Hoje morreu a minha mãe. Ou talvez
ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo:
"Sua mãe falecida: Enterro
amanhã. Sentidos pêsames".
Isto não quer dizer nada. Talvez
tenha sido ontem.
O asilo de velhos fica em Marengo, a
oitenta quilômetros de Argel. Tomo o ônibus das duas horas e chego lá à tarde.
Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite.
Pedi dois dias de folga ao meu chefe
e, com um pretexto destes, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar
lá muito satisfeito.
Cheguei mesmo a dizer-lhe "A
culpa não é minha". Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito
estas palavras. A verdade: é que eu não tinha que me desculpar: Ele é que tinha
de me dar pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de
luto. Por agora é um pouco como se a mãe não tivesse morrido. Depois do
enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se de
um ar mais oficial.
Tomei o ônibus às duas horas. Estava
calor. Como de costume, almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com
muita pena de mim, e o Celeste disse-me "Mãe, há só uma." Quando saí,
acompanharam-me à porta. Estava um pouco atordoado e tive que ir a casa do
Manuel para lhe pedir emprestados um fumo e uma gravata preta. O Manuel perdeu
o tio, há seis de meses.
Tive que correr para não perder o
ônibus. Esta pressa, esta correria, e talvez também os solavancos, o cheiro da
gasolina, a luminosidade da estrada e do céu, tudo isto contribuiu para que eu
adormecesse no caminho. Dormi quase todo o tempo. E quando acordei, estava
apertado de encontro a um soldado, que me sorriu e me perguntou se eu vinha de longe.
Disse que sim, para não ter que
voltar a falar.
O asilo distava dois quilômetros da
aldeia. Fui a pé. Quis ver imediatamente a mãe. Mas a porteira disse-me que eu
precisava, antes disso, de falar com o Diretor. Como estava com pessoas,
esperei ainda um pouco. Durante este tempo, o porteiro não parou de falar.
Depois, o Diretor recebeu-me no seu gabinete. Um velhote, que tem a Legião de
honra. Fitou-me com uns olhos muito claros. Depois apertou-me a mão durante
tanto tempo, que já não sabia como havia de a tirar. Consultou um processo e
disse-me: "A Senhora sua mãe entrou aqui há três anos. O Senhor era o seu
único amparo."
Julguei que me estava a fazer alguma
censura e comecei a explicar-lhe, mas ele interrompeu-me: "Não tem nada
que se justificar, meu filho. Estive a ler o processo da sua mãe. O Senhor não
lhe podia suportar as despesas. Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado
é modesto. E, no fim de contas, aqui ela era feliz." Disse: "Sim,
Senhor Diretor". Acrescentou: "Sabe o Senhor, aqui ela tinha amigos,
pessoas da mesma idade. Partilhava com eles motivos de interesse que são de um
outro tempo. O Senhor é novo, e ao seu lado, ela aborrecia-se com
certeza."
Era verdade. Quando estava lá em
casa a mãe passava o tempo a seguir-me em silêncio com os olhos. Nos primeiros
dias do asilo, chorava muitas vezes: Mas era por causa do hábito. Ao fim de
alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito. Foi um
pouco por isto que, no último ano quase não a fui visitar, E também porque a
visita me tomava o domingo todo sem contar o esforço para ir para o ônibus
comprar as passagens e fazer duas horas de viagem.
O Diretor disse-me ainda mais
coisas. Mas já quase não o ouvia. Em seguida perguntou-me: "Julgo que
agora, quer ir ver a sua mãe?"
Levantei-me sem dizer nada e
acompanhei-o até à porta.
Nas escadas, explicou-me:
"Levamo-la para a nossa morgue particular. Para não impressionar os
outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou três
dias, o que torna o serviço difícil".
Atravessamos um pátio onde havia
muitos velhos, conversando em grupos, uns com os outros. Ao passarmos,
calavam-se.
E atrás de nós as conversas
recomeçavam. Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos. À porta de uma
pequena construção, o Diretor deixou-me.
"Deixo-o agora, Senhor
Meursault. Estou às ordens, no escritório. Em princípio, o enterro estava
marcado para as dez horas da manhã. Pensamos que o Senhor podia assim passar a
noite a velar.
Uma última coisa: parece que a sua
mãe exprimiu várias vezes aos amigos o desejo de ter um enterro religioso.
Tomei à minha conta este encargo. Mas queria pô-lo a par.
