quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

MISTINGUETTE VAI CASAR, de Jean Manzon




No meu terceiro dia em Paris resolvi fazer algumas coisas que nunca fizera antes: visitar os lugares tão falados no estrangeiro e tão desconhecidos dos próprios parisienses. Fui à Torre Eiffel, entrei em Notre Dame, demorei-me no Louvre e, por fim, depois de carregar minha máquina fotográfica, tomei o rumo do apartamento de Mistinguette. Preciso dizer quem é Mistinguette? Aos leitores adolescentes, talvez. A mais famosa vedeta do século, a dona das mais belas pernas do mundo, a que deixou corações em petição de miséria, cuja beleza iluminou os cabarés de Paris desde antes da primeira grande guerra, está agora do outro lado da porta. Insisto na campainha. A cara de um porteiro engalanado aparece, misteriosamente:

- Com quem deseja falar, monsieur?

- Mistinguette.

- Madame não recebe.

Era um porteiro negro do Senegal.

Como dera ali, não posso dizer. Já ia fechando a porta, quando a travei com o pé.

- Diga-lhe que venho do Brasil.

- Não recebe.

- Recebo sim! - gritou lá do fundo a própria Mistinguette. - Do Brasil, recebo, sim!

Veio, toda num sorriso, explicando que seu tempo era todo tomado pelos compromissos artísticos, mas que do Brasil vinha a mensagem saudosa de um filho que ela possui em terras da América.

Logo que Mistinguette transpôs a fronteira de sombra e luz que existe em seu luxuosíssimo apartamento, compreendi a grande tragédia dessa incomparável e alegre mulher. Nunca a velhice poderia ser mais dramática, nunca um corpo lutou tanto contra o poder arrasador dos anos. A marcha do tempo em cada ruga, em cada pedaço, na cor artificial dos cabelos, e na agonia lenta, inexorável, impiedosa daquelas pernas que por triz não foram cantadas pela musa de Alfred Musset.

Enfrentando a velhice, Mistinguette o faz com uma triste dignidade, tornando mais heroica a jornada de volta, pelo outro lado da colina. Nascida em 1870, ela conheceu a glória antes de chegar ao fim do século. Quando o Brasil proclamou sua República, Mistinguette, linda aos 19 anos, arrebatava Paris, “- Mulher assim não é humana”, diziam os críticos teatrais. - “É um anjo”, gritavam os espectadores. Victor Hugo a admirava? A História não diz. D. Pedro II viu Mistinguette dançar? Não posso responder. Cinquenta milhões de pessoas, cinquenta milhões de olhos sedentos passaram pelas bilheterias em busca de Mistinguette, a quase divina Mistinguette. Por seu amor, reis dariam tronos, plebeus dariam a vida. Ela foi a inspiração de poetas, a paixão de humildes operários, a alucinação de honrados burgueses de Paris e além de suas fronteiras.

Ei-la agora, diante de mim. Aos 76 anos, Mistinguette é um prodígio de bom humor, de bondade, de ternura para com o gênero humano, que tão bem soube tratá-la em toda sua longa e prodigiosa existência. Sente-se que ela procura se agarrar à vida que lhe foge pelos dedos, hoje encurvados e secos, pela pele macilenta. Agarra-se à vida no amor de um jovem, o italiano Cozenso, que com ela se casou ou vai se casar. Ele está no apartamento de Mistinguette neste instante.

- Conhaque? Gin? Rum?

Prefiro um brandi, enquanto o rapaz, com uma cara melancólica, vai para o piano e se arrasta num dolente blue. 

Mistinguette me diz:

- Todos pensam que esse rapaz se casará comigo pelo dinheiro que possuo. Não é verdade.

Numa longa baforada, explica:

- Nunca lhe dei um franco.

- Ele a ama?

- Não.

- Então...

- Sei o que estás pensando, amigo. Sou velha e sem atrativos e um jovem como êsse vil Cosenzo não poderia apaixonar-se por mim. Não é isso? Negas? Sei que é a verdade. Tantos anos de experiência ajudaram-me a conhecer  profundamente o coração dos homens.

