sábado, 29 de junho de 2013

INÊS SUBTIL, de Valter Hugo Mãe








talvez seja o momento de te dizer
que sou da mais vil beleza, feito de
amar entre os homens apenas as coisas
mais efêmeras

talvez seja o momento de te dizer
que me cresceram os teus seios mais
jovens, numa indisfarçável necessidade de
que me pertençam entre as coisas
que te cedo

talvez seja o momento de te dizer
que o teu corpo mulher é um exagero do
meu deus, generoso mais do que nunca na
liberdade da minha fome

não estou certo de que seja o momento de
pedir mais ainda, quanto te roubo a alma e
aos poucos a entorno pelo caminho até ao
outrora vazio do meu coração

como não sei se será certo padecer de alguma
felicidade imprudentemente, naquele
miudinho perigoso de estar quase a
morrer de amor por ti

também eu me sinto capaz de desmaiar com
um orgasmo. mas só agora, aos trinta e
sete anos, só contigo


(Ilustração: Reuben Negron - the embrace V)

quarta-feira, 26 de junho de 2013

PEQUENO ACIDENTE DE PERCURSO, de Guy de Maupassant








O sol desaparecia aos poucos por detrás da grande serra senhoreada pelo Puy-de-Dôme, e a sombra da serra se estendia pelo profundo vale de Royat. Algumas pessoas passeavam no parque, ao redor do quiosque da música. Outras estavam sentadas, em grupos, apesar da friagem da tarde. Conversava-se com animação num desses grupos, posto que um grave assunto preocupava as senhoras de Sarcagnes, de Vaulacelles e de Bridoie. As férias se aproximavam e tratava-se de mandar buscar seus filhos, internados nos colégios dos jesuítas e dos dominicanos.Ora, essas damas não pensavam em fazer elas mesmas a viagem para trazer seus descendentes e não conheciam ninguém a quem pudessem encarregar de tão delicada missão. 

Era nos últimos de julho. Paris estava deserta. Elas procuravam em vão um nome que lhes oferecesse as requeridas garantias. Maiores eram suas preocupações devido a um escabroso caso de ultraje ao pudor público que ocorrera alguns dias antes num vagão de trem. E estas damas estavam persuadidas de que todas as rameiras da capital passavam a vida nos trens, entre Auvergne e a Gare de Lyon. Os tópicos de Gil Blas, aliás, no dizer de Mr. De Bridoie, assinalavam sua presença em Vichy, no Mont Doré e em Bouboule, de todas as horizontais conhecidas e desconhecidas. Para lá chegarem, deveriam elas viajar de trem e, sem dúvidas, de trem regressariam elas; deveriam mesmo voltar ininterruptamente para tornarem a vir todos os dias. Seria, portanto, um vaivém constante daquelas mulheres impuras todos os dias. As damas em questão se lamentavam de que os acessos às gares não fosse proibido às mulheres suspeitas.

Ora, Roger de Sarcagnes tinha quinze anos. Gontran de Vaulacelles, treze, e Rotand de Bridoie, onze anos. O que fazer? Elas não podiam, no entanto, expor seus queridos filhos ao contato com semelhantes criaturas. O que não ouviriam eles, o que não aprenderiam, se passassem um dia inteiro, ou uma noite, num compartimento em que contivesse também uma ou duas daquelas desavergonhadas com seus respectivos companheiros.

A situação parecia sem saída, quando aconteceu de por ali passar Madame Martinsec. Ela parou para cumprimentar as amigas, que lhe contaram suas preocupações.

- Mas é muito simples - exclamou ela - eu posso emprestar-lhes o padre. Posso muito bem dispensá-lo durante quarenta e oito horas. A educação de Rodolphe não irá se abalar por tão pouco. O padre irá buscar seus filhos.

Ficou então combinado assim, que o padre Lecuir, um jovem sacerdote muito instruído, preceptor de Rodolphe de Martinsec, iria a Paris na semana seguinte buscar os três garotos.

O padre partiu, pois, na sexta-feira; e encontrava-se na Gare de Lyon no domingo de manhã, para, com seus três garotos, embarcar no expresso das oito, o novo expresso em funcionamento há poucos dias apenas e que era, por sinal, uma aspiração de todos os banhistas de Auvergne.

Ele passeava pela gare seguido de seus meninos, e procurava um vagão com poucos passageiros, e passageiros de aspecto respeitável, pois ficara obcecado com todas as minuciosas recomendações que lhe fizeram as Sras. de Sarcagnes, de Vaulacelles e de Bridoie. Eis que ele avistou, em frente a um dos compartimentos, um velho senhor e uma velha dama de cabelos brancos que conversavam com uma outra dama instalada na cabine. O velho era oficial da Legião de Honra; e tinham ambos um aspecto perfeitamente distinto. "É a cabine que me serve", pensou o padre. Fez os três alunos subirem e foi atrás. A velha dama dizia:

- Cuide-se bem, minha filha.

A jovem respondeu:

- Claro, mamãe, não tenha medo.

- Se sentir alguma coisa, não se esqueça de chamar o médico.

- Claro, mamãe.

- Vamos indo. Adeus, minha filha.

- Adeus, mamãe.

Abraçaram-se e se beijaram; depois o empregado da gare fechou a portinhola e o trem se pôs em marcha.

Estavam sós. O padre, encantado, congratulava-se com a sua habilidade, iniciou conversa com os garotos que lhe foram confiados. No dia de sua partida, combinara com a Sra. de Martinsec que iria a dar lições particulares aos três garotos durante as férias, e ele queria sondar um pouco a inteligência e a personalidade de seus novos alunos.

Roger de Sarcagnes, o maior, era um desses meninos crescidos depressa, magros e pálidos, e cujas articulações não pareciam completamente formadas. Ele falava de forma lenta e era um tanto simplório.

Gontran de Vaulacelles, pelo contrário, permanecera pequeno, rechonchudo e era malicioso, dissimulado e gozador. Vivia sempre se divertindo à custa dos outros, tinha saídas de gente grande, respostas de duplo sentido, que inquietavam seus pais.

O mais jovem, Roland de Bridoie, não parecia revelar nenhuma aptidão para coisa alguma. Era um bom animalzinho que iria se parecer com seu pai. O padre prevenira os meninos de que eles ficariam sob as suas ordens durante os dois meses de verão; e fez-lhes um sermão bastante sentido sobre os seus deveres para com ele, padre, sobre a maneira como pretendia governá-los e o método que seguiria.

