terça-feira, 31 de janeiro de 2017

AS TROCAS, de Orides Fontela

1   
    




Um fruto por um

                             ácido

um sol por um

                            sigilo

o oceano por um

                           núcleo

o espaço por uma

                          fuga

a fuga por um

                          silêncio

– riqueza por uma

                          nudez.





(Ilustração: Perry Gallagher – Merkinstache)




sábado, 28 de janeiro de 2017

DANIEL, de Jean-Paul Sartre







As poltronas de vime, a sombra dos plátanos. Daniel banhava-se em velhas recordações aborrecidas; em Vichy, em 1920, adormecera numa poltrona de vime sob as grandes árvores do parque, tinha nos lábios o mesmo sorriso cortês e sua mãe tricotava a seu lado, Marcelle tricotava a seu lado sapatinhos para o menino, sonhava com a guerra, não tinha mais olhos. O eterno zumbido do moscardo, já tanto tempo decorrido, desde Vichy, e o moscardo continuava a zumbir, havia um cheiro de menta; atrás deles, no salão do hotel, alguém tocava piano há vinte anos, há cem anos. Um pouco de sol sobre os dedos frisando os pelos das falanges, um pouco de sol aquecia, no fundo da xícara vazia, uma pequenina poça de café com um recife de açúcar, escuro e crespo, de mil arestas brilhantes. Daniel esmagou o açúcar pelo prazer melancólico de sentir sob a colher o desmoronamento da areia rangente. O jardim deslizava lentamente para o ria, a água morna e lerda, o odor de planta aquecida e a Revue des Deux Mondes que o Sr. de Lestrange, coronel aposentado, deixara sobre uma mesa do outro lado da entrada. A morte, a eternidade, ninguém se se furtará a ela, a doce, a insinuante eternidade; as folhas verdes e meladas acima das cabeças; o eterno montinho das primeiras folhas mortas. Émile cavava, único ser vivo, embaixo dos castanheiros. Era o filho dos patrões, jogara no chão a seu lado, à beira da valeta, um saco de pano cinzento. No saco estava Zizi, a cadela morta: Émile cavava-lhe uma cova; trazia à cabeça um imenso chapéu de palha, o suor escorria-lhe pelo dorso nu. Um rapazola grosseiro e insignificante, de fisionomia dura, um rochedo com duas fendas horizontais e visguentas no lugar dos olhos, tinha dezessete anos, e já corria atrás das mulheres, era campeão local de bilhar e fumava charuto: mas era dono daquele corpo delicioso, imerecido.

- Ah! – disse Marcelle –, se deu ousasse acreditar...

Naturalmente. Naturalmente não ousava acreditar. E no entanto, a ela, que mal podia fazer a guerra? Continuaria a engordar em alguma aldeia, no campo. Será que ela não vai mesmo dar o fora, está deixando passar a hora da sua sesta. Ele apoiava o pé sobre a pá e premia com toda a força; pousar docemente as mãos nos flancos e subir, numa leve pressão, como um massagista, enquanto ele cava a terra, roçar a ponta dos dedos na sombra úmida das axilas; seu suor cheira a timo. Bebeu um gole de bagaceira.

- Seria bom demais – disse Marcelle. – E, depois, a mobilização já começou.

- Mas, minha cara Marcelle, como é que você pode levar a sério isso. A Home Fleet vai dar uma volta pelo mar do Norte, a França mobilizará duzentos mil homens, Hitler reunirá quatro divisões motorizadas na fronteira tcheca. Depois, esses senhores ficarão com a consciência tranquila e poderão conversar tranquilamente em volta de uma mesa.

Corpo de mulher a gente agarra. Borracha, carne desossada, isso se arranja até demais. Aquele belo corpo exigia carinhos de escultor, fora preciso modelá-lo. Daniel endireitou-se bruscamente em sua poltrona e fixou Marcelle com um olhar faiscante. Isso não, isso nunca; esse vício distraído... não, não estou na idade disso. Bebo um gole de bagaceira, falo gravemente da guerra que se anuncia e, durante esse tempo, meu olhar roça, displicentemente, um jovem dorso nu, um traseiro bem feito, preliba todas as possíveis dádivas de uma tarde de verão. Que venha! Que venha a guerra, para embaçar meus olhos, afundá-los nas órbitas, mostrar-lhes enfim corpos conspurcados, sangrentos, desarticulados, que ela me arranque destes eternos desejos, pequeninos e fracos, das folhagens, do zumbido das moscas, dos sorrisos, um gêiser de fogo sobe aos céus, uma chama que queima o rosto e os olhos, a gente pensa que tem as faces arrancadas, que venha afinal o instante inominável que não lembra coisa alguma.

- Mas – disse Marcelle com uma doce indulgência (ela não apreciava as qualidades políticas dele) – a Alemanha não pode recuar, não é? E nós chegamos ao máximo das concessões. Então?

- Não tenha medo – disse Daniel com amargura. – Nós faremos todas as concessões necessárias, não haverá limites. E depois a Alemanha pode dar-se ao luxo de recuar, quem ousaria falar em recuo? Diriam que foi generosidade.

Émile endireitou o busto, enxugava a fronte com a mão, suas axilas fumegavam, olhava o céu sorrindo, um jovem deus. Um jovem deus! Daniel arranhou o braço da poltrona: quantas vezes, senhor, quantas vezes não dissera um jovem deus, ao contemplar um adolescente ao sol. Palavras gastas de tia idosa. Sou um pederasta, e eram ainda palavras que não o perturbavam, de repente pensou: em que a guerra poderia modificar isso? Estaria sentado em algum outeiro, durante uma acalmia, olharia distraidamente o dorso nu de um jovem soldado cavando a terra ou catando piolhos, os lábios já bem treinados murmurariam sozinhos: um jovem deus; a gente se entusiasma em qualquer lugar.