Mistinguette troca o cigarro por um copo de leite.

- Leite?

- É o segredo da longa vida.

Sorve o líquido branco e, colocando a taça sobre a mesa, recomeça:

- Se Cozenso não me ama, se não leva meu dinheiro, por que está aqui? Por um motivo simples: o homem quer cartaz. Aliás, todos os homens querem cartaz. Avalie quanto vale para Cozenso a publicidade gratuita: “- Fulano de tal vai se casar com Mistinguette”. Ele é um compositor de músicas populares. Está ouvindo esse fox horrível? É dele. Depois que se espalhou a notícia, os diretores aceitam suas drogas e ele é um camarada feliz. Apenas tem por obrigação portar-se condignamente para não manchar minha reputação nem lançar-me ao ridículo.

- Um bom moço, ele deve ser.

- Precisamente.

Mistinguette levanta os olhos e fita Cozenso, que está embebido numa passagem de sua própria melodia.

- Pobrezinho, eu poderia ser sua avó.

Volta-se para mim e pede:

-Diga que tenho 38 anos...

Velha e querida Mistinguette, alma e temperamento de minha cidade, sempre jovem, sempre eterna: eu desejaria que você não morresse nunca. Isto é supérfluo, Mistinguette, porque realmente você não morrerá nunca, enquanto existir Paris, enquanto houver música nos cabarés, enquanto pernas lindas deslocarem nossos olhos. Mistinguette, você é um bairro de Paris.






(Ilustração: cartaz Mistinguett - la revue de Paris)



domingo, 27 de janeiro de 2013

AMOR E MEDO, de Casimiro de Abreu








I

Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! Bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
" - Meu Deus! Que gelo, que frieza aquela!"

Como te enganas! Meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela - eu moço; tens amor - eu medo!...

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me intumesce os seios.
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.

É que esse vento que na várzea - ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!

Ai! Se abrasado crepitasse o cedro
Cedendo ao raio que a tormenta envia.
Diz: - que seria da plantinha humilde
Que à sombra dele tão feliz crescia?

A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho;
E a pobre nunca reviver pudera
Chovesse embora paternal orvalho!

II

Ai! Se eu te visse no valor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco.
Soltos cabelos nas espáduas nuas!...

Ai se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos - palpitante o seio!...

Ai se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...

Diz: - que seria da pureza d'anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
- Tu te queimaras, a pisar descalça,
- Criança louca, - sobre um chão de brasas!

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!

Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos pauis da terra.

Depois... desperta no febril delírio,
- Olhos pisados - como um vão lamento,
Tu perguntaras: - qu'é da minha c'roa?...
Eu te diria: - desfolhou-a o vento!...

---------

Oh! Não me chamas coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito,
És bela - eu moço; tens amor, eu - medo!



(Ilustração: Gianni Strino)



quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

NATAL NA BARCA, de Lygia Fagundes Telles








Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.

— Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

— Quente?

— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

— Mas a senhora mora aqui perto?

— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

— Seu filho?

— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.

— É o caçula?

Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.

— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

— E esse? Que idade tem?

— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.

— Seu marido está à sua espera?

— Meu marido me abandonou.

Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

— Há muito tempo? Que seu marido...

— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

— A senhora é conformada.

— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

— Deus — repeti vagamente.

— A senhora não acredita em Deus?

— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim

— Estamos chegando — anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

- Chegamos!... Ei! chegamos!

Aproximei-me evitando encará-la.

— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

— Acordou?!

Ela sorriu:

— Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.



(Para gostar de ler – Volume 9)



(Ilustração: Almada Negreiros - maternidade)


segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

LINES INSCRIBED UPON A CUP FORMED FROM A SKULL / A UMA TAÇA FEITA DE UM CRÂNIO HUMANO, de Lord Byron










Start not --- nor deem my spirit fled;

In me behold the only skull,

From which, unlike a living head,

Whatever flows is never dull.



I lived, I loved, I quaff'd, like thee:

I died: let earth my bones resign;

Fill up --- thou canst not injure me;

The worm hath fouler lips than thine.



