[...] não conseguia ser amável com outro romancista, que se assinava Garay Fontina - assim, dois sobrenomes sem nome de batismo, devia achar original e enigmático, mas parecia nome de árbitro de futebol - e que considerava que a editora tinha de resolver qualquer dificuldade ou contratempo seu, mesmo que não tivesse a menor relação com seus livros. Ele nos pedia que fôssemos pegar um casaco em sua casa e levá-lo à tinturaria, que lhe mandássemos um técnico de informática ou uns pintores de parede ou que arranjássemos hospedagem para ele em Trincomalee ou em Batticaloa e cuidássemos dos preparativos de uma viagem particular sua para lá, as férias com sua senhora tirânica que de vez em quando telefonava ou aparecia em pessoa e não pedia, mandava. Meu chefe tinha grande apreço por Garay Fontina e lhe fazia agrados através de nós, não tanto porque vendesse muito quanto porque o havia feito acreditar que o convidavam com frequência a Estocolmo - eu sabia, por mero acaso, que ele ia para lá sempre por conta própria para conchavar no vazio e respirar o ar - e que lhe iam conceder o Nobel, muito embora ninguém houvesse pedido publicamente o prêmio para ele, nem na Espanha nem em lugar nenhum. Nem mesmo na sua cidade natal, como costuma ocorrer com tantos. No entanto, ele dava a coisa por certa diante do meu chefe e de seus subordinados, que ficávamos vermelhos de vergonha ao ouvir dele frases como "Meus espiões nórdicos me dizem que está para sair este ano ou ano que vem", ou "Já memorizei em sueco o que direi a Carlos Gustavo na cerimônia. Vou reduzi-lo a pó, ele nunca ouvirá nada tão feroz em sua vida, e ainda por cima na sua língua que ninguém aprende". "O que é, o que é?", perguntava meu chefe com excitação antecipada. "Você vai ler na imprensa mundial no dia seguinte", respondia Garay Fontina regozijante. "Não haverá jornal que não publique, e todos terão de traduzi-lo do sueco, até os daqui, não é engraçado?" (Eu achava invejável viver com tanta confiança numa meta, mesmo que ambas fossem fictícias, a meta e a confiança.) Procurava ser bastante diplomática com ele, não ia arriscar meu emprego,mas nem dá para dizer quanto me custava agora quando ele me ligava cedo com suas pretensões desmedidas.
- María - ele me disse ao telefone uma manhã - , preciso que você me arranje uns gramas de cocaína, para uma cena do meu novo livro. Mande alguém trazer aqui em casa o quanto antes, em todo caso antes do anoitecer. Quero ver a cor dela à luz do dia, para que não me engane depois.
- Mas, senhor Garay...
- Garay Fontina, querida, não não é a primeira vez que te digo; Garay puro é quase qualquer um, no País Basco, no México e na Argentina. Poderia até ser um jogador de futebol.
- Insistia tanto nisso que eu estava convencida de que o segundo sobrenome era inventado (olhei na lista telefônica de Madri um dia e não havia nenhum Fontina, só uma tal de Laurence Fontinoy, nome ainda mais inverossímil, como que de O morro dos ventos uivantes), ou talvez o sobrenome inteiro o fosse e na realidade ele se chamava Gómez Gómez ou García García ou qualquer outra redundância que o ofendia. Se fosse um pseudônimo, quando o escolheu, certamente ignorava que Fontina é um tipo de queijo italiano, não sei se de vaca ou de cabra, que se faz no Val d'Aosta, acho, e que as pessoas comem mais derretido que de outra maneira. Mas, bem, afinal de contas tem um amendoim que se chama Borges, não creio que isso o teria perturbado.
- Sim, senhor Garay Fontina, desculpe, foi para abreviar um pouco. Mas olhe - não pude evitar de dizer, apesar de não ser o principal, longe disso - não se preocupe com a cor. Posso garantir que é branca, com luz solar e com luz elétrica, quase todo mundo sabe. Aparece muito nos filmes, não via os do Tarantino na época? Ou o do Al Pacino em que faziam montinhos?