- Afinal – disse brusco –, estamos discutindo à toa. Que haja guerra! Imagino que será vivida mesquinhamente, como tudo.

- Oh! Daniel. – Marcelle parecia realmente escandalizada. – Como pode dizer isso? Seria... seria terrível!

Palavras. Sempre palavras.

- O que de terrível – disse Daniel sorrindo – é que nada é jamais muito terrível. Não há extremos.

Marcelle olhou-o com certa surpresa, seus olhos tinham perdido o brilho; está ficando com sono, pensou Daniel, satisfeito.

- Se você me dissesse isso dos sofrimentos morais, ainda o compreenderia. Mas há os sofrimentos físicos, Daniel...

- Ah! – disse Daniel, ameaçando-a com o dedo. – Já está pensando as suas futuras dores! Você verá, você verá que isso também terá sido exagerado.

Marcelle sorriu-lhe, reprimindo um bocejo.

- Vamos – disse Daniel, levantando-se –, não se atormente, Marcelle. Quase deixou passar a hora da sesta. Você não dorme o suficiente; no seu estado é preciso dormir muito.

- Não durmo bastante? – Ria e bocejava ao mesmo tempo. – Tenho vergonha até, não leio mais nada, passo meus dias na cama.

Felizmente, pensou Daniel, beijando-lhe a ponta dos dedos.

- Aposto – disse – que ainda não escreveu à senhora sua mãe.

- É verdade. Sou uma filha ingrata. – Bocejou acrescentando: - Vou fazê-lo antes de dormir.

- Não, não – disse Daniel com vivacidade –, vá descansar imediatamente. Eu é que lhe mandarei uma palavrinha.

- Oh! Daniel – disse Marcelle, encantada e confusa. – Uma carta do genro, ela vai sentir-se orgulhosa!

Subiu a escada com dificuldade e ele tornou a sentar-se na poltrona. Bocejou, passou-se algum tempo e ele percebeu que estava ouvindo o piano. Olhou o relógio: eram três horas e vinte e cinco. Marcelle desceria às seis para seu passeio-aperitivo. Tenho duas horas e meia diante de mim, pensou com certa apreensão. Bem: outrora sua solidão era como o ar que se respira, vivia-a sem a ver. Agora, era-lhe concedida aos poucos e ele não sabia o que fazer dela. O mais extraordinário é que me aborreço menos quando Marcelle se acha comigo. Você quis assim, disse a si mesmo, você quis assim! Sobrava um gole de bagaceira no fundo do copo, bebeu-o. Naquela noite de junho, quando resolvera desposar Marcelle, arquejava de angústia, acreditava mergulhar no horror. Tudo isso para chegar àquele ponto, à poltrona de vime, ao gosto levemente podre da bagaceira em sua boca, ao dorso nu. A guerra, seria a mesma coisa. O horror, é sempre para o dia seguinte. Eu casado, eu soldado: só encontro a mim mesmo. E nem mesmo eu: uma sequência de pequenas deslocações excêntricas, de pequenos movimentos centrífugos e nenhum centro. Entretanto, há um centro. Um centro: eu. Eu – e o horror está no centro. Ergueu a cabeça, a mosca zunia à altura dos seus olhos, espantou-a. Mais uma fuga. Um pequeno gesto com a mão, um quase nada, já ele escapava de si: que importa a mosca? Ser de pedra, imóvel, insensível, sem um gesto, sem um ruído, cego e surdo, as moscas, os insetos passando sobre o meu corpo, uma estátua severa de olhos vazios sem um projeto, sem uma preocupação; talvez conseguisse coincidir comigo mesmo. Não, certamente, para me aceitar; para ser, enfim, o objeto de meu ódio. Houve uma espécie de dilaceração, quatro notas de uma polonaise, o brilho daquele dorso, uma formigação no polegar e depois ele se recolheu, se juntou de novo. Ser o que sou, ser um pederasta, um mau, um covarde, essa imundície, em suma, que não chega sequer a existir. Encostou os joelhos, pousou as mãos sobre as coxas, teve vontade de rir: devo ter um ar muito decente, e deu de ombros, imbecil. Não me incomodar mais com o meu jeito, sobretudo não me olhar mais; se me olho sou dois. Ser. No escuro, às cegas. Ser pederasta, como a árvore é árvore. Apagar-se. Apagar o olhar interior. Pensou: apagar. A palavra repercutiu como um trovão, ecoou por imensas salas vazias. Espantar palavras, eram um pulular de pequenos sursis, cada qual lhe marcando encontro ao fim de si mesmo.... Houve nova dilaceração. Daniel encontrou-se sonolento e enfarado, um sujeito que tem apenas duas horas diante de si e se distrai como pode. Ser como eles me veem, como Mathieu me vê – e Ralph com sua cabecinha suja; espantar as palavras como mosquitos; pôs-se a contar mentalmente, um, dois – palavras surgiram: divertimento de veranistas. Mas contou mais depressa, tornou mais apertadas as malhas da rede e as palavras não passaram mais. Cinco, seis, sete, oito, o fundo do mar, uma imagem estava lá, agachada, medonha, comum a essas profundezas, uma aranha-do-mar, desabrochando, vinte e dois, vinte e três, Daniel percebeu que retinha a respiração, relaxou-a, vinte e sete, vinte e oito, o outro cavava sempre lá em cima, na superfície; a imagem: era uma chaga aberta, boca amarga, esses lábios abertos e o sangue que brota deles, trinta e três, a imagem era-lhe familiar e no entanto formava-a pela primeira vez. Espantar as imagens também; estava tomado por um medo estranho e leve. Deslizar, deixar-se deslizar como quando se deseja dormir. Mas estou cochilando! Sacudiu-se, emergiu à tona. Que silêncio, cá fora! O silêncio esmagador, semimorto, que buscava em vão dentro dele, ali estava, e dava medo. O sol esparso juncava o chão de círculos pálidos e irrequietos, a cadela morta, o murmúrio do rio na copa das árvores, o dorso nu, tão próximo, tão longínquo, sentia-se terrivelmente estranho a tudo que se deixou mergulhar outra vez, afundou para trás, agora via o jardim por baixo como um mergulhador que ergue a cabeça e olha o céu através da água. Sem ruído, sem voz, pequeno hiato tagarela no centro do silêncio. Um, dois, três, espantar as palavras, que o silêncio do jardim atravesse, se junte e se unifique através de mim; regularizar a respiração. Lentamente, profundamente, que cada coluna de ar esmague como uma prisão as palavras que tentarem nascer. Ser, como uma árvore, como o dorso nu, como as luazinhas borboleteantes na terra rósea. Se fechasse os olhos: os olhos conduzem longe demais, para fora do instante, para fora de mim, para lá longe, nas folhas, no dorso; o olhar acuado, furtivo, fugidio, sempre no extremo de si mesmo, apalpa a distância. Mas não ousou cerar as pálpebras: Émile devia olhá-lo às escondidas, de vez em quando, e ele teria o ar de um senhor de idade apanhado por uma sonolência digestiva; antes fascinar-se diante de alguma coisa, dar alimento aos olhos, amarrar o olhar, nutri-lo e descer ao fundo de si próprio, libertado dos olhos, dentro da minha noite espessa; fixou o canteiro, à esquerda, um grande ritmo verde, coagulado; uma onda imobilizada no momento em que se desfaz; o olhar perdido, jogado sem cessar de uma a outra folha, dissolvia-se naquela desordem vegetal. Um (inspiração), dois (expiração), três (inspiração), quatro (expiração). Descia turbilhonando, no caminho veio-lhe uma formigante vontade de rir, banco o dervixe, tomara que eu não engula a língua, já ela se projetava acima dele, ele afundava, cruzava palavras em trapos: medo, desafio, que voltavam à tona. Um desafio ao céu claro, ele o pensava sem imagens, sem palavras, está vindo, abrir-se como uma boca-de-lobo. Sob o azul, uma reivindicação amarga, uma súplica vã. “Eli, Eli, lamma sabacthani”, foram as últimas palavras que encontrou, subiam dentro dele como bolhas leves, a parede verde do canteiro ali estava, despercebida, uma plenitude de presença diante de seus olhos, está vindo, está vindo. Sentir-se cortado, rasgado como por um golpe de foice, era extraordinário, desesperante, delicioso. Aberto, aberto, a casaca estoura, aberto, aberto, pleno, eu mesmo para sempre, pederasta, mau, covarde. Estão-me vendo, não. Não é isso; alguma coisa me vê. Sentia-se objeto de um olhar. Um olhar que o perscrutava até o fundo, que o penetrava a golpes de punhal e que não era o seu olhar; um olhar opaco, a própria noite, que o esperava no fundo dele mesmo e o condenava a ser ele mesmo, covarde, hipócrita, pederasta para sempre. Ele mesmo, palpitando sob esse olhar e desafiando esse olhar. Estou sendo visto. Transparente, transparente, transpassado. Por quem? Não estou só, disse Daniel em voz alta. Émile ergeu-se.