Better to hold the sparkling grape,

Than nurse the earth-worm's slimy brood;

And circle in the goblet's shape

The drink of gods, than reptile's food.



Where once my wit, perchance, hath shone,

In aid of others' let me shine;

And when, alas ! our brains are gone,

What nobler substitute than wine?



Quaff while thou canst: another race,

When thou and thine, like me, are sped,

May rescue thee from earth's embrace,

And rhyme and revel with the dead.



Why not? Since through life's little day

Our heads such sad effects produce;

Redeem'd from worms and wasting clay,

This chance is theirs, to be of use.





Tradução de Castro Alves:



Não recues! De mim não foi-se o espírito...
Em mim verás - pobre caveira fria
- Único crânio que, ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.

Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!... que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais val guardar o sumo da parreira
Do que ao verme do chão ser pasto vil;
-Taça - levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do reptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,
Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro...
Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.


E por que não? Se no correr da vida

Tanto mal, tanta dor aí repousa?
É bom fugindo à podridão do lado
Servir na morte enfim p'ra alguma coisa!...





(Espumas Flutuantes)



(Ilustração: Siegfried Zademack)





sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

PREZADA WIKIPEDIA, de Philip Roth










Sou Philip Roth. Tive motivos recentes para ler pela primeira vez o verbete da Wikipedia discutindo meu romance A Mancha Humana. Ele contém um sério equívoco e gostaria que fosse removido. Ele entrou na Wikipedia não do mundo da veracidade, mas dos balbucios das tagarelices literárias – não há nenhuma verdade nele.


Mas quando, por meio de um interlocutor oficial, pedi à Wikipedia que deletasse o equívoco, fui informado pelo “Administrador da Wikipedia em Inglês” – numa carta de 25 de agosto – que eu, Roth, não era uma fonte confiável: “Compreendo seu ponto de que o autor é a maior autoridade em seu próprio trabalho”, escreveu, “mas exigimos outras fontes.”


Assim nasceu esta carta aberta. Depois de não conseguir uma mudança feita pelos canais usuais, não sei de que outra maneira proceder.


Meu romance A Mancha Humana foi descrito no verbete como “alegadamente inspirado na vida do escritor Anatole Broyard”. Essa afirmação não é minimamente substanciada pelos fatos. A Mancha Humana foi inspirado num evento infeliz na vida meu amigo Melvin Tumin, já falecido, professor na Universidade de Princeton. Um dia, no outono de 1985, quando Mel, que era meticuloso em todas as coisas, estava meticulosamente fazendo a chamada numa turma de sociologia, notou que dois de seus alunos ainda não haviam frequentado uma só aula ou tentado se encontrar com ele para explicar a ausência, embora já se estivesse no meio do semestre.


Terminada a chamada, perguntou à classe sobre os dois alunos que nunca havia encontrado. “Alguém os conhece? Elas existem ou são fantasmas? (spooks, em inglês)” – infelizmente, as mesmíssimas palavras que Coleman Silk, o protagonista de A Mancha Humana, usa na pergunta que faz a sua turma no Athena College em Massachusetts.


Quase imediatamente, Mel foi convocado pelas autoridades universitárias para justificar seu uso da palavra “spooks” já que os alunos faltantes, nas circunstâncias, eram ambos afro-americanos, e “spook”, nos Estados Unidos da época, era uma designação pejorativa para negros. Seguiu-se uma caça às bruxas durante os meses seguintes da qual o professor Tumin – como o professor Silk em A Mancha Humana – saiu ileso, mas somente depois de ter dado depoimentos demorados declarando-se inocente da acusação de discurso do ódio.


Circulou um sem-número de ironias, pois Mel havia adquirido proeminência nacional entre sociólogos, ativistas de direitos civis e políticos liberais ao publicar, em 1959, o estudo sociológico Desegregation: Resistance and Readiness, e depois, em 1967, com Social Stratification: The Forms and Functions of Inequality, que se tornou referência. Antes de vir para Princeton, ele fora diretor da Comissão Municipal de Relações de Raça, em Detroit. Quando morreu, em 1995, a manchete no obituário do New York Times dizia “Melvin M. Tumin, 75, especialista em relações raciais”.

