, personagem da periferia da literatura que durante um tempo desfrutou de notoriedade municipal, nem sempre pelos sonetos que produzia aos borbotões. Hoje apagado até do folclore literário, chegou a merecer atenção de confrades graúdos como Monteiro Lobato, ou Vinicius de Moraes, para quem estava “longe de ser mau sonetista”.

Quem primeiro me falou de Jésu de Miranda foi outro poeta, Hélio Pellegrino, que não precisava de muito uísque para tronitruar em tom hilariante o decassílabo de abertura do soneto Eu, a seu ver perfeito: “Nasci em Guaxupé, no Sul de Minas!”. Hélio guardava com avareza de bibliófilo seu exemplar de Veritas Veritatis, e, quando Fernando Sabino pediu emprestado, não obteve mais que um xerox. Do qual fez bom uso, seja dito, pois o poema comparece, na íntegra, como “joia do soneto”, em O Grande Mentecapto, na voz do maluquinho Geraldo Viramundo. 

O romance de Sabino saiu em 1979, meses depois da morte do Poeta Soldado, assim chamado por ter pertencido aos quadros da Polícia Militar. Tinha 69 anos e seu desaparecimento passou de raspão pelo noticiário. Sobre o túmulo, a família pôde finalmente colocar a lápide que ele mandara fazer com larga antecedência, na qual se lê o soneto Meu Epitáfio: “Aqui jaz o cantor da própria sorte, / que no mundo só teve a triste lida: / cantar, chorando, até chegar a morte”. 

Foi de fato o que fez: no final da vida, Jésu de Miranda escrevia um poema cujo título, As Jesíadas, dá a medida de sua ambição, e do qual a família não tem notícia. Deixou, segundo o filho e xará, 17 livros, que ele mesmo se encarregava de camelotar pela cidade. O que despertou o interesse de Monteiro Lobato foi Agonia de um Poeta. Com ele, escreveu, o autor lhe “fez o coração abrir-se em lágrimas, diante de seu rio de dores”. Lobato tomou ao pé da letra o verso “Ninguém morrendo padeceu assim” - e, supondo no mínimo uma tuberculose, mandou ajuda de São Paulo. Caiu das nuvens quando, em visita a Belo Horizonte, se deparou com “um mulato mais robusto como nunca pensávamos”. Havia mais: o novo livro do “garimpeiro das rimas agônicas” se chamava As 100 Mulheres Que Eu Amei. “É muita mulher para quem se achava agonizando”, avaliou Lobato.

A obra em questão, por sinal, deu temerária fama a Jésu de Miranda, e mais de um marido julgou reconhecer a mulher entre as 100 cantadas nos sonetos. Um deles foi tomar satisfação. “O poeta quis explicar-se”, contou o cronista Moacir Andrade. “Não foi possível. O marido estava irado demais. Engalfinharam-se. Rolaram no chão. E o poeta foi processado e condenado”. Por lesões corporais, o 2º tenente reformado pegou um ano de prisão, pena que não chegou a cumprir integralmente. 

“Estou certo de que Jésu não acrescentará nenhuma outra mulher às 100 do livro”, apostou o cronista, naquele momento em que, segundo os gozadores, estaria a caminho uma edição revista, agora com o título As 99 Mulheres Que Eu Amei. Mas qual: 5 anos mais tarde, o poeta reincidiu em dose decuplicada com As 1001 Mulheres Que Eu Amei. “901 novos amores em 5 anos”, contabilizou Moacir Andrade, “seria um recorde universal”. 