Era um padre de alma reta e simples, um pouco posudo e cheio de regras. Seu discurso foi interrompido por um profundo suspiro da sua vizinha. Voltou a cabeça para ela. A senhora conservava-se sentada no seu canto, com os olhos fixos, as faces algo pálidas. O padre voltou-se para seus discípulos.O trem corria a toda velocidade, atravessava planícies, bosques, passava túneis e pontes, sacudia com sua forte trepidação o rosário de viajantes presos nos vagões. 

Era a vez de Gontran de Vaulacelles interrogar o padre sobre Royat e os divertimentos da terra. Tinha rio? Podia-se pescar? Conseguiria ele um cavalo, como nas férias passadas? Etc.

De repente, a jovem soltou uma espécie de grito, um "ah!" de sofrimento, logo reprimido. Inquieto, o sacerdote lhe perguntou:

- A senhora está se sentindo bem, Madame?

Ela respondeu:

- Não, senhor padre, não é nada, apenas uma leve dor. Ultimamente tenho andado meio adoentada e o movimento do trem me cansa.

Na verdade, seu rosto se tornara lívido. Ele insistiu:

- Se eu puder fazer alguma coisa pela senhora...

- Não, em absoluto, senhor padre. Fico-lhe muito agradecida.

O padre continuou a conversar com os alunos, avaliando-os para seu ensino e orientação.

Passavam-se as horas. O trem parava de quando em quando, em seguida tornava a partir. A jovem senhora parecia dormir, não mais se movia, aconchegada no seu canto. 

Embora mais da metade do dia já se passara, ela ainda não comera coisa alguma. O padre pensava: "A pobre deve estar sofrendo".

Mais duas horas e estariam em Clermond-Ferrand. Foi então que a senhora viajante começou a gemer. Quase se deixara cair do banco e, firmando-se nas mãos, com os olhos esgazeados, feições crispadas, ela repetia: "Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!"

O padre se precipitou:

- Madame... Madame... Madame, o que é que a senhora tem?

Ela balbuciou:

- Eu... eu... acho que... que... vou dar à luz.

E, em seguida, começou a gritar de um modo horrível, lançando um longo clamor desvairado que parecia rasgar-lhe a garganta na passagem, um clamor agudo, lancinante, cuja entonação sinistra traduzia a angústia de sua alma e a tortura do seu corpo.

Transtornado, o pobre do padre, de pé diante dela, não sabia o que fazer, o que dizer, que iniciativa tomar, e murmurava: "Meu Deus, se eu soubesse... Meus Deus, se eu soubesse!" Estava vermelho até o branco dos olhos; e seus três garotos olhavam apatetados a mulher estendida e a gritar.

De repente, ela se contorceu, levantando os braços acima da cabeça, e então estremeceu com uma convulsão que percorreu seu corpo todo. O padre pensou que ela ia morrer, morrer bem ali à sua frente, privada de socorros e de cuidados por culpa dele. Conseguiu dizer com uma voz resoluta:

- Vou ajudá-la, Madame. Eu não sei... Mas eu a ajudarei como puder. Devo dar minha assistência a toda criatura que sofre. - E voltou-se para os três garotos e gritou: 

- Vocês aí, vão colocando a cabeça na janela; e se algum de vocês se voltar para olhar, vai ter de copiar mil versos de Virgílio.

Ele próprio baixou o vidro da janela, acomodou ali as três cabeças, estendeu sobre os pescoços deles as cortinas azuis e repetiu:

- Se fizerem um só movimento, vão ficar de castigo, vão ficar privados dos passeios durante todas as férias. Não se esqueçam que eu não perdoo nunca. E voltou para junto da jovem senhora, erguendo as mangas da batina.

Ela continuava a gemer; às vezes, gritava. O padre, com o rosto vermelho, dava-lhe assistência, exortando-a e reconfortando-a; e repetidamente levantava os olhos para os três garotos que arriscavam olhares furtivos, logo desviados, para o misterioso trabalho a que se dedicava seu novo preceptor.

- Sr. de Vaulacelles, vai me copiar vinte vezes o verbo "desobedecer"! - gritava ele. - Sr. de Bridoie, você vai ficar sem sobremesa durante um mês. 

Subitamente a senhora parou com sua queixa insistente e quase em seguida um grito estranho e frágil, que mais parecia um latido ou um miado, fez com que os colegiais se voltassem para dentro ao mesmo tempo, convencidos de que acabavam de ouvir um cãozinho recém-nascido.

O padre segurava nas mãos uma criaturinha nua. Contemplava-a com um olhar desorientado; parecia feliz e desolado; a ponto de rir e a ponto de chorar; parecia que estava louco, tantas coisas exprimia a sua cara com o rápido movimento dos olhos, dos lábios e das faces. E declarou, como se desse aos seus alunos uma grande notícia:

- É um menino. - E em seguida, ordenou: - Sr. De Sarcagnes, me passe a garrafa d'água que está ali no canto. Desarrolhe-a... Isso... muito bem... Põe um pouco na minha mão... ótimo, ótimo...

E aspergiu com aquela água a fronte nua do bebezinho, dizendo:

- Eu te batizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

O trem entrava na gare de Clermont. O rosto da Sra. De Bridoie apareceu na janela. O padre então, perdendo a cabeça, apresentou-lhe o frágil ser humano que acabara de colher, murmurando: "Tivemos um pequeno acidente de percurso."

Seu aspecto era o de ter recém apanhado aquela criança num esgoto; e, com os cabelos molhados de suor, o colarinho fora de lugar, a batina maculada, ele repetia:

- As crianças não viram nada, eu garanto. Os três olhavam pela janela, eu garanto. Eles nada viram.

E desceu do trem com quatro meninos em vez dos três que fora buscar, enquanto as senhoras de Bridoie, de Vaulacelles e de Sarcagnes trocavam olhares desvairados, sem encontrar uma palavra sequer para dizer.

À noite, as três famílias jantaram juntas para festejar a chegada dos colegiais. Mas não falavam; os pais, as mães e os próprios meninos pareciam preocupados. De repente, o mais jovem, Roland de Bridoie, perguntou:

- Mamãe, onde foi que o padre achou aquela criancinha?

A mãe não poderia ter sido mais peremptória:

- Vamos, come e nos deixa em paz com as tuas perguntas.

O garoto calou-se por alguns minutos, logo em seguida:

- Não tinha ninguém. Só aquela senhora que estava com dor de barriga. É que o padre é um mágico, como o Houdini, que faz sair um armário cheio de peixes de baixo de um tapete?

- Cale essa boca. Foi Nosso Senhor quem mandou o bebê.

- Mas onde é que Nosso Senhor tinha posto o nenenzinho? Eu não vi nada. Será que ele entrou pela portinhola?

A Sra de Bridoie, impaciente, replicou:

- Cale a boca. Acabou-se. Ele apareceu num pé de couve, pronto, como todas as criancinhas. Você sabe disso.