- Que é que há, Sr. Sereno? – disse.

- Estava lhe perguntando se demoraria muito ainda.

- Estou terminando – disse Émile –, mais alguns minutos.

Não se apressava em recomeçar a cavar, olhava Daniel com uma curiosidade insolente. Mas aquilo era um olhar humano, um olhar que a gente podia enfrentar. Daniel levantou-se, tremia de medo:

- Não fica cansado de cavar assim com este sol?

- Estou acostumado – disse Émile.

Tinha um peito encantador, um pouco gordo, com dois minúsculos pontos róseos; apoiava-se à enxada com um ar provocante; a três passos.... Mas havia aquele estranho, estranho gozo mais acre que todas as volúpias, havia aquele olhar.

- Faz calor demais para mim – disse Daniel –, acho que vou subir para descansar um instante.

Inclinou de leve a cabeça e subiu a escada. Tinha a boca seca, mas estava decidido: no quarto, baixada a cortina, venezianas fechadas, recomeçaria a experiência.



(Sursis; tradução de Sérgio Milliet)




(Ilustração: Dino Valls - Per Luctum)



quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

OS PRIMEIROS, de Roseana Murray

   







O que me separa do primeiro homem,

da primeira mulher do mundo,

dos seus medos, pavores, desejos,

anseios?



O que me separa quando o último

fio de lua ilumina a última

folha da mata

e em silêncio a manhã já se desgarra?



Uma fina película de tempo,

um grão de poeira de tempo.





(Ilustração: Johnny Palacios Hidalgo)




segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

UMA DESGRAÇA PARA O AFEGANISTÃO, de Khaled Hosseini







Houve um estrondo que mais parecia um trovão. A terra estremeceu um pouco e ouvimos o ra-ta-ta-ta-tá de uma arma de fogo.

- Pai! - gritou Hassan. Levantamos de um salto e saímos correndo da sala de visitas. Fomos encontrar Ali atarantado, mancando freneticamente de um lado para o outro do saguão.

- Pai! Que barulho foi esse? - gritou Hassan correndo para ele com os braços estendidos. Ali o abraçou. Um clarão esbranquiçado iluminou o céu em tons de prateado. Depois, um outro clarão seguido do rápido staccato da artilharia.

- Estão caçando patos - respondeu Ali com a voz rouca. - Você sabe que é à noite que se caçam patos. Não tenha medo.