Na vida real, não se sabe, mas, na poesia, musas voluptuosas reinavam em regime de exclusividade. “Que me condene quem quiser / por eu sinceramente confessar / ser um homem tarado por mulher”, alardeava o poeta. Na chave de ouro do soneto Eu, deixou claro que neste mundo a sua “diversão” consistia em “briga de galos, versos e mulheres”, talvez não nesta ordem. Em outro poema, uma galante tomada de posição: “Quando de amor o coração palpita, / quero mil vezes um milhão de escândalos / do que perder uma mulher bonita”. Chegou a anunciar, num verso alexandrino: “Quero um dia morrer nos braços das mulheres”. A insistência na última palavra lhe custou uma observação sardônica de João Alphonsus: para não perder a rima, o tenente aceitava rebaixar-se a alferes. 

Engaiolado, o poeta-soldado sentiu que até para efeitos domésticos era prudente maneirar, e o fez em redondilhas maiores: “Tenham calma, meus senhores! / Vou revelar uma cousa: / o maior dos meus amores / é o amor da minha esposa!!!” O que não o impediu, candidato a vereador, de estender sua campanha a uma zona não propriamente eleitoral, indo pedir voto em redutos de profissionais do sexo. Se arrebanhou apenas 120, quando esperava milhares - decepção que o levaria a escrever mais um livro, A Traição de Meus Eleitores -, não foi por falta de slogan: “Dê de frente, dê de banda, / mas vote em Jésu de Miranda!”



(O Estado de São Paulo; 6 outubro 2015) 


(Ilustração: Eliana Martins)




quinta-feira, 11 de maio de 2017

DEL TIEMPO LARGO / DO LONGO TEMPO, de Fina García Marruz






A veces, en raros

instantes, se abre, talud

real y enorme, el tiempo

transcurrido.

Y no es entonces

breve el tiempo. Como el pájaro

al elevar se abarca con sus alas

un diminuto pueblo o costerío,

la inmensidad de lo vivido arrecia,

y se mira remoto el ayer próximo,

en que el pico ávido bajaba

en busca de alimento.

¡Qué eternidad

de soles ya vividos! ¡Y qué completa

ausencia de nostalgia! Para crecer

se vive. Para nacer de nuevo

y rehacer la mala copia original.

Para crecer, se sufre. No se quiere

volver atrás, ni tan siquiera al tiempo

rumoreante de la juventud.

Que no para que el rostro

luzca lozano y terso se ha vivido.

No para atraer por siempre con el fuego

de la mirada, no con el alma en vilo

por siempre se ha de estar.

De cierto modo

la juventud es también como una cierta

decrepitud: un ser informe,

larva, debatíase, qué peligrosamente

amenazado. Se vivió, se salió,

quién sabe cómo, del hueco,

de la trampa:

Valió el otro

del bosque de la vida, el pleno encanto

de los claros del sol entre lo umbrío

para pagar su precio: lo tanto

costó poco: poco el sufrir inmenso

para esta dádiva. Al rastro

orne la arruga como el pecho la cinta coloreada

de un guerrero

o como al niño la medalla premia

por la humilde labor.

Como el avaro

el peso de un tesoro) encorva

la espalda anciana el peso

del vivir.

Mas ya, arriba,

a la salida, ya, se mira

hacia atrás sonriendo, renacido,

como agrietada cáscara el polluelo,

ya se van desligando las amarras,

del extraño navío, y como navío trémulo

locamente lo incierto hace señales.



Costó dotar, muerte costó, la vida.

Y al tiempo) breve o largo, siempre corto,

como el relámpago del amor, se le mira

ya sin recelo ni amargura

como a las heridas de la mano, en el arduo

aprender de su oficio,

contempla el aprendiz.



Bella es toda partida.



Tradução de Alai Garcia Diniz e Luizete Guimarães Barros:



Às vezes, em raros

instantes, se abre, talude

real e enorme, o tempo

transcorrido.

E então não é

breve o tempo. Como o pássaro

ao elevar-se atinge com suas asas

uma diminuta vila ou encosta,

a imensidão do vivido se fortalece,

e se vê remoto o ontem próximo,

em que o bico ávido descia

em busca de alimento.

Que eternidade

de sóis já vividos! E que completa

ausência de saudade! Para crescer

se vive. Para nascer de novo

e refazer a má cópia original.