- Mas não havia nenhuma couve naquele vagão.

Daí então Gontram de Vaulacelles, que escutava tudo com um ar maroto, sorriu e, disse:

- Havia uma couve, sim. Mas só quem a viu foi o padre.




(Ilustração: Denis Nunez Rodriguez)




domingo, 23 de junho de 2013

ΠΕΡΙΜΈΝΟΝΤΑΣ ΤΟΥΣ ΒΑΡΒΆΡΟΥΣ / À ESPERA DOS BÁRBAROS, de Konstantinos Kaváfis






– Τι περιμένουμε στην αγορά συναθροισμένοι;


Είναι οι βάρβαροι να φθάσουν σήμερα.


– Γιατί μέσα στην Σύγκλητο μιά τέτοια απραξία;

Τι κάθοντ’ οι Συγκλητικοί και δεν νομοθετούνε;


Γιατί οι βάρβαροι θα φθάσουν σήμερα.

Τι νόμους πια θα κάμουν οι Συγκλητικοί;

Οι βάρβαροι σαν έλθουν θα νομοθετήσουν.


– Γιατί ο αυτοκράτωρ μας τόσο πρωί σηκώθη,

και κάθεται στης πόλεως την πιο μεγάλη πύλη

στον θρόνο επάνω, επίσημος, φορώντας την κορώνα;


Γιατί οι βάρβαροι θα φθάσουν σήμερα.

Κι ο αυτοκράτωρ περιμένει να δεχθεί

τον αρχηγό τους. Μάλιστα ετοίμασε

για να τον δώσει μια περγαμηνή. Εκεί

τον έγραψε τίτλους πολλούς κι ονόματα.


– Γιατί οι δυό μας ύπατοι κ’ οι πραίτορες εβγήκαν

σήμερα με τες κόκκινες, τες κεντημένες τόγες•

γιατί βραχιόλια φόρεσαν με τόσους αμεθύστους,

και δαχτυλίδια με λαμπρά γυαλιστερά σμαράγδια•

γιατί να πιάσουν σήμερα πολύτιμα μπαστούνια

μ’ ασήμια και μαλάματα έκτακτα σκαλισμένα;


Γιατί οι βάρβαροι θα φθάσουν σήμερα•

και τέτοια πράγματα θαμπόνουν τους βαρβάρους.


– Γιατί κ’ οι άξιοι ρήτορες δεν έρχονται σαν πάντα

να βγάλουνε τους λόγους τους, να πούνε τα δικά τους;


Γιατί οι βάρβαροι θα φθάσουν σήμερα•

κι αυτοί βαριούντ’ ευφράδειες και δημηγορίες.


– Γιατί ν’ αρχίσει μονομιάς αυτή η ανησυχία

κ’ η σύγχυσις. (Τα πρόσωπα τι σοβαρά που έγιναν).

Γιατί αδειάζουν γρήγορα οι δρόμοι κ’ οι πλατέες,

κι όλοι γυρνούν στα σπίτια τους πολύ συλλογισμένοι;


Γιατί ενύχτωσε κ’ οι βάρβαροι δεν ήλθαν.

Και μερικοί έφθασαν απ’ τα σύνορα,

και είπανε πως βάρβαροι πια δεν υπάρχουν.


Και τώρα τι θα γένουμε χωρίς βαρβάρους.


Οι άνθρωποι αυτοί ήσαν μιά κάποια λύσις.


Tradução de José Paulo Paes:



O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.


Por que tanta apatia no senado?

Os senadores não legislam mais?


É que os bárbaros chegam hoje.

Que leis há de fazer os senadores?

Os bárbaros que chegam as farão.



Por que o imperador se ergueu tão cedo

e de coroa solene se assentou

em seu trono, à porta magna da cidade?


É que os bárbaros chegam hoje.

O nosso imperador conta saudar

o chefe deles. Tem pronto para dar-lhes

um pergaminho no qual estão escritos

muitos nomes e títulos.



Por que hoje os dois cônsules e os pretores

usam togas de púrpura, bordadas,

e pulseiras com grandes ametistas

e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?

Por que hoje empunham bastões tão preciosos,

de ouro e prata finamente cravejados?


É que os bárbaros chegam hoje,

tais coisas os deslumbram.




Por que não vêm os dignos oradores

derramar o seu verbo como sempre?


É que os bárbaros chegam hoje

e aborrecem arengas, eloquências.



Por que subitamente esta inquietude?

(Que seriedade nas fisionomias!)

Por que tão rápido as ruas se esvaziam

e todos voltam para casa preocupados?



Porque é já noite, os bárbaros não vêm

e gente recém-chegada das fronteiras

diz que não há mais bárbaros.



Sem bárbaros o que será de nós?

Ah! eles eram uma solução.




Tradução de Haroldo de Campos:



– Que esperamos reunidos na ágora?

É que hoje os bárbaros chegam.



– Por que tanta abulia no Senado?

Por que assentam os Senadores? Por que não ditam normas?



Porque os bárbaros chegam hoje.

Que normas vão editar os Senadores?

Quando chegarem, os bárbaros ditarão as normas.



– Por que o Autocrátor levantou-se tão cedo

e está sentado frente à Porta Nobre da cidade

posto em seu trono, portanto insígnias e coroa?



Porque os bárbaros chegam hoje.

E o Autocrátor espera receber

o seu chefe. Mais do que isto, predispôs

para ele o dom de um pergaminho. Ali

fez inscrever profusos títulos e nomes sonoros.



– Por que nossos dois cônsules e os pretores saíram

esta manhã com togas rubras, com finos bordados de agulha?

Por que essas braçadeiras que portam, pesadas de ametistas,

e os anéis dactílicos lampejando reflexos de esmeralda?

Por que ostentam hoje os cetros preciosos,

esplêndido lavor de cinzel, amálgama de ouro e prata?



Porque os bárbaros chegam hoje,

e toda essa parafernália deslumbra os bárbaros.



– Por que nossos bravos tribunos não acodem

como sempre, a blasonar seu verbo, a perorar seus temas?



Porque os bárbaros chegam hoje,

e eles desprezam a oratória e a logorreia.



– Por que de repente essa angústia,

esse atropelo? (Todos os rostos de súbito sérios!)

Por que rápidas se esvaziam ruas e praças

e os antes reunidos retornam atônitos às casas?



Porque a noite chegou e os bárbaros não vieram.

E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça

murmuram que não há mais bárbaros.



E nós, como vamos passar sem os bárbaros?

Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução.