Agradeci-lhe. Embora sem ser atéia,
enquanto viva a mãe nunca pensara em religião: Entrei: Era uma sala muito
clara, caiada, e coberta por uma vidraça. Mobilavam-na algumas cadeiras e
cavaletes em forma de X. Dois deles, ao meio da sala, suportavam um caixão
coberto.
Viam-se apenas parafusos brilhantes,
mal enterrados, destacando-se da madeira pintada de casca de noz. Perto do
caixão estava uma enfermeira árabe, de bata branca, com um lenço colorido na
cabeça. Neste momento, o porteiro entrou por detrás de mim. Devia ter corrido:
Gaguejou.
"Fecharam-no, mas eu vou
desaparafusá-lo, para que o Senhor a possa ver". Aproximava-se do caixão,
quando eu o detive.
Disse-me: "Não quer?"
Respondi: "Não". Calou-se e eu estava embaraçado porque sentia que
não devia ter dito isto. Ao fim de uns momentos, ele olhou-me e perguntou:
"Por quê?", mas sem um ar de censura, como se pedisse uma informação.
Eu disse: "Não sei". Então, retorcendo os bigodes brancos, declarou
sem olhar para mim: "Compreendo". O homem tinha uns bonitos olhos
azuis claros e uma pele um pouco avermelhada. Deu-me uma cadeira e sentou-se
também, um pouco atrás de mim. A enfermeira levantou-se e dirigiu-se para a
porta. Neste momento, o porteiro disse-me: "O que ela tem, é um
cancer". Não percebi o que ele dizia, até reparar que a enfermeira trazia
por debaixo dos olhos uma atadura que dava a volta à cabeça. No sítio do nariz,
não se via nenhuma saliência. Apenas a brancura do penso, sobre a cara.
Depois dela sair, o porteiro falou:
"Vou deixá-lo sozinho". Não sei bem que gesto fiz, mas deixou-se
ficar em pé, atrás de mim. Esta presença nas minhas costas incomodava-me. A
sala estava cheia de uma bonita luz de fim de tarde. Dois besouros zumbiam, de
encontro à vidraça. E eu sentia-me invadido pelo sono. Disse ao porteiro, sem
me voltar para ele: "Está aqui há muito tempo?" Ele respondeu
imediatamente: "Cinco anos", como se estivesse desde sempre à espera
da minha pergunta.
Em seguida, pôs-se a falar sem
parar. Muito se teria espantado se alguém lhe houvesse dito, no seu tempo, que
acabaria como porteiro de um asilo, em Marengo. Tinha sessenta e quatro anos e
era parisiense. Neste momento interrompi-o: "Ah, o Senhor não é
daqui?" Depois lembrei-me de que, antes de me levar ao Diretor, estivera a
falar da minha mãe. Dissera-me que era preciso enterrá-la depressa, porque na
planície fazia muito calor, sobretudo nesta terra. Fora então que me confiara
ser de Paris e que dificilmente o esquecia. Em Paris fica-se com o morto, às
vezes três ou quatro dias. Aqui não há tempo, mal nos habituámos à idéia e
temos logo que correr atrás do carro funerário. A mulher dele dissera-lhe então:
"Cala-te, não são coisas que se digam ao Senhor". O velho corara e
desculpara-se. Eu interviera para dizer: "Não, não..." Achava o que
ele estava a dizer verdadeiro e interessante.
Na pequena morgue ele confiou-me que
entrara no asilo como indigente. Como se sentia ainda válido, oferecera-se para
o lugar de porteiro. Observei que, no fim de contas, era também um pensionista.
Disse-me que não. Tinha já reparado na forma como se referia a
"eles", aos "outros", e mais raramente aos
"velhos", falando de pensionistas, alguns dos quais não eram mais
velhos do que ele. Mas não era a mesma coisa, evidentemente. Como era porteiro
tinha direitos sobre os outros, em certa medida.
A enfermeira entrou nesta altura. A
tarde caíra muito depressa. Muito depressa, a noite escurecera, por detrás da
vidraça. O porteiro manejou o interruptor e eu fiquei por momentos cego pelo
aparecimento súbito da luz. Convidou-me para ir jantar ao refeitório. Mas eu
não tinha fome. Ofereceu-se, então, para me trazer uma xícara de café com
leite. Como gosto muito de café com leite, aceitei, e ele voltou alguns
instantes depois com uma bandeja. Bebi. Tive então vontade de fumar. Mas
hesitei, porque não sabia se o podia fazer diante da mãe. Pensei, e concluí que
isso não tinha importância nenhuma. Ofereci um cigarro ao porteiro e fumámos os
dois.