Nenhuma dessas credenciais contou quando os poderes do momento tentaram tirar o professor Tumin de seu elevado cargo acadêmico sem nenhuma razão, como o professor Silk foi tirado em A Mancha Humana.

E foi isso que me inspirou a escrever A Mancha Humana: não algo que possa ou não ter ocorrido na vida, em Manhattan, da figura literária cosmopolita de Anatole Broyard, mas que realmente ocorreu na vida do professor Melvin Tumin, cem quilômetros ao sul de Manhattan, na cidade universitária de Princeton, onde conheci Mel no começo dos anos 60.


Assim como ocorreu com a distinta carreira acadêmica do protagonista de A Mancha Humana, a carreira de Mel foi conspurcada da noite para o dia por ele ter supostamente destratado dois alunos nos quais jamais havia posto os olhos. Até onde tenho conhecimento, nenhum evento remotamente como esse manchou a longa e bem-sucedida carreira de Broyard nos mais altos cumes do mundo do jornalismo literário.

A ocorrência com “spooks” é o incidente inaugural de A Mancha Humana. O núcleo do livro. O romance não existe sem ela. Coleman Silk não existe sem ela. Cada novidade que ficamos sabendo sobre Silk, no curso de 361 páginas, começa com sua perseguição desenfreada por ter pronunciado “spooks” em voz alta numa sala de aula de faculdade. Nessa palavra, falada em absoluta inocência, jaz a fonte do ódio a Silk, suas angústia e queda.


Por ironia, essa e não seu enorme segredo de toda a vida – ele é o filho de pele clara de uma respeitável família negra em Nova Jersey, que consegue fazê-lo passar por branco desde o momento em que entra na Marinha aos 19 anos – é a causa de sua morte humilhante.



Quanto ao escritor Anatole Broyard, ele algum dia esteve na Marinha? Na prisão? Num curso de pós-graduação? Algum dia terá sido vítima inocente de perseguição institucional? Não tenho a menor ideia. Em mais de três décadas, cruzei com ele, casual e inadvertidamente, talvez três ou quatro vezes antes de prolongada batalha contra um câncer de próstata pôr fim à sua vida, em 1990.

Silk, por sua vez, é morto maldosamente, assassinado num acidente de carro planejado e premeditado quando estava com sua improvável amante, Faunia Farley. As revelações que fluem das circunstâncias específicas da morte de Silk pasmam seus sobreviventes e levam à conclusão desolada do romance num desolado lago coberto de gelo onde ocorre uma espécie de confronto entre Nathan Zuckerman e o executor de Faunia e Coleman, o ex-marido de Faunia, o atormentado e violento veterano do Vietnã, Les Farley. Nem os sobreviventes de Silk, nem seu assassino, nem sua amante tiveram origem em outro lugar que não a minha imaginação. Na biografia de Anatole Broyard não há qualquer pessoa ou evento comparável, até onde eu sei.


Eu não conhecia nada da vida privada de Broyard e, no entanto, os aspectos mais delicadamente privados da vida privada de Coleman Silk constituem praticamente toda a história narrada em A Mancha Humana.

Nunca conheci, falei com ou, até onde sei, estive na companhia de uma única pessoa da família Broyard. A decisão de ter filhos com uma mulher branca e, possivelmente, ser exposto como negro pela pigmentação de seu filho é um motivo de grande apreensão de Silk. Se Broyard sofreu essa apreensão, não tinha nenhuma maneira de saber.


Jamais fiz uma refeição com Broyard, jamais saí com ele para um bar ou um jogo de beisebol, nunca o vi numa festa à qual poderia ter ido nos anos 60 quando estava vivendo em Manhattan e em raras ocasiões socializava em festas. Nunca cruzei acidentalmente com ele na rua, embora uma vez – se não me engano, nos anos 80 – nós nos encontramos na loja de roupas masculinas Paul Stuart na Madison Avenue, onde estava comprando sapatos. Como Broyard era a essa altura o resenhista de livros intelectualmente mais refinado do Times, lhe disse que gostaria que ele se sentasse na cadeira ao meu lado e me permitisse comprar-lhe um par de sapatos, na esperança, admiti francamente, de aprofundar seu apreço por meu próximo livro. Foi um encontro alegre, divertido, que durou dez minutos se muito, e foi o único encontro do tipo que tivemos.