(Poemas)




(Ilustração: De Chirico - Los diósculos)






quinta-feira, 20 de junho de 2013

MASETTO DE LAMPORECCHIO FINGE-SE DE MUDO E TORNA-SE JARDINEIRO EM UM CONVENTO DE FREIRAS, AS QUAIS TERMINAM, TODAS, POR SE DEITAR COM ELE, de Giovanni Boccaccio









Relato de Filóstrato:

Belas senhoras, muitos são aqueles, homens e mulheres, que tão mal informados quanto tolos, acreditam piamente que é bastante cobrir com um véu branco a cabeça de uma jovem, e sobre ele colocar a touca negra, para que ela deixe de ser fêmea e, assim, não sinta mais os desejos de seu sexo, como se o fato de se fazer freira transformasse a carne em pedra; e se acaso escutam alguma coisa que se oponha a esta sua crença reagem conturbados, como se um dano enorme e criminoso houvesse sido perpetrado contra a própria natureza; sem pensar, nem querendo olhar o próprio exemplo, eles que, com plena liberdade de fazer como quiserem, não estão nunca saciados, nem atentam tampouco para a força tentadora que exercem o ócio e a solidão. 

E da mesma forma há ainda outros, cegos, que pensam que a pá, a enxada, a comida rústica e a vida dura que levam, aqueles que trabalham a terra, lhes roubem da carne os desejos e os deixem embrutecidos e estúpidos. Mas como se enganam, uns e outros, os que assim pensam - eu, com prazer atendendo ao comando da rainha e fiel ao tema que por ela foi proposto, aqui pretendo prová-lo com o meu pequeno conto.

Aqui mesmo nestes nossos campos, há pouco tempo havia, e ainda há, um convento de freiras famoso por sua santidade (o qual não nomearei para evitar que em qualquer forma se diminua tal reputação); eram oito as freiras nessa época, mais uma Abadessa, e todas jovens. Seu belo jardim era cuidado por um simplório e bom homem que, pouco satisfeito do salário que lhe pagavam, decidiu abandonar o seu trabalho; feita as contas com o gestor do convento, partiu de volta a Lamporecchio de onde era originário. Entre aqueles que com boas-vindas o receberam de volta a sua terra, havia um jovem forte e robusto, chamado Masetto, que, mesmo sendo um camponês, era um homem de bela figura e que lhe perguntou por onde estivera tanto tempo. Nuto, que assim se chamava o jardineiro, contou que trabalhara num convento. E Masetto então perguntou que tipo de trabalho ele lá fazia. Ao que Nuto respondeu:

- Eu cuidava de um grande e belo jardim e da horta, ia ao bosque buscar lenha, carregava água e ainda fazia pequenas outras coisas; mas a paga que me davam era tão pouca que mal dava para manter-me calçado. Além do que, as freiras, todas jovens, pareciam como endiabradas, de forma que nunca o meu trabalho ficava ao gosto delas. Mais ainda, algumas vezes, enquanto eu trabalhava no jardim, vinha uma e dizia: "Ponha isto aqui"; e outra dizia: "Não, ali"; e uma outra, tirando a enxada da minha mão: "Não é assim que se faz"; e me cansavam tanto que eu terminava largando tudo e saindo do jardim; então, seja por uma coisa ou por outra, resolvi pedir as contas e vir-me embora. O gestor até que me pediu, antes que eu partisse, que se encontrasse alguém capaz que o mandasse a ele, mas, embora lhe tenha prometido, deixe que Deus cure seus rins, eu não vou me ocupar com isto.

Ouvindo as palavras de Nuto, Masetto foi tomado pelo desejo de estar com aquelas freiras, que havia bem visualizado, e de tudo aquilo que Nuto havia dito, ele intuiu como seus desejos poderiam ser satisfeitos; e sabendo que seus planos se arruinariam caso Nuto percebesse suas intenções, ele disfarçou:

- Ah! Você fez bem em despedir-se! Como pode o homem viver cercado de mulheres? É melhor viver com mil demonios; seis vezes em sete elas mesmas não sabem o que querem.

Depois de terminada a conversa, Masetto começou a pensar em que modo devia proceder para ver seus desejos satisfeitos. Ele se sabia bastante competente para o trabalho que Nuto descrevera e não tinha receios quanto a isto, mas temia não ser aceito devido a sua juventude e sua bela figura. Então, depois de dar tratos à imaginação, ele pensou: "O convento é longe daqui e lá ninguém me conhece; se eu me fizer de surdo-mudo é certo que me aceitarão."

Com seu plano em mente e uma trouxa nas costas ele partiu sem dizer nada a ninguém e, com a aparência de um mendicante, foi para o convento; lá chegando entrou pelo portão e, logo no pátio, encontrou o gestor, a quem, por gestos, como fazem os mudos, pediu um prato de comida pelo amor de Deus e mostrou também com mímicas que se fosse necessário poderia rachar a lenha. O gestor, satisfeito com a ideia, lhe deu de comer e depois lhe mostrou certos troncos de lenha que Nuto não tinha sido capaz de partir, os quais Masetto, que era muito forte, em pouco tempo reduziu a pedaços. Mais tarde, tendo de ir ao bosque, o gestor consigo o levou e, lá, o fez cortar mais lenha e depois, com gestos, mostrou-lhe o asno e o fez entender que ele devia carregar a lenha e voltar ao convento, o que ele fez muito bem feito. Assim, realizando pequenos trabalhos que eram necessários, o gestor o manteve alguns dias, até que a Abadessa o viu e perguntou quem era ele. Disse o gestor:

- Senhora, este é um pobre surdo-mudo que, um destes dias, bateu à nossa porta esmolando o que comer, o que lhe dei, e o mantive aqui fazendo várias coisas que precisavam se fazer. Se soubesse trabalhar no jardim e quisesse aqui permanecer, creio que nos prestaria bom serviço, pois precisamos de alguém e ele é forte e capaz para qualquer serviço, além do que, sendo surdo-mudo, não daria a minha senhora nenhuma preocupação quanto a importunar as suas jovens freiras - ao que a Abadessa respondeu:

- Por Deus que isso é verdade! Descubra se ele sabe cuidar da horta e do jardim e se quer ficar conosco, em tal caso dê a ele uns sapatos e uma capa velha, e trate de agradá-lo, cuide bem do seu estômago - o que o gestor prometeu fazer. 