- Até aí eu sei, querida María - respondeu irritado. - Vivo neste planeta sujo, embora possa não parecer quando estou criando. Mas faça o favor de não se subestimar, você que não se limita a fazer livros como sua colega Beatriz e tantos outros, mas que além disso os lê, e com bom tino. - Ele me dizia coisas assim de vez em quando, suponho que para ganhar minha simpatia: eu nunca tinha lhe dado uma opinião sobre nenhum romance seu, não me pagavam para isso. - O que temo é não ser exato com os adjetivos. Vejamos, você pode me precisar se é de um branco leitoso ou de um branco calcário? E a textura. É mais como giz moído ou como açúcar? Como sal, como farinha ou como pó de talco? Vamos, diga.
Eu me vi envolvida numa discussão absurda e perigosa, dada a suscetibilidade do iminente galardoado. Eu própria tinha me metido nela.
- É como cocaína, senhor Garay Fontina. A esta altura não é preciso descrevê-la, porque quem não provou já viu. Salvo pessoas idosas, que de qualquer modo também já viram na televisão milhares de vezes.
- Você está me dizendo como tenho de escrever, María? Se tenho de pôr adjetivos ou não? O que devo descrever e o que é supérfluo? Está dando lições a Garay Fontina?
- Não, senhor Fontina...
Eu era incapaz de chamá-lo todas as vezes pelos dois sobrenomes, demorava séculos e a combinação não era sonora nem me agradava. Que eu omitisse Garay não parecia incomodá-lo tanto.
- Se lhes peço dois gramas de coca para hoje, por alguma razão há de ser. É porque esta noite o livro vai precisar deles, e interessa a vocês que haja um novo livro e que esteja sem falhas, não? A única coisa que lhes cabe fazer é arranjá-los e enviá-los para mim, e não discutir comigo. Ou será que tenho de falar pessoalmente com Eugeni?
Dessa vez não arredei pé e me escapou um catalanismo. Quem me contagiava com eles era meu chefe, que era catalão de origem e os conservava em número abundante, apesar de estar em Madri a vida toda. Se a exigência de Garay chegasse aos ouvidos dele, era capaz de mandar todos nós para a rua em busca da droga (nos bairros mal-afamados e em povoados em que os táxis se recusam a a entrar), a fim de satisfazê-lo. Ele levava demasiado a sério seu autor mais presunçoso, é inconcebível como esse tipo de gente convence muitos do seu valor, é um fenômeno universal enigmático.
- Está nos tomando por aviões, senhor Fontina? - disse a ele. - Não percebe que está pedindo que infrinjamos a lei? Não se compra cocaína nas tabacarias, isso o senhor sabe, nem no bar da esquina. Além do mais, para que quer dois gramas? Tem ideia de quanto são dois gramas, quantas carreirinhas dá? Se passa da dose, teremos uma grande perda. Para sua mulher e para a literatura. O senhor poderia ter um AVC. Ou ficar viciado e não pensar mais em outra coisa, não escrever mais nada, um farrapo humano incapaz de viajar, não pode atravessar fronteiras com droga. Já pensou, adeus cerimônia sueca e sua impertinência com Carlos Gustavo.
Garay Fontina ficou calado um momento, como se avaliasse se tinha se excedido em seu petitório ou não. Mas creio que o que mais lhe pesava era a ameaça de acabar não pisando nos tapetes de Estocolmo.
- Não, aviões não! - disse por fim. - Vocês só comprariam, não venderiam.
Aproveitei sua hesitação para esclarecer de passagem um detalhe importante da operação que ele desejava:
- Ah, mas e depois, quando a passarmos ao senhor? Entregaríamos os dois gramas e o senhor nos daria o dinheiro, não? E isso o que é? Não é trabalhar como avião? Para a polícia seria, não tenho dúvida.
Não era uma questão insignificante, porque Garay Fontina nem sempre nos reembolsava a conta da tinturaria ou o estipêndio dos pintores nem os gastos com as reservas em Batticaloa, no melhor dos casos demorava a fazê-lo e meu chefe ficava perturbado e nervoso quando reclamávamos o dinheiro. Só faltava financiarmos também os vícios do seu novo romance incompleto e portando ainda não contratado.