Nós nunca nos demos ao trabalho de ter uma conversa séria. Caçoadas de passagem eram nossa especialidade, com o resultado de que nunca soube quem eram seus amigos ou inimigos, não soube onde e quanto ele havia nascido e crescido, nada sobre sua condição econômica, nada de sua política ou times favoritos ou se tinha algum interesse por esporte. Não sabia nada sobre a sua saúde mental ou seu bem-estar físico, e só fiquei sabendo que ele estava morrendo de câncer muitos meses depois de ele ter sido diagnosticado, quando ele escreveu sobre sua luta com a doença na New York Times Magazine.


Eu o conhecia somente como um crítico em geral generoso de meus livros. No entanto, após admirá-lo por sua coragem no artigo sobre sua morte iminente, consegui o número do telefone de Broyard de um conhecido comum e liguei para ele. Foi a primeira e última vez que falei com ele por telefone. Ele foi encantadoramente efusivo, extremamente exuberante, e riu com gosto quando o lembrei de nós em nossa mocidade, lançando uma bola de futebol americano em uma praia em Amagansett, em 1958, que foi onde e quando eu o conheci.

Na época, eu estava com 25 anos, ele com 38. Era um belo dia de verão, e me lembro de ter ido até ele na praia para me apresentar e lhe dizer como havia apreciado seu brilhante conto What the Cystoscope Said. A história havia aparecido em meu último ano de faculdade, 1954, no quarto número da mais soberba das revistas literárias da época, Discovery.


Logo havia quatro de nós – escritores recém-publicados quase da mesma idade. Aqueles vinte minutos de bola constituíram o envolvimento mais íntimo que Broyard e eu tivemos, e elevaram a um total de trinta o número de minutos que gastaríamos na companhia um do outro.

Antes de sair da praia, naquele dia, alguém me disse que havia rumores de que Broyard era um “oitavão” (expressão que indica pessoa com descendência de etnias diferentes). Não dei muita atenção a isso ou, lá em 1958, dei pouco crédito. Em minha experiência, oitavão era uma palavra raramente ouvida fora do sul dos EUA. Não é impossível que eu a tenha procurado no dicionário mais tarde para compreender seu significado preciso.

Broyard era na verdade filho de dois pais negros. Não sabia disso, na época nem quando comecei a escrever A Mancha Humana. Sim, alguém havia me dito um dia, por acaso, que o homem era o filho de um “quadrarão” (outro termo do tipo) com uma negra, mas esse trecho de um disse me disse improvável foi tudo que eu jamais soube sobre Broyard.


Contudo, com o passar dos anos, não foram poucas as pessoas que se perguntaram se, por causa de certas feições suas aparentemente negras – seus lábios, seus cabelos, seu tom de pele – Mel Tumin, que era inflexivelmente judeu na Princeton avassaladoramente branca e protestante de seu tempo, não pudesse ser um afro-americano se passando por branco. Outro fato na biografia de Mel Tumin que nutriu minhas primeiras imaginações de A Mancha Humana.


Meu protagonista, o acadêmico Coleman Silk, e o escritor real Anatole Broyard, inicialmente se passaram por homens brancos nos anos antes do movimento pelos direitos civis começarem a mudar a natureza de ser negro na América. Os que escolheram se passar (essa palavra, aliás, não aparece em A Mancha Humana) imaginaram que não teriam de compartilhar as privações, humilhações, insultos, danos e injustiças que seriam mais do que prováveis de atravessarem seu caminho se eles fossem abandonar suas identidades exatamente como as haviam encontrado. Na primeira metade do século 20, não houve apenas Anatole Broyard – houve milhares, provavelmente dezenas de milhares de homens e mulheres de pele clara que decidiram escapar dos rigores da segregação institucionalizada sepultando para sempre suas vidas negras originais.