Masetto, não muito longe, enquanto isso, fingindo varrer o pátio, ouvia tudo que diziam a Abadessa e o gestor e pensava com ele mesmo: "Se me deixam entrar nesse convento eu mostro a eles como se cuida de uma horta e de um jardim." Vendo o gestor que Masetto trabalhava muito bem, com sinais lhe perguntou se queria ficar empregado, e este lhe respondeu, também por sinais, que desejava aquilo que quisesse o outro; e estando os dois, assim, de acordo, o gestor, mostrando o que devia ser feito na horta da cozinha, determinou que ele trabalhasse ali e, tendo outros assuntos que tratar, o deixou. Masetto trabalhava agora, dia após dia, junto às freiras; as jovens começaram com zombarias a rir dele (como a gente costuma fazer com os surdos-mudos) e, convencidas de que ele não ouvia, usavam palavras das mais sujas para dizer as coisas mais explícitas; a Abadessa da coisa não cuidava, talvez pensando que, como lhe faltasse a fala, outra coisa também lhe faltaria.

Aconteceu então que um dia, Masetto, depois de muito trabalhar, estava descansando, e duas freiras, das mais jovens, passeando pelo jardim, o viram e foram lá onde estava para olhá-lo, enquanto ele fingia que dormia. Então a que era mais ousada disse à outra:

- Se você fosse capaz de guardar segredo eu contaria uma idéia que me ocorre e que talvez lhe sirva como a mim - e a outra disse:

- Pode contar sem receio que jamais repetirei nada a ninguém - então a mais ousada começou:

- Não sei se você já refletiu no quanto vivemos isoladas e no fato de nunca vermos homens, a não ser o gestor que é um velho e este mudo; muitas vezes tenho ouvido, de senhoras que visitam o convento, que todos os prazeres desse mundo não são nada comparados com aquele que a mulher tem com o homem. Muitas vezes assim tenho pensado, e, já que com outro homem é impossível, por que não prová-lo com o mudo? E o melhor de tudo é que, mesmo que quisesse, ele nunca poderia nos delatar; veja, ele é só um tolo que cresceu com a mente de um menino. Gostaria de sentir o seu juizo sobre todas as coisas que lhe disse.

- Oh, você - disse a outra - o que é que vai dizendo? Esqueceu que as nossas virgindades nós as prometemos a Deus?

- Ah! respondeu a outra - Quantos votos são feitos, todo dia, para jamais serem cumpridos por ninguém. Se Ele quer tanto assim à virgindade que encontre outra ou outras que a guardem.

- E se acaso nós engravidássemos?

- Você pensa nos problemas antes mesmo que eles apareçam; fosse o caso de tal acontecer, então a solução se buscará, há mil modos de cuidar da coisa desde que se aja com discrição.

Assim reassegurada, a outra tinha agora mais vontade de saber do que a primeira que gosto tinha o homem afinal; e foi assim dizendo:

- E, bem, como faremos? - ao que a amiga respondeu:

- Você vê que ele dorme a nona hora e, como ele, as irmãs estão dormindo, basta olhar o jardim para ver que não há ninguém, exceto nós; assim, tudo aquilo que temos a fazer é pegá-lo pela mão e levá-lo à cabana, onde ele se briga quando chove; e enquanto uma esteja dentro, que a outra, fora, monte guarda. Ele é só um tolo que fará tudo aquilo que quisermos.

Masetto, fingindo que dormia, ouvia todo o argumento e apenas esperava que uma delas o levasse pela mão. Depois de olhar por toda parte, certas de que ninguém as via, aquela que primeiro tivera a ideia aproximou-se de Masetto e, sacudindo seu corpo para acordá-lo, puxou-o pela mão; Masetto foi logo levantando e, com um sorriso idiota, a seguiu; mas depois, na cabana, foi desnecessário que ela lhe mostrasse o que queria para que ele cumprisse seu papel. Com leal companheirismo, tendo já satisfeito seu desejo, a jovem freira deixou que sua irmã provasse também do mesmo pão; e, antes de partir, por várias vezes, se revezaram no provar com que habilidade sabia o mudo cavalgar. Mais tarde, discutindo o sucedido, as duas concordavam que o prazer era ainda bem mais doce do que tudo que haviam ouvido comentar. E sempre que encontravam uma chance, um bom momento, com o mudo voltavam a praticar.

Veio o dia que uma irmã, de sua cela, avistasse, olhando da janela, o que as duas faziam e, chamando outras duas, mostrou-lhes o que via; o primeiro que pensaram foi em tudo contar à Abadessa, mas depois de conversar, tendo bem ponderado a questão, decidiram que melhor era entrar em um acordo com aquelas no jardim, e assim participar, dividindo de Masetto os favores e tenções, em justa sociedade. E as outras três que faltavam, por outros tantos acidentes, foram também, finalmente, uma a uma, se juntar à companhia. E por fim a Abadessa, que nada ainda sabia de tudo o que acontecia, vindo um dia, solitária, a andar pelo jardim, ali encontrou deitado Masetto, cansado do seu trabalho noturno, numa tarde muito quente dormindo à sombra da amendoeira, com as roupas desarranjadas, levantadas pelo vento, que o deixavam com o corpo descoberto. O efeito de tal visão e o fato de estar sozinha despertaram na Abadessa aqueles mesmos desejos que há tempos se entregavam todas as suas freirinhas, e despertando Masetto, sem muitas explicações, o levou diretamente ao seu quarto de dormir, onde o teve para ela, provocando o desconsolo e a revolta de todas as suas freiras que ficaram com a horta no mais completo abandono; para si o guardou, provando por muitas vezes delícias que, antes de haver provado, ela sempre condenara.

Por fim deixou que voltasse ao trabalho, mas tantas vezes o chamava e, pior, sem saber da divisão e dos arranjos que as outras haviam feito, o queria só para si; Masetto se via, assim, numa bela situação, sem ter forças nem poder para tantas satisfazer, e começou a pensar que o fato de ser mudo, que tanto o ajudara no início, ja agora começava a atrapalhar e foi assim que, estando uma noite com a Abadessa, quebrou a mudez dizendo:

- Senhora, eu tenho ouvido que um galo só é capaz de contentar dez galinhas, mas que dez homens se cansam e com muito sacrifício satisfazem a apenas uma mulher; e eu, pobre desgraçado, servindo a nove mulheres, acho que nesse mundo nada pode me salvar, peço que sendo assim minha senhora me deixe ir, com Deus e sua benção, de volta para o lugar de onde vim, ou então se encontre a forma que me permita com todos os meus encargos a eles sobreviver.

A Abadessa, assustada, ouvindo falar Masetto, disse:

- O que é isto? Mudo eu te acreditava!

- Senhora - disse Masetto -, eu era, não de nascença, foi uma doença que me fez ficar assim até esta mesma noite, quando voltei a falar, louvado seja o Senhor, que me devolveu a voz.

A Abadessa, acreditando na explicação, perguntou-lhe o que queria dizer com 
a história de a nove mulheres ter que satisfazer. 