Uma sirene passou à distância. Em algum lugar um vidro se estilhaçou e alguém gritou. Ouvi barulho de gente na rua, provavelmente acordada em sobressalto e ainda de pijamas, com os cabelos despenteados e os olhos inchados. Hassan estava chorando. Ali o abraçou ainda mais, apertando-o com ternura. Mais tarde, diria a mim mesmo que não fiquei com inveja de Hassan. De jeito nenhum.

Ficamos assim amontoados até as primeiras horas da manhã. O tiroteio e as explosões não duraram nem uma hora, mas nos deixaram apavorados, porque nenhum de nós jamais tinha ouvido tiros pelas ruas. Nessa época, aqueles ruídos eram estranhos para nós. A geração de crianças afegãs cujos ouvidos só conheceram o som das bombas e da artilharia ainda estava por nascer. Bem jutinhos, na sala de jantar, esperando o dia clarear, nenhum dos três fazia a menor ideia de que um jeito de viver tinha terminado. O nosso. Não de imediato, mas aquele instante tinha marcado o começo do fim. O fim, o fim oficial chegaria primeiro em abril de 1978, com o golpe de Estado comunista, e, depois, em dezembro de 1979, quando os tanques russos começaram a circular por aquelas mesmas ruas onde Hassan e eu brincávamos, trazendo a morte do Afeganistão que conheci e dando início a uma era sangrenta que perdura até hoje.

Um pouco antes do nascer do sol, o carro de baba embicou na entrada da casa. Ouvimos a porta bater e os seus passos apressados ressoando nos degraus. Então, ele surgiu na porta da frente e vi algo em seu rosto, algo que não consegui identificar imediatamente, pois nunca tinha visto aquilo antes: medo.

- Amir! Hassan! - exclamou ele correndo na nossa direção com os braços abertos. - Bloquearam todas as estradas e o telefone não estava funcionando. Fiquei preocupado!

Deixamos que nos apertasse em seus braços e, por um breve instante de loucura, fiquei feliz pelo que quer que tivesse acontecido aquela noite.

Ninguém estava caçando patos, afinal. Como ficamos sabendo depois, eles não tinham tido muito em que atirar naquela noite de 17 de julho de 1973. Quando Cabul acordou na manhã seguinte, descobriu que a monarquia era coisa do passado. O rei, Zahir Shah, estava na Itália. Aproveitando-se da sua ausência, seu primou Daoud Khan pôs fim a um reinado de quarenta anos com um golpe sem derramamento de sangue.

Lembro que, naquela manhã, Hassan e eu ficamos agachados perto da porta do escritório de meu pai enquanto baba e Rahim Khan tomavam chá preto e ouviam as últimas notícias do golpe transmitidas pela rádio Cabul.

- Amir agha... - sussurrou Hassan.

- O quê?

- O que é uma "república"?

- Não sei - disse eu dando de ombros. No rádio de baba aquela palavra, república, estava sendo repetida milhares de vezes.

- Amir agha...

- O quê?

- Não quero que eles nos mandem embora, o pai e eu.

Sorri para ele.

- Bas, seu burro. Ninguém está mandando vocês embora.

- Amir agha...

- O quê?

- Você quer subir na nossa árvore?

Meu sorriso se alargou. Isso era outra característica de Hassan. Sempre sabia dizer a coisa certa na hora certa - as notícias do rádio já estavam ficando muito chatas. Ele foi para casa se aprontar e eu fui pegar um livro. Depois, passei pela cozinha, enchi os bolsos de pinhões e corri para o quintal ao encontro de Hassan, que estava esperando por mim. Saímos em disparada pelo portão principal e tomamos o rumo da colina.

Passamos pelas ruas residenciais e estávamos caminhando por um grande terreno baldio que tínhamos de atravessar para chegar à colina quando, de repente, uma pedra acertou Hassan pelas costas. Viramo-nos e meu coração quase parou. Assef e dois de seus amigos, Wali e Kamal, estavam vindo em nossa direção.

Assef era filho de um amigo de meu pai, Mahmud, um piloto de avião. Moravam a umas poucas ruas ao sul da nossa casa, em um condomínio elegante, com muros altos e palmeiras. Se você fosse uma criança que morasse no bairro Wazir Akbar Khan, em Cabul, já teria ouvido falar de Assef e do seu célebre soco-inglês de aço inoxidável, se não tivesse tido o azar de experimentá-lo na própria pele. Filho de mãe alemã e pai afegão, Assef era louro, de olhos azuis e bem mais alto que todos os outros garotos. Sua merecida fama de atos de selvageria o precedia pelas ruas. Ladeado por seus amigos obedientes, circulava pelas redondezas como um khan que passeasse pelas suas terras cercado de seu séquito obsequioso. Sua palavra ela lei e se por acaso você precisasse de alguma instrução legal, aquele soco-inglês metálico era o instrumento ideal para ele lhe transmitir os seus ensinamentos. Uma vez vi Assef usar o soco-inglês em um menino do bairro de Karteh-Char. Nunca vou esquecer como os seus olhos azuis brilhavam com uma luz não inteiramente sã, e como ele sorria, sim, como sorria enquanto esmurrava o pobre garoto inconsciente. Alguns meninos de Wazir Akbar Khan o tinham apelidado Assef Gosbkhor, ou Assef, o "Comedor de Orelhas". É claro que ninguém ousava dizer isso na cara dele, a menos que quisesse ter o mesmo destino do pobre garoto que tinha inspirado involuntariamente esse apelido quando brigou com Assef por causa de uma pipa e acabou tendo que pescar a própria orelha direita dentro de uma valeta enlameada. Anos mais tarde, aprendi uma palavra que define muito bem uma criatura como Assef, uma palavra para a qual não existe um equivalente perfeito em farsi: "sociopata".