Finalmente, para se inspirar para escrever um livro inteiro sobre a vida de um homem, é preciso ter um interesse considerável pela vida do homem, e, sinceramente, embora eu tenha admirado particularmente o conto What the Cystoscope Said quando surgiu, em 1954, no correr dos anos eu não tive nenhum interesse particular em Anatole Broyard. Nem Broyard nem ninguém associado a ele teve alguma coisa a ver com minha imaginação em A Mancha Humana.

Escrever romances é para o romancista um jogo de faz de conta. Como a maioria dos outros romancistas que conheço, tão logo tive o que Henry James chamou de “o germe”, – neste caso, a desafortunada história de Mel Tumin em Princeton – comecei a fazer de conta e inventar Faunia Farley, Les Farley, Coleman Silk, os antecedentes da família de Coleman e outros cinco mil elementos biográficos que no conjunto formam o personagem ficcional no centro do romance.


Sinceramente, Philip Roth.





(OESP/19/102012 / Tradução de Celso Paciornik)


(Ilustração: Giger - machine ecrire)


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

DIE LEGENDE DER DIRNE EVELYN ROE / A LENDA DA PROSTITUTA EVELYN ROE, de Bertold Brech








Als der Frühling kam und das Meer war blau


Da fand sie nimmer Ruh'


Da kam mit dem letzen Boot an Bord


Die junge Evlyn Roe!


Sie trug ein härenes Tuch auf dem Leib


Der schöner als irdisch war –


Sie trug kein and'res Gold und Geschmeid'


Als ihr wunderreiches Haar!






"Herr Kapitän, lass mich mit dir ins heil'ge Land fahr'n


Ich muss zu Jesus Christ!"


"Du sollst mitfahr'n, Weib, weil wir Narr'n


Und du so herrlich bist!"


"Er lohn's Euch! Ich bin nur ein arm' Weib


Mein' Seel' gehört dem Herrn Jesu Christ!"


"So gib uns deinen süßen Leib


Denn der Herr, den du liebst, kann das nimmermehr zahl'n


Weil er gestorben ist!"






Sie fuhren hin in Sonn' und Wind


Und liebten Evlyn Roe –


Sie aß ihr Brot und trank ihren Wein


Und weinte immer dazu!


Sie tanzten nachts, sie tanzten tags


Sie ließen das Steuern sein –


Evlyn Roe war so scheu und so weich


Sie waren härter als Stein!






Der Frühling ging – der Sommer schwand


Sie lief wohl nachts mit zerfetztem Schuh


Von Raa zu Raa und starrte ins Grau


Und suchte einen stillen Strand


Die arme Evlyn Roe!


Sie tanzte nachts, sie tanzte tags


Da ward sie wie ein Leichnam matt


Und vom Kapitän bis zum jüngsten Boy


Hatten sie alle satt!






Sie trug ein seiden' Gewand auf dem Leib


Der siech und voll Schwielen war


Und trug auf der entstellten Stirn


Ein schmutzzerwühltes Haar!


"Nie seh ich dich, Herr Jesus Christ


Mit meinem sündigen Leib –


Du darfst nicht geh'n zu einer Hur'


Und bin ein so arme' Weib!"






Sie lief wohl lang von Raa zu Raa


Und Herz und Fuß tat ihr weh


Sie ging wohl nachts, wenn's keiner sah –


Sie ging wohl nachts in die See!


Das war im kühlen Januar –


Sie schwamm einen weiten Weg hinauf


Und erst im März oder im April


Brechen die Blüten auf!






Sie ließ sich den dunklen Wellen


Und die wuschen sie weiß und rein –


Nun wird sie wohl vor dem Kapitän


Im heiligen Lande sein!


Als im Frühling sie in den Himmel kam


Schlug Petrus die Tür ihr zu:


“Gott hat mir gesagt: 'Ich will nit han


Die Dirne Evlyn Roe!'"






Doch als sie in die Hölle kam


Sie riegeln die Türen zu


Der Teufel schrie: "Ich will nit han


Die fromme Evlyn Roe!"