Masetto contou-lhe tudo. A Abadessa, ouvindo seu relato, pensou que nenhuma das freiras tivera muito mais juizo que ela mesma. E entendeu que o melhor a fazer era encontrar um modo de discretamente solucionar tudo de comum acordo com suas irmãs, ou do contrário se arriscaria o bom nome da casa com o que Masetto poderia contar delas, sem falar em tudo mais que se perderia, caso ele partisse. Assim se reuniram as freiras em conselho e, como havia pouco tempo morrera o gestor, concordaram todas que Masetto o substituísse e decidiram também repartir seus serviços de modo a fazê-los suportáveis; e, ainda, fazer crer à gente do lugar que suas orações, mais a intercessão do santo patrono do convento, fossem a causa do milagre de haver Deus devolvido a fala ao mudo. E assim viveram vários anos e muitos fradinhos nasceram desse arranjo, mas feito tudo tão discretamente que, até quando morreu a Abadessa, do caso todo nada transpirou; mas, então, já rico e envelhecido, Masetto quis voltar a Lamporecchio, o que, sem muitos problemas, foi a ele concedido. Assim, tendo sabiamente vivido a juventude, Masetto, que dali partira com uma trouxa, voltou à aldeia velho, rico e patriarca de uma prole que nunca lhe deu despesas para criar e alimentar. E dizia, aos que lhe perguntavam da fortuna que tivera, que assim tratava o Cristo a quem, com chifres, Lhe enfeitara a testa.




(Tradução de Octávio Marcondes)



(Ilustração: Clovis Trouille - immenculcae conception)













sexta-feira, 14 de junho de 2013

SÚPLICA, de Miguel Torga







Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.




(Ilustração: Adrian Gottlieb - second thougths)





terça-feira, 11 de junho de 2013

O PAPAGAIO, de J. Simões Lopes Neto








O reverendo Padre Bento de S. Bento - que o senhor talvez conhecesse, não? -
era um Santo homem paciente - paciente! paciente! - como naquela época outro não houve.

Nos circos de burlantins muita cousa curiosa tenho apreciado: cachorros sábios, cabras que fazem provas, cavalos dançarinos e burros que a dente pegam o palhaço pelo... atrás das pantalonas; mas a paciência para esse ensino não pode comparar-se, não se pode, com a do reverendíssimo.

O Padre Bento, farto de aturar sacristãos e não querendo estragar a sua paciência, que estava-lhe na massa do corpo, resolveu dizer as suas missas... sozinho.

Preparava as galhetas, o missal etc.; depois pachorrentamente paramentava-se e pachorrentamente esperava a hora de oficiar; chegada, encaminhava-se para o altar, e começava e concluía, parte por parte, tudo muito em ordem.

Mas o filé, o bem-bom, era quando entrava a ladainha: ele cantava o nome do soneto e uma vozinha esquisita, porém muito clara, respondia logo:

- O-o-a por nob-s!

E os fieis, em seguida, pela pequena nave afora, acudiam ao estribilho:

- Ora pro nobis!

Dessas ladainhas assisti eu a muitas, na capelinha de S. Romualdo, que era próxima a nossa casa, na Vila de...

Agora sabem quem cantava as ladainhas do Padre Bento?

Era o Lorota, um papagaio amarelo, criado na gaiola e muito bem falante... com ele diverti-me muitas vezes:

- Lorota, da cá o pé!

E ele, ensinado pelo padre, respondia, amável!

Coitado!... O padre morreu e o Lorota, não tendo mais a quem dar contas, fugiu. Passaram-se os anos.

Uma vez, estava eu na Serra, numa espera de onça, quando senti - confesso, não medo, mas um arrepio de... frio - quando ouvi, nas profundezas do mato virgem, uma ladainha religiosa!...

E pausada, afinada, bem puxada em suma! Seria um sonho?... Estaria eu errado na tocada das onças, e, em vez de estar na floresta cheia de bichos ferozes, estava na vizinhança de algum convento, de alguma capela, de alguma romaria?...

E a ladainha, compassada e cheia, vinha se aproximando:

- Bento S. Bento!

- Ora pro nobis!

- Santo Atanásio!

- Ora pro nobis!

- S. Romualdo!

- Ora pro nobis!

Eu mergulhava os olhos por entre os troncos, os cipós e as japecangas a ver se bispava uma cor de opa, uma luz de tocha, uma figura de gente; nada! Nisto, a ladainha pousou nas arvores, por cima de mim. Pousou, sim, é o termo próprio, porque quem cantava era um bando de papagaios e quem puxava a ladainha era o papagaio do Padre Bento, era o Lorota!

A paciência do bicho!... Ensinar, direitinho, aos outros, a cantoria toda!...

Pasmo daquele espetáculo, e duvidando, quis tirar uma prova real, e perguntei para cima:

- Lorota? Dá cá o pé!...

Pois o papagaio conheceu a minha voz, conheceu, porque logo retrucou-me com a antiga resposta que ele sempre dava:

- Romualdo é bonito! Bonito!...

E como para obsequiar-me fez um - crr! - como aviso de comando e recomeçou a ladainha:

- Bento S. Bento!

- Ora pro nobis!

- Santo...

Nisto tremeu o mato com um berro pavoroso... o Lorota e seu bando bateu asas... e eu olhei em frente: a sete passos de distância estava agachada, de boca aberta, pronta para o salto, uma onça dourada, uma onça ruiva; uma onça de braça e meia de comprido!...

E na aragem do mato ainda soou um vozerio distante.

- Or... a pro no... bis!

- S... Ro... mual... do!

- Ora... pro... nobis!...





(Ilustração: Orlando de Sant'anna - pássaro amarelo)









sábado, 8 de junho de 2013

QUANDO EU MORRER, de Maria do Rosário Pedreira






Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudade de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.




(Ilustração: Carolus Duran - Danae)



quarta-feira, 5 de junho de 2013

A FAMOSA RÃ SALTADORA DO CONDADO DE CALAVERAS, de Mark Twain





Atendendo ao apelo de um amigo meu, que me havia escrito do Leste, fui procurar o velho, afável e tagarela Simon Wheeler, para me informar sobre um tal Leônidas W. Smiley, um amigo deste meu amigo, conforme ele me pedira. Aqui vai o resultado. Tenho a leve desconfiança de que Leônidas W. Smiley não existe; que meu amigo jamais conheceu tal pessoa; que ele apenas imaginou que, se eu perguntasse ao velho Wheeler por alguém com este nome, ele se lembraria de um famigerado Jim Smiley, e então se daria ao enorme trabalho de me chatear mortalmente com uma de suas exasperantes reminiscências, tão longa e entediante quanto absolutamente inútil para mim. Se esta era sua intenção, funcionou.