De todos os meninos da vizinhança que torturavam Ali, Assef era de longe o mais incansável. Na verdade, foi ele que inventou a tal história de "Babalu": "Ei, Babalu, quem foi que você comeu hoje? Uh-uh! Como é, Babalu? Dê um sorriso para nós!" E, quando estava particularmente inspirado, caprichava ainda mais no deboche: "Ei, seu Babalu de nariz achatado, quem foi que você comeu hoje? Não vai dizer não, seu burro de olhos puxados?"

Agora, lá estava ele, vindo em nossa direção, com as mãos nas cadeiras e os tênis levantando nuvenzinhas de poeira no chão.

- Bom dia, kunis! - exclamou Assef, acenando com a mão. "Bichas": este era mais um de seus insultos favoritos. Hassan se escondeu atrás de mim quando os três garotos mais velhos chegaram bem perto. Ficaram parados na nossa frente: aqueles três sujeitos altos, usando camiseta e calça jeans. Pairando muito acima de nós, Assef cruzou os braços musculosos diante do peito, com uma espécie de sorriso selvagem nos lábios. Não foi a primeira vez que me passou pela cabeça que ele não era inteiramente normal. Também me passou pela cabeça a sorte que eu tinha por ser filho de baba, o único motivo, creio eu, para que Assef quase sempre evitasse me atormentar demais.

Esticou o queixo, apontando para Hassan.

- Ei, nariz achatado! - exclamou ele. - Como vai Babalu?

Hassan não disse nada e deu mais um passo para trás.

- Ouviram as notícias, meninos? - prosseguiu ele, ainda com aquele sorriso nos lábios. - O rei já era. E já vai tarde! Vida longa para o presidente! Meu pai conhece Daoud Khan, sabia, Amir?

- O meu também - disse eu. Para ser sincero, não tinha a menor ideia se aquilo era verdade ou não.

- O meu também - repetiu Assef me imitando, com uma vozinha chorosa. Kamal e Wali riram em uníssono. E eu desejei que baba estivesse ali.

- É, Daoud Khan jantou lá em casa no ano passado - acrescentou Assef. - O que você acha disso, Amir?

Perguntei a mim mesmo se alguém no ouviria gritar, aqui nesse terreno isolado. A casa de baba ficava bem a um quilômetro de distância. Adoraria que não tivéssemos saído...

- Sabe o que vou dizer a Daoud Khan da próxima vez que ele for jantar lá em casa? - indagou Assef. - Vou ter uma conversinha com ele, de homem para homem, mard para mard. E vou lhe dizer o que disse para minha mãe. Sobre Hitler. Aquilo, sim, é que era um líder. Um grande líder. Um homem de visão. Vou dizer a Daoud Khan que se tivessem deixado Hitler terminar o que começou, o mundo hoje seria um lugar muito melhor.

- Baba diz que Hitler era louco, que mandou matar um monte de gente inocente - me ouvi dizendo antes que tivesse tempo de tapar a boca com a mão.

Assef deu uma risadinha.

- Parece até minha mãe, e olhe que ela é alemã... Não devia cair nessa... Mas acontece que eles querem que vocês acreditem nisso, não é? Não querem que saibam a verdade.

Não fazia a mínima ideia de quem seriam esses "eles", ou que verdade era essa que estariam escondendo, mas também não fazia a mínima questão de saber. Tudo o que queria era não ter dito nada. E, mais uma vez, desejei levantar os olhos e dar com baba subindo a colina.

- Mas a gente tem que ler os livros que nos dão na escola - prosseguiu ele. - Eu li. E isso me abriu os olhos. Agora, tenho uma posição, e vou dividi-la com nosso novo presidente. Sabe o que isso significa?

Fiz que não com a cabeça. De um jeito ou de outro, ele ia dizer mesmo. Assef sempre respondia às perguntas que ele próprio fazia.

Seus olhos azuis se moveram rapidamente, voltando-se para Hassan.

- O Afeganistão é a terra dos pashtuns. Sempre foi e sempre será. Nós é que somos os verdadeiros afegãos, os afegãos puros, e não esse "nariz achatado" aqui. Essa gente polui a nossa terra, o nosso watan. Sujam o nosso sangue. - Fez um gesto bem amplo com as mãos. - O Afeganistão para os pashtuns, é isso aí! Essa é a minha posição.

Voltou a olhar para mim. Parecia alguém acordado de um sonho.

- Para Hitler, é tarde demais - disse ele. - Para nós, não. - Apanhou alguma coisa no bolso de trás do jeans. - Vou dizer ao presidente para fazer o que o rei não teve quwat de fazer. Livrar o Afeganistão de todos esses hazaras nojentos, kassef!

- Deixe a gente ir, Assef - disse eu, com ódio ao ver que minha voz tremia. - Não estamos atrapalhando você...

- Mas claro que estão - retrucou ele.

E o meu coração quase parou quando vi o que ele tinha apanhado no bolso. É lógico. O soco-inglês de aço inoxidável reluzia ao sol.

- Estão me atrapalhando muitíssimo. Na verdade, você me aborrece muito mais que esse hazara aí. Como pode falar com ele, brincar com ele, deixar que ele toque em você? - perguntou com a voz cheia de repulsa. Wali e Kamal assentiram com a cabeça e com um grunhido. Assef apertou os olhos. Abanou a cabeça. Quando voltou a falar, sua voz soou tão espantada quanto parecia o seu rosto. - Como pode chamá-lo de "amigo"?

"Mas ele não é meu amigo!" foi o que quase deixei escapar. "É meu empregado!" Será que tinha realmente pensado isso? Não. Claro que não. Sempre tratei Hassan muito bem, como um amigo; talvez até melhor, como um irmão. Mas, então, por que será que quando os amigos de baba vinham nos visitar com os filhos, eu nunca incluía Hassan nas nossas brincadeiras? Por que só brincava com ele quando não tinha mais ninguém por perto?