Para crescer, se sofre. Não se quer

voltar atrás, nem sequer ao tempo

rumorejante da juventude.

Não é para que o rosto

reluza viçoso e terso que se viveu.

Não para atrair para sempre com o fogo

do olhar, nem com a alma no ar

para sempre se há de estar.

De certo modo

a juventude é também como uma certa

decrepitude: um ser informe,

larva que se debatia, quando perigosamente

ameaçada. A gente viveu, saiu,

sabe Deus como, do oco,

da trapaça:

Serviu-se o outro

do bosque da vida, o encanto pleno

dos clarões do sol entre as sombras

para pagar seu preço: o muito

custou pouco; pouco o sofrer imenso

para esta dádiva. Ao rosto

orne a ruga como ao peito a cinta rubra

de um guerreiro

ou como ao menino premia a medalha

pelo humilde labor.

Como ao avaro

o peso de um tesouro, encurva

às costas velhas o peso

do viver.

Mas já, acima,

à saída, já se olha

para trás sorrindo, renascido,

como o pintinho agride a casca,

já se vão desfazendo as amarras

do estranho navio, e como noivo trêmulo

loucamente o acaso faz sinais.



Causou dor, morte causou, a vida.

Em seu tempo, breve ou longo, sempre curto,

como o relâmpago do amor, já é olhado

sem receio nem amargura

como às feridas da mão, no árduo

aprender de seu ofício,

contempla o aprendiz.



Bela é toda partida.



(Visitaciones)





(Ilustração: Nicolás Berlingieri - Dali time statue)




segunda-feira, 8 de maio de 2017

O DIREITO AO FODA-SE!, de Millôr Fernandes






Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzam com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o Povo fazendo sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia. Sem que isso signifique a "vulgarização" do idioma, mas apenas sua maior aproximação com a gente simples das ruas e dos escritórios, seus sentimentos, suas emoções, seu jeito, sua índole.

"Pra caralho", por exemplo. Qual expressão traduz idéia de maior quantidade do que "Pra caralho"? "Pra caralho" tende ao infinito, é quase uma expressão matemática, física. A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho, o universo é antigo pra caralho, eu gosto dela pra caralho, entende?

No gênero do "Pra caralho", mas no caso expressando a mais absoluta negação está o famoso e crescentemente utilizado "Nem fodendo!" Nem o "Não, não e não!" e nem tampouco o nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade "Não, absolutamente não!" o substituem. O "Nem fodendo" é irretorquível, liquida o assunto. Te libera , com a consciência e o ego tranquilos, para outras atividades de maior interesse em sua vida.

Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar no litoral? Não perca tempo nem paciência. Solte logo um definitivo "Huguinho, presta atenção, filho querido, NEM FODENDO!" O impertinente se manca na hora e vai pro shopping se encontrar com a turma numa boa e você fecha os olhos e volta a curtir o novo CD do Lupicínio.

Por sua vez, o "porra nenhuma!" atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional.

Como comentar a bravata daquele chefe idiota senão com um "é PhD porra nenhuma!", ou "ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!" O "porra nenhuma", como vocês veem, nos provê sensações de incrível bem-estar interior. É como se estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um canalha. São dessa mesma gênese os clássicos "aspone", "chepone", "repone" e, mais recentemente, o "prepone" - presidente de porra nenhuma.

Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um "Puta-que-pariu!", ou seu correlato "Puta-que-o-pariu!", falados assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba... Diante de uma notícia irritante qualquer um Puta-que-o-pariu! dito assim te coloca outra vez em seu eixo. Seus neurônios têm o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido troco ou o safar de maiores dores de cabeça.

E o que dizer de nosso famoso "vai tomar no cu!"? E sua maravilhosa e reforçadora derivação "vai tomar no olho do seu cu!" Você já imaginou o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta:

"Chega! Quer saber mesmo de uma coisa? Vai tomar no olho do seu cu!" Pronto,você retomou as rédeas de sua vida, sua autoestima. Desabotoa a camisa e saia à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor íntimo nos lábios.

