Fazia frio na sala da gerência do Banco de Oruro. Foram chegando, às 10 horas da manhã, o Dr. Dávalos, o Senador Guamán e o Dr. Gustavo Cuéllar. Entraram esfregando as mãos.
Chegou o Sr. Omonte, acompanhado do gerente Writt e do anunciado Mr. Ahpeld, cor de cenoura, vestido de flanela muito clara, com um permanente havana a um lado da boca, fazendo contrapeso ao gesto do outro lado.
O Dr. Cuéllar, apresentado a Omonte, apressou-se a tirar-lhe o abrigo e a pendurá-lo cuidadosamente. Omonte sentou-se num amplo sofá de couro, e nas duas poltronas que faziam o jogo sentaram-se Dávalos e Writt. Ahpeld colocou-se à escrivaninha, onde depositou sua pasta de papéis e, em umas cadeiras, distanciados como colegiais castigados, os Drs. Cuéllar e Guamán.
Omonte tossiu e começou expressando seu desgosto:
“Na Bolívia não encontro senão quebradores de cabeça. Tenho de atender a tudo pessoalmente, porque tudinho está descuidado. E eu pago salários, milhares e milhares, centenas de milhares... e os senhores nem sequer puderam pôr nos trilhos o governo. De Paris tive de ver essas coisas, eu mesmo. Por isso está aqui Mr. Ahpeld, agora, para explicar-lhes o plano, que já conhecem por escrito.”
Os conselheiros escutaram a reprimenda e o péssimo castelhano, e logo voltaram os olhares para Mr. Ahpeld, que começou a falar:
“Perdoem minha má pronúncia, primeiramente. Segundamente: a situação da empresa é esta: as questões judiciais estão praticamente ganhas. Produzem-se 40 mil toneladas; formou-se um grupo mineiro; exploraram-se minas de volfrâmio até que a cotação baixou; instalaram-se novas sucursais bancárias, de modo que o banco que era fundado para fazer cédulas com destino a salários, atualmente e o primeiro banco comercial do país. A empresa tem também a maior parte das ações do Banco do Estado, que é praticamente dirigido por nós.”
No silêncio, só se ouvia o rangido da cadeira em que estava sentado o Dr. Guamán.
“Terceiramente: o Sr. Omonte adquiriu maioria das ações da Anglo-Chilena, que agora deve ser refundida com o grupo “A Providência”. A exploração deve agora ser por galeria Contato, para sair por Llallagua, devendo ser beneficiado o minério no engenho de Barsola, ampliado. Me faço entender?
Unânime sinal de assentimento.
“O Sr. Omonte recebeu proposta para comprar minas nos Estreitos Malaios e ações de fundições de William Harvey. Isto terá muita grandeza: formar grande truste do estanho. Minas da Bolívia com maior acionista o Sr. Omonte e fundições de estanho com acionista também o Sr. Omonte. Sempre se ganha: se compram estanho barato as fundições, ganham as fundições, e se compram estanho caro, ganham os vendedores, quer dizer, a empresa ganha sempre porque pode fixar com o truste três coisas: quantidade de produção, preço da barrilha e preço do minério fundido, em todo o mundo.”
Omonte ouvia, as mãos cruzadas sobre o abdômen, em atitude aborrecida. Mr. Ahpeld acendeu outro havana e continuou:
“O estanho não é indústria para país pequeno. O grande capital é internacional e deve dirigir-se dos grandes centros, para manejar a indústria de todo o mundo. Então, é absolutamente necessário radicar desde agora a Empresa Omonte nos Estados Unidos, formando sociedade anônima lá.”
O Dr. Guamán, em cuja cara branca e ventruda não se desenhavam feições, formando um conjunto de calvície no qual só se percebiam os olhinhos de porco, achou oportuno fazer notar:
- Uma palavrinha, permita-me... Será preciso pagar dividendos aos acionistas...
Ahpeld sorriu depreciativamente:
- As ações serão inventadas, imaginárias! No mercado, só se fará aparecer umas poucas ações! Tudo seguirá pertencendo ao Sr. Omonte, entende? Além disso, ao fixar-se determinado valor às ações para pagar o capital da mina, eleva-se nominalmente o capital. Com isto, a Empresa pode mostrar lucros menores que a realidade, tanto para o dividendo como para pagar impostos. Além disso, nos balanços calcula-se uma soma para amortização do capital, embora não haja nada que amortizar, porque todo o capital da mina é seu estanho.