Assef enfiou o soco-inglês na mão. E me lançou um olhar glacial.

- Você é parte do problema, Amir. Hoje em dia, já estaríamos livres dessa gente se idiotas como você e seu pai não os acolhessem. Todos teriam apodrecido em Hazarajat, que é o lugar deles. Você é uma desgraça para o Afeganistão.

Olhei para o seus olhos enlouquecidos e vi que estava falando sério, que realmente pretendia me atacar. Assef ergueu o punho e partiu para cima de mim.

Percebi um movimento rápido às minhas costas. Com o canto do olho, vi Hassan se abaixar e voltar a se erguer bem depressa. Os olhos de Assef avistaram algo atrás de mim e se arregalaram de espanto. Vi o mesmo olhar perplexo no rosto de Kamal e de Wali quando também se deram conta do que estava acontecendo.

Virei e dei de cara com o estilingue de Hassan. A tira elástica estava toda esticada para trás. Na lingueta, uma pedra do tamanho de uma noz. Hassan estava mirando bem no meio do rosto de Assef. Sua mão tremia com o esforço para manter a tira retesada e gotas de suor banhavam sua testa.

- Por favor, deixe-nos em paz, agha - disse ele com voz impassível. Chamou Assef de "agha" e, por um segundo, me perguntei como deveria ser levar uma vida assim, com uma noção tão entranhada de qual é o lugar que lhe cabe em uma hierarquia.

Assef cerrou os dentes.

- Baixe isso, seu hazara sem mãe!

- Por favor, deixe a gente em paz, agha - insistiu Hassan.

Assef sorriu.

- Talvez você não tenha notado, mas somos três, e vocês, apenas dois.

Hassan deu de ombros. Para alguém que não o conhecesse, não parecia estar com medo. Mas aquele rosto era a minha lembrança mais remota e eu conhecia cada uma das suas nuanças mais sutis, cada contração ou estremecimento que porventura se desenhasse ali. E vi que estava com medo. Com muito medo mesmo.

- Tem razão, agha. Mas talvez você não tenha notado que sou eu que estou segurando o estilingue. Se fizer o mínimo movimento, terá de trocar o apelido de Assef, o "Comedor de Orelhas", para Assef, o "Caolho", pois esta pedra está apontada para o seu olho esquerdo.

Disse isto de um jeito tão tranquilo que até eu tive de fazer um esforço para perceber o medo que sabia estar escondido por baixo daquela calma.

A boca de Assef se retorceu. Wali e Kamal olhavam aquele confronto com uma espécie de fascínio. Alguém tinha desafiado o seu deus. Ele estava sendo humilhado. E, o que era pior, esse alguém era um hazara franzino. Assef olhava para a pedra e para Hassan. Observava o rosto do menino atentamente. O que viu ali deve tê-lo convencido da seriedade das suas intenções, pois baixou o punho.

- Tem uma coisa que você precisa saber a meu respeito, seu hazara - disse ele num tom grave. - Sou um cara muito paciente. Isto não vai ficar assim, pode acreditar no que estou dizendo. - E acrescentou, virando-se para mim. - Isso vale para você também, Amir. Algum dia vou fazer você me enfrentar e vai ser só entre nós dois.

Assef deu um passo atrás. Seus discípulos o seguiram.

- O seu hazara cometeu um grande erro hoje, Amir - disse ele. Os três viraram então as costas e foram embora. Fiquei olhando enquanto desciam a colina, até que desapareceram atrás de um muro.

Hassan estava tentando enfiar o estilingue na cintura com as mãos trêmulas. Sua boca se contorceu fazendo algo que, supostamente, pretendia ser um sorriso tranquilizador. Só na terceira tentativa é que conseguiu prender o estilingue no cordão da calça. Temerosos, nenhum de nós disse praticamente nada no caminho até em casa, pois podíamos jurar que Assef e seus amigos estariam emboscados em cada esquina. Mas não estavam, e deveríamos ter ficado um pouco mais tranquilos. Mas não ficamos. Não mesmo.



(O caçador de pipas; tradução de Maria Helena Rouanet)



(Ilustração: menino afegão - foto de Ahmad Jamshid)



quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

SEXO ORAL, de Maurício de Macedo








Ponho as palavras em sua boca.

Você lambe,

lambuza

as palavras intumescidas

que ponho em sua boca.



Você lambe,

lambuza,

faz crescer as palavras

que ponho em sua boca.

Faz florescer as palavras

– pétalas de jasmim –

que ponho em sua boca.



Palavras que ponho

em sua boca

e que aguardo se façam corpo

como o cego pedinte

aguardando o tilintar

da moeda na latinha.



(Ossos da Palavra)





(Ilustração: René Lelong)






segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

MEU AVÔ DESCONHECIDO, de Ricardo Ramos Filho






Muitos me perguntam, já perdi a conta de quantas vezes respondi, mas não conheci Graciliano. Vim ao mundo no começo do ano seguinte à sua morte, primeiro nascimento na família após a partida do autor alagoano (1892-1953).

Dizem que foi grande a alegria, festejaram bastante a minha chegada. Entusiasmo por pouco não transformado em tragédia; fardo dificílimo carregaria para o resto de minha pobre vida se me batizassem como pretendiam.

No início, aventaram a possibilidade de me homenagear com o nome de vovô, ou o contrário, nunca entendi bem a quem seria o tributo. O fato é que, se tivesse vingado, este texto seria assinado por Graciliano Neto. Felizmente minha mãe preferiu presentear o marido --nasci no dia do aniversário de meu pai e virei Ricardo Filho.

Minha avó Heloísa Ramos, recém-viúva, afeiçoou-se demais a mim. Parentes maldosos, versados em Freud, apressaram-se em diagnosticar tanto carinho como transferência. Nunca me importei, até porque só fui precisar do psicanalista austríaco bem mais tarde. Aproveitei ao máximo o convívio com vó Lozinha. O velho Grace, embora avô desconhecido, acabou por tornar-se íntimo, pois vovó falava nele o tempo todo.