Seria tremendamente injusto, em que pesem ainda inexplicáveis e preconceituosas resistências à sua palavra-raiz, não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do PV (Português Vulgar): "Embucetou!" E sua derivação mais avassaladora ainda: "Embucetou de vez!".

Você conhece definição mais exata, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação? Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um providencial contexto interior de alerta e autodefesa. Algo assim como o comentário de um vizinho para sua esposa ao sacar que no auge da violenta briga do casal da residência ao lado, chegam de súbito a amante, o filho espúrio e o cunhado bêbado com o resultado do exame de DNA: "Fecha a porta que embucetou de vez!" 

O nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de "foda-se!" que ela fala. Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda-se!"? O "foda-se!" aumenta minha auto-estima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta." Não quer sair comigo? Então foda-se!." "Vai querer decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Então foda-se!"

O direito ao "foda-se!" deveria estar assegurado na constituição brasileira.

Liberdade, igualdade, fraternidade e FODA-SE!





(Ilustração: Dave Whitlam - the temptation of st  Anthony)


sexta-feira, 5 de maio de 2017

O CORPO, de Eliana Iglesias








De que te serve um corpo que não tem prazer?

De que te serve um corpo que não dá prazer?

De que te serve esse corpo se não o sabes?

Se nunca o soubeste?

Por receio em tocá-lo não o despertaste

Por falta de sabedoria não o ensinaste

Tampouco aprendeste com ele

O que tem esse corpo que jamais o entregas a outro?

Que segredo há nele que outros não possam desvendar?

Por que não submetê-lo às encruzilhadas para que ele decida o que fazer?

Por que não expô-lo às sensações, aos arrepios, às mudanças de lua?

Para que o preservas tanto se conheces o destino final da carne humana?

Tu o castigas, diariamente, deixando-o apartado de ti, como desconhecidos que devem coabitar sem trocar palavra.

Tu o exilas, o relegas às sombras.

Um corpo que não tem ciência da alvorada que se anuncia, do despertar da natureza, do clarão do mundo?

Por que não deixar essa tua pele suar, extrair dela gotas de orvalho, relva macia, sumos adocicados?

O que imaginas? Por que tamanho embotamento?

Talvez, não queiras ferir esse teu corpo! Mas, se o feres ainda mais trancando-o a si mesmo? Como aqueles pais que proíbem a criança de sair à rua para brincar.

Como não deixar teu corpo, brincar um pouco? Ganhar as ruas? As gentes? A ter notícia das intenções alheias? Pois que o mundo é recheado delas, as intenções. Sejam elas boas, ou más, ingênuas, demoníacas.

Tens um corpo bem cuidado, agradável, passível de prazer, pois que prazer na verdade é prerrogativa de qualquer corpo vivo, mas teu corpo nada sabe, nada contaste a ele. Teu corpo é virgem do gozo por força da tua vontade, que ao invés de facilitá-lo, toma-o como adversário, batendo forças com ele.

Criaste para ele masmorra, cela solitária, a travar tuas mãos, tolher teus gestos, recolher teu sexo. Nada ensaias a não ser sublimação e angústia?

És escravo de ti mesmo e teu algoz. Há em ti um carrasco que não te abandona, porque assim o permites.

És o opositor de ti mesmo. Protagonista e antagonista da tua própria história, censurada desde sempre por tua consciência, ninguém mais. Censurada por uma moral pegajosa da qual não consegues te livrar (Há sempre tempo!)

Há sempre tempo de arrancares a mortalha em que te arrastas para lançares-te no vácuo do mundo, ouvires por fim teus instintos, acolheres teus humores e de forma indubitável, renasceres de uma vez por todas para ti.





(Ilustração: Ray Caesar – blackbird)