Omonte passou repetidas vezes o nariz por entre o indicador e o polegar.
- Magnífico, magnífico – disse o Dr. Guamá, dirigindo-se ao milionário. – Com um pequeno número de ações estrangeiras, pode-se invocar ante o Governo a qualidade internacional da companhia, para que nos respeite!
Omonte tossiu e olhou para seus advogados:
- Bem, doutores, tiveram três dias para estudar este plano. Agora o que preciso é que me digam como vão obter a autorização do Governo para a transferência do capital para... a ... para que a empresa se torne sociedade anônima.
Dávalos acendeu um cigarro, que levou a seus lábios de negroide por entre os bigodes amarelos, e falou lentamente:
- Aqui estamos, meu senhor Dom Zenon, sempre trabalhando, fazendo o possível. Mas é que... em Paris, perdoe-me o senhor, as coisas se veem mais simples, simples... mas aqui é diferente. Tudo o que disse Mr. Ahpeld sobre a prosperidade da empresa é o fruto do talento do Sr. Omonte. Mas nós, aqui, temos de lutar com o Governo. Tudo estaria bem, os minérios iriam da mina até as fundições, mas no meio se colocou o Governo com seus impostos. A Bolívia não é só as minas. Há outros centros, cidades, especialmente La Paz, onde há demagogos que pensam que o Estado deve viver às custas da mineração. Não lhe ocorre desenvolver outras indústrias, a madeira, por exemplo, a coca.
“Nós – deu outra chupada no cigarro – temos apoiado o Partido Liberal e o Partido Republicano Genuíno. Porque respeitavam os direitos do capital. Não nos descuidamos, Sr. Omonte” Até pensamos, como lhe escrevi, que embora tivéssemos certos vínculos pessoais com o liberalismo, a empresa continuava apolítica e então podia olhar sem temor, no caso de uma revolução, que fosse eleito presidente o chefe da oposição. Homem equânime que é, jamais teria lançado uma lei antiliberal como a da participação do Estado nos lucros mineiros. Mas, com o novo golpe de Estado, subiu o segundo chefe, que, como sabemos, desculpando a palavra, é um cholo rebelde, ambicioso e atrabiliário. "
O qualificativo de cholo soou imprudentemente no conciliábulo.
- Eu não o conheço – comentou Omonte. – Nunca o vi.
- Eu sim – continuou Dávalos. – É um advogado de má fé. Defrontamo-nos em algumas questões. Ele é liberal e teoricamente não aceita esses golpes do Governo contra o capital. Mas, na prática, como precisa de dinheiro para sustentar-se, adere ao assalto. A gente bem o ignora, e ele se irrita, porque sua ambição tem sido formar parte da elite liberal, conosco, desculpando a imodéstia. Não pôde. Encontra-se só, cheio de raiva. Isto é o que se tem de explorar! No fundo, o Governo quer é dinheiro.
- O Governo quer é Omonte – observou, com voz melíflua o Dr. Cuéllar.
- Mas eu – exclamou, rindo, Omonte – assim, prefiro que o Governo não me queira!
Riram todos, e Writt reiterou sua opinião, expressada uma semana antes:
- É que, como amigo, o Governo pode tirar menos dinheiro que como inimigo. Isso é o que quer dizer o Dr. Cuéllar.
- É preciso ver, antes, como anda o Governo.
Dávalos sacudiu com os dedos a cinza que caía sobre sua lapela e afirmou:
- Em poucas palavras: o Governo não durará mais de seis meses.
- Depende do Sr. Omonte – observou o Dr. Guamán.
- Eu acredito que não durará seis meses! Está sendo combatido por todos os lados e, embora tenha fechado os jornais da oposição, inclusive o nosso, é atroz a propaganda acusando-o de esbanjamento e violências. Os desterrados escreveram um folheto terrível contra a tirania. Nós o fizemos editar no Chile, em número de vinte mil exemplares que foram introduzidos na Bolívia em caixotes de maquinaria da empresa.