A certa altura, disse-me: "Não
sei se sabia, mas os amigos da Senhora sua mãe vêm também velar. É o costume.
Tenho que ir buscar cadeiras e café." Perguntei-lhe se não se poderia
apagar uma das lâmpadas. O reflexo da luz nas paredes brancas cansava-me.
Respondeu-me que não era possível. A instalação fora assim montada: ou tudo ou
nada. A partir daí, não lhe prestei muita atenção. Saiu, voltou, arrumou as
cadeiras nos seus lugares. Numa delas, empilhou as xícaras em volta de uma
cafeteira. Depois sentou-se em frente de mim, do outro lado da mãe. A
enfermeira estava ao fundo, de costas voltadas. Não via o que ela estava a
fazer. Mas, pelo movimento dos braços, parecia-me que fazia malha.
A temperatura era agradável, o café
confortára-me e pela porta aberta, entrava um cheiro de noite e de flores.
Creio que adormeci por alguns instantes.
Acordei, porque alguém roçou por
mim. Por ter fechado os olhos, a sala pareceu-me ainda mais branca. Na minha
frente não havia uma única sombra e cada objeto, cada ângulo, todas as curvas
se desenhavam com uma pureza que me fazia mal aos olhos.
Foi nesse momento que entraram os
amigos da minha mãe. Ao todo, eram uns dez, e passavam em silêncio, nesta luz
tão crua. Sentaram-se sem que uma só cadeira rangesse. Eu via-os como nunca
vira ninguém até então e nem um pormenor das suas caras ou dos seus trajes me
escapava. Não os ouvia, no entanto, e custava-me a acreditar que tivessem
realidade. Quase todas as mulheres usavam um avental e o cordão que as apertava
na cintura, mais lhes realçava a barriga inchada. Nunca havia notado que as
barrigas das mulheres velhas eram tão grandes. Os homens eram quase todos muito
negros e traziam bengalas. O que me impressionava nas suas fisionomias, era que
eu não lhes via os olhos, mas unicamente uma luz sem brilho no meio de um ninho
de rugas. Quando se sentaram, a maioria deles olhou-me e abanou a cabeça
embaraçadamente, os beiços comidos pelas bocas desdentadas, sem que tivesse
percebido ao certo se me estavam a cumprimentar, ou se era apenas um tique.
Julgo que me cumprimentavam. Foi nesse momento que reparei que estavam todos em
frente de mim, balançando as cabeças, em volta do porteiro. Por instantes tive
a impressão de que estavam ali para me julgar.
Pouco depois, uma das mulheres
começou a chorar. Estava na segunda fila, escondida pelas outras, e eu não a
via muito bem. Chorava dando pequenos gritos, regularmente: parecia-me que
nunca mais pararia de chorar. Dava a idéia que os outros não ouviam. Estavam
encolhidos, tristes e silenciosos. Olhavam o caixão, a bengala ou qualquer
coisa, e não tiravam os olhos desse único objeto. A mulher continuava a chorar.
Eu estava muito admirado porque não a conhecia. Gostaria de não a ouvir mais.
Não o ousava dizer, porém. O porteiro debruçou-se sobre ela, falou-lhe, mas ela
sacudiu a cabeça, disse qualquer coisa, e continuou a chorar com a mesma
regularidade. O porteiro veio então para o meu lado. Sentou-se ao pé de mim. Ao
fim de um longo momento, informou-me, sem me olhar: "Era muito amiga da
Senhora sua mãe. Diz que era a única amiga que tinha e que agora, fica sem
ninguém".
Ficamos assim durante longos
instantes. Os suspiros e soluços da mulher iam-se fazendo mais raros. Por fim,
calou-se. Eu já não tinha sono, mas estava cansado e doíam-me os rins. Era o
silêncio de todas aquelas pessoas, que agora me era penoso. De tempos a tempos,
ouvia apenas um ruído estranho e não conseguia compreender de que se tratava.
Acabei por adivinhar que alguns dos velhos chupavam o interior das bochechas,
deixando escapar estes barulhos esquisitos. Estavam tão absortos nos seus
pensamentos, que nem davam por isso. Tinha mesmo a impressão de que esta morta,
ali deitada, nada significava para eles. Mas creio agora que se tratava de uma
impressão falsa.