Para mim, era um herói igual aos encontrados nos gibis. Tinha muito do Fantasma, a cadela Baleia era o seu Capeto. Imaginava-o um Tarzan nordestino, encontrava-o no Príncipe Valente e no Robbin Hood. Só imaginando-o em uma Sherwood alagoana, aliando-se aos pobres contra os ricos, consegui entender por que tinha sido preso. Da mesma forma que o Popeye não largava o cachimbo, meu avô não desgrudava do cigarro: era assim que o via em todas as fotos.

Como acontece com a maioria das pessoas, cresci. E, ao entrar em contato com a obra de Graciliano Ramos, mudei minha relação com ele. É claro que fiquei impressionado. Como é que alguém podia assinar um texto sem assinar?

Seu jeito característico de arranjar palavras, tão pessoal na maneira de dizê-las, permitia-me encontrá-lo com facilidade em qualquer página avulsa escrita por ele, mesmo sem identificação.

De certa forma, aquele herói tão próximo afastou-se. O respeito instalou-se e virou reverência. Embora tivesse muito carinho pelo primeiro, o segundo transformou-se em exemplo importante, matéria de estudo, referência.

Ao olhar a foto presente na edição de "O Velho Graça", de Dênis de Moraes, que está saindo pela Boitempo, vejo o escritor. Recupero misturadas informações lidas e familiares. Ouço minha mãe referindo-se ao mau humor dele nas vésperas de partir para o estrangeiro, provavelmente inseguro ante perspectiva tão assustadora.

Lembro-me do início de "Viagem", onde ele conta que em abril de 1952 embrenhou-se em uma aventura singular. Foi a Moscou e a outros lugares. Para ele, homem sedentário, resignado ao ônibus e ao bonde quando o movimento era indispensável, não deve ter sido fácil.

Sair de sua toca e entrar em um avião, aparelho assassino, atravessar o oceano e conviver com pessoas diferentes, tendo a necessidade de entendê-las e precisando de intérpretes, encontrar uma polícia que, em vez de levá-lo para a cadeia, como lhe parecia natural, ajudava-o, todas essas experiências novas me parecem marcadas em sua silhueta magra de braços cruzados.

Atento, curioso, divertindo-se com o discurso da menina de sobrancelhas "lobatianas". Vejo no corpo frágil o esforço físico necessário para estar ali. Talvez por eu conhecer seu destino -- em menos de um ano, 20 de março de 1953, estaria morto.

Imagino-o mergulhado em seu humor característico ácido, irônico, inteligente, atento ao que ocorria a seu entorno e tirando suas conclusões. Não encontro o cigarro em seus dedos e sei o quanto deve estar sentindo falta.

Um Dalcídio Jurandir empertigado à sua direita e o amigo Sinval Palmeira, o primeiro à esquerda na foto, também não me parecem confortáveis. Ao vê-lo nessa antiga fotografia em preto e branco, recupero o meu avô desconhecido.

Com carinho e respeito.



(Folha de São Paulo)




(Ilustração: Graciliano Ramos:  em visita a Moscou, em 1952; Sinval Palmeira, 1ª à esquerda; Graciliano Ramos, de braços cruzados e Dalcídio Jurandir, à dir. de Graciliano)


sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

PRINCÍPIO DO PRAZER, de Vasco Graça Moura







à sua volta os pombos cor de lava

nos arabescos pretos do basalto

e gente, muita gente que passava

e se detinha a olhá-la em sobressalto



no seu olhar havia uma promessa

nos seus quadris dançava um desafio

num relance de barco mas sem pressa

que fosse ao sol-poente pelo rio



trazia nos cabelos um perfume

a derramar-se em praias de alabastro

e um brilho mais sombrio quase lume

de fogo-fátuo a coroar um mastro



seu porte altivo punha à vista o puro

princípio do prazer que caminhava

carnal e nobre e lúcido e seguro

com qualquer coisa de uma orquídea brava



e nas ruas da baixa pombalina

sua blusa encarnada era a bandeira

e o grito da revolta na retina

de quem fosse atrás dela a vida inteira.





(Ilustração: Francisco Ribera Gomez - Raza)




terça-feira, 10 de janeiro de 2017

CIRCUITO FECHADO, de Ricardo Ramos






Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo; pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos,  caneta, chaves, lenço, relógio, maços de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapos. Quadros.  Pasta,  carro. Cigarro,  fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda, copo com lápis, canetas, blocos de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída, vaso com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro e fósforo. Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes, telefone, papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósforo, bloco de papel, caneta, projetos de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo, quadro-negro, giz, papel. Mictório, pia, água. Táxi. Mesa,  toalha,  cadeiras, copos, pratos, talheres, garrafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova de dentes, pasta, água. Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro, fósforo, telefone interno, externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel, pasta, cigarro, fósforo, papel e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto, xícara, jornal, cigarro, fósforo, papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa,  cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras, cigarro e fósforo. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras, camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, travesseiro.




(Ilustração: Paul McDevitt)



sábado, 7 de janeiro de 2017

A LA MARQUISE / À MARQUESA, de Pierre Corneille






Marquise, si mon visage

A quelques traits un peu vieux,

Souvenez-vous qu’à mon âge

Vous ne vaudrez guère mieux



Le temps aux plus belles choses

Se plaît à faire un affront,

Et saura faner vos roses

Comme il a ridé mon front.



Le même cours des planètes

Règle nos jours et nos nuits

On m’a vu ce que vous êtes;

Vous serez ce que je suis.



Cependant j’ai quelques charmes

Qui sont assez éclatants

Pour n’avoir pas trop d’alarmes

De ces ravages du temps.