- Então – argumentou Omonte, levantando a parte da pele que correspondia às sobrancelhas – declaramos guerra ao Governo?
- A empresa não pode estar contra o Governo, senhor. Não tem partido.
Isso disse o Dr. Gustavo de Cuéllar, sentado na ponta de uma cadeira, brincando com uma leopoldina do bolsinho do colete e jogando para frente seu enrugado pescoço, estreito embaixo e mais largo em cima, onde se convertia em cabeça, pois o maxilar inferior só salientava-se como um machucado na flácida pele que desde a cara o suspendia. Debaixo da testa semicalva, seus olhos miúdos na ossuda órbita, com pestanas de meia-lua, nunca olhavam de frente, mas, ao falar, projetavam-se até a ponta do nariz de cartucho. Sua postura, dobrado para a frente, das costas curvadas até o nariz, aprecia ter sido adquirida no exercício da humilde audição.
Disse isso e calou-se. Então o Dr. Marín Guamán tomou a palavra:
- A situação é esta. Eu tive uma atuação parlamentar muito elogiada pela imprensa e paridos opositores, esmiuçando o projeto sobre lucros mineiros. Disse, Sr. Omonte, que a única tese financeira que o Governo tem é conseguir dinheiro para sustentar-se no poder. Mas, a lei foi aprovada. Tinha de ser. Mas, acabou-se tudo aí? Não, senhor. Agora vem o bem. Essa lei nos servirá para embolsarmos o Governo! Qual é atitude com que, não tendo força, pode-se amansar um assaltante? Oferecer-lhe, adormecê-lo. Mas... somente até que chegue a Polícia. Para isso temos gente suficientemente hábil. Eu não me ofereço, porque estou qualificado como inimigo do Governo. Mas, aí está o Dr. Cuéllar, que não se mete em política, aí estão tantos amigos que podem entender-se com o senhor Presidente. O cortês não elimina o valente.
- Como é isto?
- Não é nada de altas finanças. É algo bem conhecido. Assim como se prende um operário à empresa mediante adiantamentos no barracão, podemos fazer empréstimos ao Governo e assim o teremos no bolso.
- Empréstimo? A um Governo que me quer roubar? – murmurou Omonte.
O Dr. Guamán esfregou as mãos para esquentá-las e continuou:
- Empréstimo, sim senhor. Mas, em que condições! Prazos curtos, empréstimo GARANTIDO (remarcou a palavra com sua voz de orador), garantido contra os mesmos impostos que em pagamento irá computando por conta da empresa, e com o compromisso de não elevá-los, pois que seu montante já estaria comprometido numa obrigação bilateral.
- Mas, o Governo aceitaria isso?
- E para que existimos nós, senhor?
Interveio o Dr. Cuéllar:
- Eu sou chuquisaquenho. Conheço o ambiente de lá. O Governo recebe5rá de joelhos um empréstimo, porque as reivindicações regionais de Sucre e do Oriente, para a estrada de ferro, estão sendo terrivelmente agitadas pela oposição naqueles lugares. É preciso continuar agitando.
- Hum... – exclamou Omonte, em dúvida, olhando Ahpeld.
- Isto é apenas o começo – continuou Cuéllar. – Isto é o engodo para que o Governo vire a cara para o outro lado, enquanto a empresa leva seus capitais para o estrangeiro.
Bruscamente, o Dr. Dávalos interrompeu, para evitar que Cuéllar lhe roubasse a originalidade do plano:
- Este é o grande plano que estudamos, Mr. Writt, os Drs. Guamán e Cuéllar e este servidor: consiste numa dupla manobra. De acordo com as demais empresas mineiras e os Bancos, sitiamos o Governo pela fome. Então lhe oferecemos um empréstimo... prudente.
- E se tenta nos meter mais impostos?