Tomamos todos café, servido pelo
porteiro. Em seguida, não sei mais nada. A noite passou. Lembro-me de que, a
certa altura, abri os olhos e reparei que os velhos dormiam dobrados sobre si
mesmos, com exceção de um único que, de queixo encostado às costas das mãos, e
com estas agarradas à bengala, me olhava fixamente, como se estivesse à espera
de me ver acordar. Depois, voltei a adormecer. Acordei porque os rins me doíam
cada vez mais. O dia surgia pouco a pouco através da vidraça. Logo a seguir, um
dos velhos acordou e tossiu muito. Cuspia num grande lenço de quadrados e cada
um dos escarros era como que um arranque. Acordou os outros e o porteiro
disse-lhes que se deviam ir embora.
Levantaram-se.
Esta vigília incômoda tinha-lhes
dado às caras uma cor de cinza. À saída, e com grande espanto meu, vieram-me
todos apertar a mão, como se esta noite em que não havíamos trocado uma só
palavra, tivesse aumentado a nossa intimidade. Estava cansado. O porteiro levou-me
ao quarto dele, e pude lavar-me e pentear-me. Voltei a tomar café com leite,
que era ótimo. Quando saí, o dia estava completamente erguido.
Por cima das colinas que separam
Marengo do mar, o céu estava cheio de tonalidades de vermelho. E o vento, que passava
por cima delas, trazia um cheiro de sal. Era um bonito dia que se estava a
preparar. Há muito tempo que não vinha ao campo e teria tido imenso prazer em
passear, se não fosse a mãe. Mas pus-me à espera no pátio, debaixo de uma
árvore. Respirava o odor da terra fresca e já não tinha sono. Pensei nos
colegas do escritório. A esta hora levantavam-se para ir para o trabalho: para
mim, era sempre a hora mais difícil. Pensei um pouco mais nestas coisas, mas um
sino que tocava no interior dos edifícios distraiu-me. Houve uma confusão de
movimentos por detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um
pouco mais alto: principiava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio
e veio dizer que o Diretor estava à minha espera. Fui ao escritório deste.
Mandou-me assinar vários documentos.
Reparei que estava vestido de preto, com calças de fantasia.
Pegou no telefone e dirigiu-me a
palavra: "Os empregados da agência funerária já cá estão. Vou-lhes dizer
para fecharem o caixão. Quer ver a sua mãe pela última vez?" Disse que
não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone:
"Bigeac, diga aos homens que
podem ir".
Disse-me, em seguida, que assistiria
ao enterro... Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as
pernas. Informou-me que estaríamos sós, eu e ele, apenas com a presença da
enfermeira de serviço. Em princípio, os pensionistas não deviam assistir aos
enterros. Deixava-os apenas velar: "uma questão de humanidade",
observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um
velho amigo da minha mãe: "Tomás Perez". Aqui, o Diretor sorriu.
Disse-me: "Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas
ele e sua mãe andavam sempre juntos. No asilo, metiam-se com eles e diziam ao
Perez: "É a sua noiva".
Ele ria. Isto agradava-lhes. E o
caso é que a morte da sua mãe afectou-o muito. Achei melhor não lhe recusar a
autorização. Mas, a conselho do médico, proibi-lhe o velório de ontem".
Ficamos calados durante bastante
tempo. O Diretor levantou-se e olhou pela janela do escritório.
A certa altura observou: "Já
chegou o padre de Marengo. Vem adiantado". Preveniu-me que são precisos
pelo menos três quartos de hora para chegar à igreja, que fica mesmo na aldeia.
Descemos.
Diante do edifício, estava o padre e
dois acólitos.
Um deles segurava um turíbulo de
incenso e o padre abaixava-se para regular o comprimento da corrente de prata.
Quando chegamos, o padre levantou-se. Tratou-me por "meu filho" e
disse-me algumas palavras. Entrou e eu segui-o.
Vi de relance que os parafusos do
caixão estavam apertados e que havia na sala quatro homens vestidos de preto.
Ao mesmo tempo, o Diretor disse-me que o carro estava à espera na estrada e
ouvi o padre principiar as suas orações. A partir da confusão de movimentos por
detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um pouco mais alto:
Começava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio e veio dizer que o
Diretor estava à minha espera. Fui ao escritório deste. Mandou-me assinar
vários documentos. Reparei que estava vestido de preto, com calças estampadas.
Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: "Os empregados da agência
funerária já cá estão. Vou-lhes dizer para fecharem o caixão. Quer ver a sua
mãe pela última vez?" Disse que não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo
telefone: "Figeac, diga aos homens que podem ir".
Disse-me, em seguida, que assistiria
ao enterro. Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as
pernas. Informou-me de que estariamos sós, eu e ele, apenas com a presença da
enfermeira de serviço. E m princípio, os pensionistas não deviam assistir aos
enterros. Deixava-os apenas velar: "uma questão de humanidade",
observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um
velho amigo da minha mãe: Tomás Perez. Aqui, o Diretor sorriu. Disse-me:
"Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas ele e a sua
mãe andavam sempre juntos. No asilo, metiam-se com eles e diziam ao Perez:
"É a sua noiva". Ele ria. Isto agradava-lhes. E o caso é que a morte
da sua mãe afetou-o muito. Achei melhor não lhe recusar a autorização. Mas, a
conselho do médico, proibi-lhe o velório de ontem".
Ficamos calados durante bastante
tempo. O Diretor levantou-se e olhou pela janela do escritório. A certa altura
observou: "Já chegou o padre de Marengo. Vem adiantado". Preveniu-me
que são precisos pelo menos três quartos de hora para chegar à igreja, que fica
mesmo na aldeia. Descemos. Diante do edifício, estava o padre e dois acólitos.
Um deles segurava um turíbulo de incenso e o padre abaixava-se para regular o
comprimento da corrente de prata. Quando chegámos, o padre levantou-se.
Tratou-me por "meu filho" e disse-me algumas palavras. Entrou e eu
segui-o.
Vi de relance que os parafusos do
caixão estavam apertados e que havia na sala quatro homens vestidos de preto.
Ao mesmo tempo, o Diretor disse-me que o carro estava à espera na estrada e
ouvi o padre principiar as suas orações. A partir deste momento, foi tudo muito
rápido. Os homens dirigiram-se para o caixão. O padre, os dois acólitos, o
Diretor e eu, saímos. Diante da porta, havia uma Senhora que eu não conhecia:
"o Sr. Meursault", disse o Diretor. Não escutei o nome da Senhora e
compreendi apenas que era enfermeira delegada. Sem um sorriso, inclinou uma
cara ossuda e comprida. Depois, afastámo-nos para deixar passar o corpo.
Seguimos os homens e saímos do asilo. Diante da porta, estava um carro comprido
e reluzente. Ao pé do carro, estavam o mestre de cerimônias, homenzinho vestido
com um traje ridículo, e um velho com um ar embaraçado. Percebi que era o Sr.
Perez. Tinha um chapéu mole, de copa arredondada e abas largas (tirou-o da
cabeça quando o caixão atravessou a porta), um traje cujas calças caíam sobre
os sapatos e uma gravata preta, pequena demais, para a sua camisa com um grande
colarinho branco. Os beiços tremiam-lhe, por debaixo de um nariz semeado de
pontos negros. Os cabelos brancos, bastante finos, deixavam-lhe passar umas
curiosas orelhas balouçantes e mal acabadas, cuja cor de um vermelho sanguíneo
nesta cara tão pálida, me impressionou.
O mestre de cerimônias indicou-nos
os nossos lugares. O padre ia à frente do carro. Em volta deste, os quatro
homens. Atrás, o Diretor e eu; fechando o cortejo, a enfermeira delegada e o
Sr. Perez.
O céu estava já cheio de sol. Começava
a pesar sobre a terra e o calor aumentava rapidamente: Não sei por que motivo
esperámos tanto tempo antes de principiarmos a andar. Tinha calor, com o meu
traje escuro. O velhinho que voltara a cobrir a cabeça, tirou outra vez o
chapéu. Voltara-me um pouco para o lado dele e olhava-o, quando o Diretor o
trouxe à conversa. Disse-me que, muitas vezes, a minha mãe e o Sr. Perez iam
passear à noite até à aldeia, acompanhados por uma enfermeira. Eu olhava os
campos em meu redor. Através das linhas de ciprestes que levavam às colinas
perto do céu, desta terra ruiva e verde, destas casas raras e bem desenhadas,
eu compreendia a minha mãe. A noite, neste sítio, devia ser como que um
melancólico período de tréguas. Hoje, o sol excessivo que fazia estremecer a paisagem,
tornava-a deprimente e inumana.