Notei que vacilava mais. Talvez não houvesse parado para pensar no dispêndio, mal acostumado que estava. Como tantos escritores, era um chupa-sangue, sovina e sem orgulho. Deixava tremendas despesas penduradas nos hotéis quando ia dar conferência por estes mundos, ou melhor, por estas províncias afora. Exigia suítes e o pagamento de todos os extras. Dizia-se que levava nas viagens seus lençóis e sua roupa suja, não por excentricidade nem por mania, mas para aproveitar e mandar lavá-los nos hotéis, até mesmo as meias sobre as quais não me consultava. Isso devia ser mentira - viajar com tanto peso seria um aborrecimento incrível -, mas ninguém explicava então como, certa feita, os organizadores da sua palestra tiveram de assumir descomunal fatura de lavanderia (uns mil e duzentos euros, correra de boca em boca).
- Sabe quanto está a cocaína, María?
Eu não sabia o preço exato, achava que uns sessenta euros, mas chutei um número bem alto, para assustá-lo e dissuadi-lo. Começava a pensar que poderia conseguir isso, ou pelo menos me safar do rolo que seria ir buscá-la, sabe-se lá em que birosca ou muquifo.
- Acho que uns oitenta euros o grama.
- Caray.
Depois ficou pensativo. Supus que estivesse fazendo cálculos muquiranas.
-É. Talvez você tenha razão. Talvez um grama chegue, ou meio. Dá para comprar meio?
- Não sei, senhor Garay Fontina. Eu não uso. Mas diria que não.
Convinha que não encontrasse jeito de economizar.
- Do mesmo modo que não se pode comprar meio frasco de água-de-colônia, suponho. Nem meia pera.
Mal pronunciei essas frases me dei conta do absurdo das comparações.
- Ou meio tubo de pastas de dentes.
Isso me pareceu mais adequado. Mas ainda precisava tirar totalmente essa ideia da sua cabeça, ou conseguir que ele comprasse a droga por conta própria, sem nos fazer delinquir nem adiantar o dinheiro. Com ele não se poderia descartar que não tornássemos a vê-lo, e a editora não estava para desperdícios.
- Mas me permita uma pergunta: o senhor quer a coca para usar ou só para vê-la e tocá-la?
- Ainda não sei. Depende do que o livro me peça esta noite.
Eu achava ridículo um livro pedir o que quer que fosse de noite ou de dia, ainda mais quando não estava escrito a quem o estava escrevendo. Tomei aquilo por uma licença poética, deixei passar sem comentários.
- Sabe, se for apenas o segundo caso e o que o senhor quer é descrevê-la, ai, não sei como explicar... O senhor aspira a ser universal, já é, e como tal tem leitores de todas as idades. Não vai querer que os jovens pensem que para o senhor essa droga é uma novidade e que só a esta altura do campeonato o senhor ficou sabendo dela, se for contar como ela é e seus efeitos. E que tirem sarro do senhor por causa disso. Descrever a cocaína hoje em dia é como descrever um sinal de trânsito. Imagine os adjetivos! Verde, amarelo, vermelho! Estático, ereto, imperturbável, metálico! Seria risível.
- Está falando num sinal desses da rua? - perguntou alarmado.
- Eles mesmos.
Eu não sabia que mais podia significar "sinal de trânsito", pelo menos em linguagem corrente. Guardou silêncio por uns instantes.
- Tirar sarro, heim? A esta altura do campeonato - repetiu.
Me dei conta de que a utilização dessas expressões tinha sido um acerto, elas o impressionaram.
- Mas só sob esse aspecto, senhor Fontina, com certeza.
A perspectiva de que os jovens pudessem tirar sarro de uma só linha sua devia ser insuportável para ele.
- Bom, eu vou pensar. Não tem importância se eu atrasar um dia. Amanhã te digo o que decidi.
Soube que não diria nada, que deixaria de experiências e comprovações idiotas e que nunca mais faria referência àquela conversa telefônica. Dava uma de anticonvencional e transcontemporâneo, mas no fundo era como Zola e outros: fazia o impossível para viver o que imaginava, só por isso, tudo em seus livros soava artificial e trabalhado.
(Os enamoramentos, tradução de Eduardo Brandão)
(Ilustração: René Magritte - la lampe philosophique)