Fui encontrar Simon Wheeler cochilando confortavelmente junto ao aquecedor do bar da velha taverna caindo em pedaços, no decadente acampamento de mineiros de Angel; notei que ele era gordo e careca, com uma expressão simpática de gentileza e simplicidade estampada no semblante tranquilo. Ele acordou e me deu bom dia. Eu disse a ele que um amigo meu me pedira que indagasse a respeito de um querido companheiro seu de infância chamado Leônidas W. Smiley - Reverendo Leônidas W. Smiley, um jovem ministro do Evangelho, que, segundo ele ouvira falar, teria tempos atrás residido no acampamento mineiro de Angel. Complementei dizendo que, se ele, Wheeler, pudesse me fornecer alguma informação a respeito do tal Reverendo Leônidas W. Smiley, eu lhe ficaria muito grato.

Simon Wheeler me empurrou para um canto e ali me bloqueou com sua cadeira, e então sentou-se e desenrolou a monótona narrativa que segue este parágrafo. Nem por uma vez sorriu ou franziu o cenho; nem uma só vez mudou o tom de voz e, com a fluência gentil com a qual afinou sua primeira frase, prosseguiu até o final; nunca deixou vazar nenhuma suspeita de entusiasmo; mas, através de toda a interminável narrativa, passou um fio de impressionante franqueza e sinceridade, que demonstrava claramente que longe de imaginar a possibilidade de haver qualquer coisa de cômico ou ridículo em sua história, ele a via e encarava como um assunto realmente importante, e admirava seus dois heróis como homens cuja "finesse" transcendia o gênio. 

Deixei que ele discorresse a seu modo sem interromper em momento algum.

"Reverendo Leônidas W. Smiley, Reverendo Le... - bem, tinha um sujeito por aqui que atendia pelo nome de Jim Smiley, foi no inverno de 49, ou seria a primavera de 50, não me recordo direito, se bem que o que me faz pensar que era um outro é o fato de eu lembrar que aquele grande canal ainda não havia sido terminado quando ele veio, pela primeira vez, para o acampamento, mas de qualquer forma era um homem dos mais curiosos que se possa encontrar, sempre pronto a apostar em qualquer coisa que aparecesse, se conseguisse qualquer um para apostar contra; e se não conseguisse, bem, então ele mudava de lado. Qualquer coisa que estivesse bem para o outro estava bem para ele e, desde que conseguisse uma aposta, ficava satisfeito. 

Ainda assim ele tinha sorte, muita sorte; quase sempre ganhava. E estava sempre pronto e à espreita da oportunidade; não havia coisa nenhuma que para ele não fosse um bom motivo para uma aposta. e de qualquer lado que você quisesse; como eu ia lhe contando. Se houvesse uma corrida de cavalos, no final, você encontrava ele cheio das notas ou você encontrava ele limpo; se houvesse uma briga de cachorros, ele apostava; uma briga de gatos, ele apostava; uma briga de galinhas, ele apostava; cara, se houvesse dois passarinhos pousados numa cerca, ele apostava com você qual dos dois ia voar primeiro; se havia uma reunião evangélica no acampamento, lá ia ele, regularmente, para apostar no Pastor Walker, que conceituava como o melhor pregador da área, o que ele era de fato, além de ser um santo homem. Se visse uma mandorová indo para algum lugar ele apostaria com você quanto tempo ela levaria para chegar lá - onde quer que isto fosse -, e, se você aceitasse a aposta, ele era capaz de seguir a mandorová até o México, ou aonde fosse, só desistindo depois de descobrir onde o bichinho estava indo e quanto tempo levava na viagem. 

Muitos rapazes aqui conheceram o tal Smiley e podem lhe falar sobre ele. Cara, não fazia diferença para ele - apostava em qualquer coisa, o filho da mãe. Uma vez, a mulher do Pastor Walker ficou bastante doente, por muito tempo, e parecia que não ia se salvar; uma manhã, encontrando o pastor, Smiley perguntou como ela ia indo, e o Pastor respondeu que ela estava bem melhor - graças ao Senhor, em sua infinita misericórdia - e melhorando tanto que, com a benção da divina providência, ela ainda ia ficar boa; e Smiley, sem pensar disse: Bem, eu arrisco dois dólares e cinquenta como ela não fica.

"Este tal Smiley tinha uma égua - que os rapazes apelidaram de 15 minutos cravados, mas era só uma brincadeira, você sabe, porque é claro que ela era mais rápida do que isso - e ele costumava ganhar dinheiro com aquela égua; de toda forma ela era bem lenta e sempre tinha asma, ou diarréia, ou tuberculose, ou alguma coisa do gênero. As pessoas costumavam dar 200 ou 300 metros de vantagem, e passar por ela no caminho; mas sempre no final da corrida a égua ficava toda excitada e, como que desesperada, lá vinha ela aos saltos e aos coices, às vezes no ar, às vezes encostando na cerca e levantando mais poeira ainda e fazendo um enorme barulho com sua tosse e seus espirros para chegar sempre na linha com exatamente um nariz de vantagem, o mínimo necessário para ganhar.

"Ele tinha um pequeno buldogue, que olhando assim você achava que não valia um centavo; parecia um cachorrinho ordinário, bom só para roubar comida quando alguém lhe desse uma chance. Mas era só o dinheiro aparecer; e aí, de repente, ele mordia o outro cachorro na perna traseira e se agarrava ali - não mastigava, se você me entende, só ficava agarrado ali até o outro jogar a toalha, mesmo que demorasse um ano. Smiley sempre ganhou com aquele cachorrinho, até que encontraram um cachorro que não tinha as patas traseiras porque tinham sido amputadas por uma serra circular, e quando a coisa já estava adiantada e o dinheiro casado, foi aí que viu onde é que estava metido, e o outro cachorro tinha a ele na casa do sem jeito, modo de dizer, e então ele pareceu surpreso, e olhou como que desencorajado e nem tentou mais ganhar a luta, e daí ele apanhou muito. Ele olhou para o Smiley, como que dizendo que tinha o coração partido e era culpa de Smiley por ter colocado o animal para brigar com um cachorro que não tinha as patas traseiras, aliás bem onde ele estava acostumado a morder, o que era sua principal arma e da qual ele dependia, então ele perdeu o pé, deitou e morreu. Era um bom cachorro, Andrew Jackson era seu nome, e teria ficado famoso se tivesse vivido mais, pois tinha o principal, ele tinha gênio - eu sei, embora o cão não tivesse como falar disto, que o cachorro não teria, nas circunstâncias, como lutar as lutas que lutou e não tivesse talento. Sempre me deixa triste quando eu penso na sua última luta e em como ela terminou.