Vous en avez qu’on adore;

Mais ceux que vous méprisez

Pourraient bien durer encore

Quand ceux-là seront usés.



Ils pourront sauver la gloire

Des yeux qui me semblent doux,

Et dans mille ans faire croire

Ce qu’il me plaira de vous.



Chez cette race nouvelle,

Où j’aurai quelque crédit,

Vous ne passerez pour belle

Qu’autant que je l’aurai dit.



Pensez-y, belle marquise.

Quoiqu’un grison fasse effroi,

Il vaut bien qu’on le courtise

Quand il est fait comme moi.



Tradução de Fabio Malavoglia:



Marquesa, se meu semblante

exibe traços um tanto idosos,

lembrai que a vós não se garante

Em idade igual, melhores gozos.



O tempo às coisas mais formosas

apraz secar as belas fontes

fenecerá as vossas rosas

como riscou a minha fronte.



É o mesmo círculo de sóis

que regra os dias no seu voo

Eu já me vi tal qual vós sois

E vós sereis tal como sou.



Possuo porém certos talentos

aqui assentes e evidentes

para não ser mais tão atento

ao fim do tempo e seus poentes.



Tendes os vossos e há quem adora;

mas esses meus que desprezais

podem durar além da hora

que usado aqueles, não tenhais mais.



Pois poderão salvar a glória

Do olhar que a mim surgia doce

E dar mil anos à memória

Do que em vós prazer me fosse.



Eu junto a tal raça futura

serei quem sabe creditado

E assim da vossa formosura

só se dirá o por mim cantado.



Nisso pensai, marquesa bela:

Quem mechas cinzas um dia temeu

melhor faria se a corte dela

Cedesse enfim a um como eu.





(Ilustração: Roberto Ferri)



quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

UM AMIGO EM TALAS, de Graciliano Ramos







O meu antigo companheiro de pensão Amadeu Amaral Júnior, um homem louro e fornido, tinha costumes singulares que espantavam os outros hóspedes.

Para falar com propriedade, aquilo não era exatamente pensão, mas isto não tem importância: com um pouco de esforço podíamos admitir que estávamos numa pensão de gente bem comportada. Bocejávamos em demasia, contávamos as pessoas que subiam ou desciam um morro próximo, dormíamos cedo e recebíamos com regularidade a visita do gerente do estabelecimento, o major Nunes, ótima criatura que deixou o cargo por lhe faltar o espírito do negócio.

Amadeu Amaral Júnior vestia-se com sobriedade: usava uma cueca preta e calçava medonhos tamancos barulhentos. Fora isso, o que tinha em cima do corpo era a barba, economicamente desenvolvida, uma barba enorme. Parecia um troglodita. Alimentava-se mal, espichava-se na cama, roncava o dia inteiro e passava as noites acordado, passeando, agitando o soalho, o que provocava a indignação dos outros pensionistas. Quando se cansava, sentava-se a uma grande mesa ao fundo da sala e escrevia o resto da noite. Leu um tratado de psicologia e trocou-o em miúdo, isto é, reduziu-o a artigos, uns quarenta ou cinquenta, que projetou meter nas revistas e nos jornais e com o produto vestir-se, habitar uma casa diferente daquela e pagar ao barbeiro.

Mudamo-nos, separamo-nos, perdemo-nos de vista. Creio que os artigos de psicologia não foram publicados, pois há tempo li este anúncio num semanário: "Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita trabalho”.

O anúncio não produziu nenhum efeito, é o que meses depois nos declara Amadeu Amaral Júnior: "Minha situação continua preta. Reitero o apelo às almas bem formadas: deem de comer a quem tem fome, uma fome atávica, milenária. Deem-me trabalho." E, catalogando as suas habilidades: "Escrevo poesias, crônicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano, espanhol e um bocado de alemão. Deem-me trabalho pelo amor de Deus ou do diabo."

De literato brasileiro não conheço página mais sincera e razoável que essa. Ao ler o pedido de roupa velha e pão duro, fiquei meio escandalizado, mas refletindo, confessei publicamente que o meu velho companheiro procedia com acerto. E agora, completamente solidário com ele, admiro a exposição que nos faz das suas aptidões e lamento que não as utilizem.

É evidente que Amadeu Amaral Júnior conhece bem o nosso mercado literário e apregoa as mercadorias mais próprias para o consumo: discursos, contos policiais, de aventura, de terror e de mistério. Julgo que vive sem ocupação por não haver falado antes nisso.

O meio cento de artigos redigidos naquelas noites de insônia encalhou certamente na redação, preterido pelas novelas de arrepiar cabelos. Indignado, Amadeu Amaral Júnior oferece de novo os seus préstimos ao editor, afirmando que também sabe compor histórias policiais, de aventura, de terror e de mistério, que arrancam lágrimas e se vendem regularmente.

A maneira como pede trabalho, pelo amor de Deus ou do diabo, revela que o escritor está impaciente e talvez não escrupulize em pôr a sua pena a serviço de qualquer dessas duas entidades, o que não admira, pois Amadeu é jornalista.

Muita gente se espanta com o procedimento desse amigo. Não sei por quê. Os fabricantes anunciam os seus produtos e os sujeitos desempregados costumam, desde que há jornais, dizer neles para que servem. Por que apenas o articulista, precisamente o indivíduo capaz de arrumar umas linhas com decência, deve calar-se e roer chifres?

Eu por mim acho que Amadeu Amaral Júnior andou muito bem. Todos os jornalistas necessitados deviam seguir o exemplo dele. O anúncio, pois não. E, em duros casos, a propaganda oral, numa esquina, aos gritos. Exatamente como quem vende pomada para calos.



(Linhas tortas)



(Ilustração: Peter Churcher - Australian, 1964 -)