Interveio, rapidamente, Guamán:
- Para isso já teremos os capitais no exterior. O Governo, comprometido a não aumentar impostos, não pode violar o contrato subscrito com uma empresa estrangeira. Além disso, ao tempo de fazer o empréstimo, a empresa deve pedir garantias de tranquilidade política, sugerir, insinuar que acordos financeiros só cabem a um Governo respeitável, o que só pode haver quando se cumprem as duas condições clássicas: gabinete de todos os partidos e suspensão do estado de sítio. Um gabinete assim seria integrado, com aplaudo do país, por homens da confiança da empresa, em especial a Pasta da Fazenda, à qual podemos emprestar um grande elemento técnico. Gabinete de coalizão, ministros conscientes, não atropelariam a indústria mineira.
- E se o presidente não aceita tal gabinete?
- Diminuímos os embarques de estanho, impugnamos os impostos ante o Supremo, negamos empréstimo ao Governo, colaboramos com a oposição. Com menos dinheiro e mais oposição, o Governo cai...
- Mas, e se não cai?
- Então lhe emprestaremos mais dinheiro. Sr. Omonte: o senhor é um homem admirável; disse que a empresa não deve intervir em política, a não ser quando o Governo nos prejudica com suas leis. Isto aconteceu. Em defesa da mineração, conseguimos que este Governo fosse classificado como bolchevique, odiado pela opinião sensata. Agora damos-lhe uma injeção, só para que aceite a transformação da empresa, mas não nos comprometemos muito, porque cairá, de qualquer modo. Fiquemos bem com o presidente, aparentemente, mas guardando a oportunidade para aparecer à cabeça da revolução, no momento oportuno, fazendo pacto desde este momento, em segredo, com os dirigentes opositores. Todos estão ansiosos por tratar com a empresa. Então, em lugar de cair junto com este Governo, seremos os criadores do seguinte, os eixos. Teremos libertado o país da tirania!....
O Dr. Cuéllar adiantou o nariz:
- Agora, permita-me que eu fale, doutor, para reforçar sua brilhante ideia. Como temos de resguardar os interesses da empresa, comerciamos eventualmente com o Governo. O empréstimo, está muito bem. Um ministro nosso, está muito bem. Mas, sem mostrar que é nosso., ele deve permanecer um breve tempo ao lado do déspota e... fazer renúncia sensacional, no momento que a empresa o notificar, às vésperas de um golpe...
Com os polegares nos bolsos do colete, ostentando uma corrente de ouro, o Sr. Omonte tamborilava com seus outros dedos sobre o ventre. Olhou para todos. O Dr. Cuéllar voltou a avançar até a beira da cadeira, ficando seus joelhos pontiagudos quase à altura de seu nariz semítico.
- Eu me comprometo a propor o empréstimo ao Governo. Como sou neutro em política, posso fazê-lo.
- Muito bem – Ahpeld. O primeiro passo é o empréstimo. Com empréstimo, obteremos o Ministro da Fazenda. Com o Ministro da Fazenda, a autorização para a transferência do capital para Nova Iorque e a transformação da empresa em sociedade anônima. É perfeito. Já me haviam dito que o senhor tinha excelentes advogados, Sr. Omonte.
- Obrigado, obrigado...
- Só uma observação – advertiu o Dr. Cuéllar, engolindo saliva por seu pescoço de lagartixa. – Opinou o Dr. Guamán que se deve pedir a suspensão do estado de sítio. Não! Agora, mais do que nunca, a imprensa deve estar calada. Não faltará um jornal para pôr a boca no mundo, dizendo que queremos fazer as minas fugirem da Bolívia!
- Isso é, isso é...
A conferência havia durado duas horas. Omonte pôs-se de pé e deu palmadas amáveis nos ombros de Guamán e Cuéllar; este, por sua vez, limpou-lhe um ombro com um lenço. O Dr. Dávalos arrependeu-se de o haver chamado a La Paz.
Saíram do salão do Banco para comparecer ao almoço que a Associação dos Pequenos Mineiros oferecia a Omonte. Ao colocar-lhe o abrigo, o Dr. Dávalos, sorrindo, disse-lhe ao ouvido:
- Parece os Drs. Guamán e Cuéllar querem ser ministros, mesmo que seja do tirano.
(Metal do Diabo; tradução de Ana Arruda)
(Ilustração: REAL SOCAVÓN – MINAS DE PLATA Y ESTAÑO – POTOSÍ; BOLÍVIA; início do século XX)