"Bem, o tal Smiley tinha uns cãezinhos terriê para caçar ratos, e galos de briga, e gatos selvagens, e todo tipo de coisas até a exaustão, e você não podia inventar coisa nenhuma que ele não tivesse outra igual para competir numa aposta. Ele arranjou uma rã um dia, e a levou para casa, e disse que ele iria treiná-la; e então não fez outra coisa, por três meses, a não ser sentar no seu quintal e ensinar aquela rã a saltar. E você pode apostar que ele ensinou. Ele só dava um pequeno toque no traseiro dela, e imediatamente você via aquela rã rodando no ar como uma panqueca - você a via dando um salto mortal ou dois, dependendo do impulso, e cair no chão em cima das quatro patas, como um gato. Ele a treinou também para pegar moscas, e ele fez com que ela praticasse com tanta constância, que ela pegava moscas, sem falhar uma, a qualquer distância que seus olhos alcançassem. Smiley dizia que tudo que uma rã necessitava era uma educação, e ela seria capaz de qualquer coisa - e eu acredito que ele tinha razão. Cara, eu vi ele colocar Daniel Webster aqui no chão - Daniel Webster era o nome da rã - e mostrar, Moscas, Daniel, moscas!, e antes que você pudesse piscar a rã tinha pego uma mosca lá no alto do balcão e voltado para o chão no mesmo lugar onde estava antes como uma pedra, e ficava ali coçando o lado da cabeça com a pata traseira com uma indiferença de quem não tem idéia de ter feito mais do que qualquer outra rã faria no seu lugar. Você não encontraria uma rã mais modesta e despretensiosa do que aquela, apesar de todo seu talento. E no que se refere a simplesmente saltar num terreno plano, ela podia saltar mais longe, num único pulo, que qualquer animal da sua espécie que você já tenha visto. Saltar em distância era seu grande trunfo, você entende, e neste caso, Smiley era capaz de apostar todo dinheiro que tivesse, até seu último dólar. Smiley tinha um enorme orgulho de sua rã, e tinha razão para isto, porque pessoas que viajaram e estiveram em toda parte, todas concordavam, a rã podia vencer qualquer outra que eles tivessem visto.

"Bem, Smiley guardava o animal numa pequena gaiola, que às vezes levava com ele para a cidade para apostar. Um dia, um tipo - um estranho no acampamento - cruzou com ele, levando sua gaiolinha, e perguntou. O que será que você leva aí nesta gaiola? 

"E Smiley respondeu, com aparente indiferença, Poderia ser um periquito ou quem sabe um canário, mas não é - é apenas uma rã. 

"O estranho pegou a gaiola, olhou com atenção, virou-a de um lado e de outro, e disse: É, parece que é. Para que é que ela serve?

"Bem, Smiley disse, devagar e descuidadamente, ela é muito boa para uma coisa: ela salta mais alto e mais longe que qualquer rã no condado de Calaveras.

"O estranho pegou a gaiola de novo, examinou a rã com cuidado mais uma vez e devolveu a gaiola para Smiley, dizendo de uma forma deliberadamente incrédula, Bem, ele disse, eu não vejo nada nessa rã que a faça melhor que qualquer outra rã."Talvez você não veja, diz Smiley. Talvez você entenda de rãs, talvez você não entenda; talvez você seja um especialista, e talvez você seja só um amador. De qualquer forma, eu tenho minha opinião, e estou disposto a arriscar 40 dólares que ela é capaz de saltar mais alto e mais longe que qualquer outra rã no condado de Calaveras.

"O estranho pensou um pouco e então disse de uma forma quase triste, Bem, eu sou só um estranho aqui, e eu não tenho uma rã; se eu tivesse uma eu apostava com você. Aí, Smiley disse, Tudo bem - tudo bem -, você segura aqui minha gaiola um minuto e eu vou arranjar uma rã para você. Então o estranho pegou a gaiola, casou seus dólares contra os 40 de Smiley e se sentou para esperar.

"Então ele se sentou ali um bom tempo pensando e pensando com ele mesmo, e então tirou a rã da gaiola e apertou ela com a boca aberta, e com uma colher de chá começou a encher a rã com chumbinhos de caça - ele a encheu até quase a garganta - e colocou a rã no chão. Smiley foi até o brejo e procurou na lama um bom tempo até que finalmente ele conseguiu uma rã, e a levou e deu para o stranho, dizendo: Agora, se você está pronto, coloque-a junto do Daniel, com as patas na mesma linha das patas do Daniel, e eu dou o sinal. E então ele disse, Um, dois, três, e vai! E ele e o outro tocaram as rãs por trás, e a rã nova saltou com vontade, mas Daniel apenas levantou os ombros - assim - como um francês, e não teve jeito - ele não conseguia se mover; estava plantado como uma igreja, mais impossibilitado de movimento do que se estivesse ancorado. Smiley ficou bastante surpreso, e aborrecido também, mas ele não tinha idéia do que estava acontecendo, é claro.

"O estranho pegou o dinheiro e começou a ir embora; mas quando ele estava na porta sacudiu o polegar por cima do ombro, apontando para Daniel, e disse outra vez da mesma forma deliberada, Bem, ele disse, eu não vejo nada nessa rã que a faça melhor que qualquer outra rã.

"Smiley ficou coçando a cabeça e olhando para Daniel no chão por muito tempo, e finalmente disse: Eu me pergunto o que em nome da pátria fez essa rã desistir - o que será que deu nela -; de alguma forma, ele tem um aspecto bastante estranho, como um saco de batatas. E ele levantou Daniel pela pele do pescoço, balançou e disse: Cara, ela deve estar pesando mais de 5 libras! e virou a rã de cabeça para baixo e então a rã arrotou dois punhados de chumbo de caça. E aí ele entendeu o que havia acontecido com ela e ficou uma fera - largou a rã e partiu atrás do estranho, mas não conseguiu mais pegar ele. E -,[Aqui Simon Wheeler ouviu alguém chamar seu nome lá fora, e se levantou para ver do que se tratava] E, virando-se para mim, disse: "Fique onde está e relaxe, amigo - eu volto num segundo".

Mas vocês me perdoem, eu não achei que a continuação da história do empreendedor vagabundo Jim Smiley seria capaz de me trazer muitas informações a respeito do Reverendo Leônidas W. Smiley, e então eu fui saindo. Na porta me encontrei com o sociável Wheeler que voltava; ele me segurou pela lapela e recomeçou:

"Bem, esse tal Smiley tinha uma vaca caolha e sem rabo, só um coto, como uma banana, e -, De qualquer forma, na falta de tempo e vontade, não esperei para uuvir a respeito da pobre vaca, e fui-me embora.



(Tradução de Octávio Marcondes)



(Ilustração: Edward Lear)