Iniciamos o caminho. Reparei então
que o Sr. Perez coxeava ligeiramente. Pouco a pouco, o carro ia mais depressa e
o velho perdia terreno: Um dos homens que rodeava o carro também se deixou
ultrapassar e seguia agora ao meu nível. Eu estava admirado pela rapidez com
que o sol subia no horizonte. Dei por que o ar era há muito cruzado pelo canto
dos insetos e pelos estalidos das ervas. O suor caía-me pela cara abaixo. Como
não trazia chapéu, limpava-me com um lenço. O empregado da agência disse-me
então qualquer coisa que não ouvi. Enquanto, com a mão esquerda, limpava a
testa com um lenço, com a mão direita levantava a pala do boné. Disse-lhe:
"O quê?" Ele repetiu, apontando para o céu: "Está forte".
Eu disse: "Sim". Pouco depois, perguntou-me: "É a sua mãe, quem
ali vai?" Voltei a dizer: "Sim". "Era muito velha?"
Respondi: "Assim, assim", porque não sabia ao certo quantos anos
tinha. O homem calou-se. Voltei-me e vi o velho Perez uns cinqüenta metros
atrás de nós. Com o chapéu na mão, apressava-se o mais que podia: Olhei também
para o Diretor. Andava com muita dignidade, sem gestos inúteis. Algumas gotas
de suor escorriam-lhe pela testa, mas não as enxugava.
Parecia-me que o cortejo ia um pouco
mais depressa. Em volta de mim, era sempre a mesma paisagem luminosa, inundada
de sol. O brilho do céu era insustentável. Em dado momento, passamos por um
trecho de estrada que havia sido reparado há pouco. O sol derretia o alcatrão.
Os pés enterravam-se, deixando aberta a carne luzidia do alcatrão. Por cima do
carro, o chapéu do cocheiro, de couro escuro, parecia ter sido moldado na mesma
lama negra. Sentia-me um pouco perdido entre o céu azul e branco e a monotonia
destas cores, negro pegajoso do alcatrão aberto, negro baço dos trajes, negro
lacado do carro. Tudo isto, o sol, o cheiro de borracha e de óleo do automóvel,
o do verniz e o do incenso, o cansaço de uma noite de insônia, me perturbava o
olhar e as idéias. Voltei-me uma vez mais: o velho Perez apareceu-me muito ao
longe, perdido numa nuvem de calor, e depois não o tornei a ver. Procurei-o com
o olhar e vi que abandonara a estrada e metera pelos campos dentro. Reparei
que, na minha frente, a estrada virava para um lado. Compreendi que o Perez,
conhecendo a terra, cortava a direito para nos apanhar. Na curva, conseguira
juntar-se conosco. Em seguida voltamos a perdê-lo. Tomou ainda vários atalhos
através dos campos. Quanto a mim, sentia o sangue latejar-me nas fontes.
Depois tudo se passou com tanta
rapidez, tanta certeza, tanta naturalidade, que já não me lembro de nada. Uma
coisa, apenas: à entrada da aldeia, a enfermeira delegada falou-me. Possuía uma
voz singular, que não acertava com a cara, uma voz trêmula e melodiosa.
Disse-me: "Se vamos muito devagar, arriscamo-nos a uma insolação. Mas se
vamos muito depressa, transpiramos e na igreja apanhamos calor e frio".
Tinha razão. Era um beco sem saída. Conservei ainda algumas imagens deste dia:
por exemplo, a cara do Perez quando, pela última vez, se juntou conosco próximo
da aldeia. Grossas lágrimas de enervamento e de tristeza corriam-lhe pela cara
abaixo. Mas, por causa das rugas, não caíam. Dividiam-se, juntavam-se e
formavam uma máscara de água nessa cara arruinada. Houve ainda a igreja e os
aldeões nos passeios, os gerâneos vermelhos nos jazigos do cemitério, o desmaio
do Perez (dir-se-ia um boneco quebrado), a terra cor de sangue que atiravam
para cima do caixão da mãe, a carne branca das raizes que se lhes juntavam,
ainda mais gente, vozes, a aldeia, a espera diante de um café, o incessante
roncar do motor, e a minha alegria quando o ônibus entrou no ninho de luzes de
Argel e que pensei que me ia deitar e dormir durante doze horas.
(O Estrangeiro)
(Ilustração:
Tomasz Kafel)