Da ging sie durch Wind und Sternenraum


Und wanderte immerzu –


Spätabends durchs Feld sah ich sie schon geh'n


Sie wankte oft, nie blieb sie steh'n


Die arme Evlyn Roe!


Die arme Evlyn Roe!




Tradução de Paulo César de Souza:




Quando veio a primavera e o mar ficou azul

A bordo chegou

Com a última canoa

A jovem Evlyn Roe.


Usava um pano sobre o corpo

Que era bonito, bem vistoso.

Não tinha ouro ou ornamento

Exceto o cabelo generoso.


"Seu Capitão, leve-me à Terra Santa

Tenho que ver Jesus Cristo."

"Venha junto, pois somos tolos, e é uma mulher

Como não temos visto."


"Ele recompensará. Sou uma pobre garota.

Minha alma pertence a Jesus."

"Então pode nos dar seu corpo!

Pois o seu senhor não pode pagar:

Ele já morreu, dizem que na cruz."


Eles navegavam com sol e vento

E Evlyn Roe amaram.

Ela comia seu pão e bebia seu vinho

E nisso sempre chorava.


Eles dançavam à noite, dançavam de dia

Não cuidavam do timão.

Evlyn Roe era tímida e suave;

Eles eram duros e sem coração.


A primavera se foi. O verão acabou.

Ela à noite corria, os pés em sujas sapatilhas

De um mastro a outro, olhando no breu

Procurando praias tranquilas

A pobre Evlyn Roe.


Ela dançava à noite, dançava de dia.

E ficou quase doente, cansada.

"Seu Capitão, quando chegaremos

À Cidade Sagrada?"


O capitão estava em seu colo

E sorrindo a beijou:

"De quem é a culpa, se nunca chegamos

Só pode ser de Evlyn Roe."


Ela dançava à noite, dançava de dia

Até ficar inteiramente esgotada.

Do capitão ao mais novo grumete

Todos estavam dela saciados.


Usava um vestido de seda

Com uns rasgões e remendos

E na fronte desfigurada tinha

Uma mecha de cabelos sebentos.


"Nunca Te verei, Jesus

Com esse corpo pecador.

A uma puta qualquer

Não podes dar Teu amor."


De um lado para outro corria

Os pés e o coração lhe começavam a pesar:

Uma noite, já quando ninguém via

Uma noite desceu para o mar.


Isto se deu no fim de janeiro

Ela nadou muito tempo no frio

A temperatura aumenta, os ramos florescem

Somente em março ou abril.


Abandonou-se às ondas escuras

Que a lavaram por dentro e por fora.

Chegará antes à Terra Sagrada

Pois o capitão ainda demora.


Ao chegar ao céu, já na primavera

S. Pedro, na porta, a recusou:

"Deus me disse: Não quero aqui

A prostituta Evlyn Roe."


E ao chegar ao inferno

O portão fechado encontrou:

O Diabo gritou: "Não quero aqui

Abeata Evlyn Roe."


Assim vagou no vento e no espaço

E nunca mais parou

Num fim de tarde eu a vi passar no campo:

Tropeçava muito. Não encontrava descanso

A pobre Evlyn Roe.


(Poemas 1913-1956)


(Ilustração: Aaron Coberly)

sábado, 12 de janeiro de 2013

ALMOÇO MINEIRO, de Rubem Braga





Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas, um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca.

Falamos de vários assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi decaindo então, para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se até política. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram ideias a respeito do separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que, infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergéis, os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que um preto fazia funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento. Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário municipal. 

Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública , nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável. 

É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios. 

Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma encantadora linguiça de porco e talvez um pouco de farofa. Que importa? O lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. Por fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma ternura quase musical. Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo louro. Os torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído mas uniforme. E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve — do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e boas. 

Era o encanto de Minas. 


São Paulo, 1934.



(Morro do Isolamento)



(Ilustração: Nadir Aparecido Moro - paisagem mineira)

(Centenário de nascimento do autor)




quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

HAVIA CHUVISCO E MISTÉRIO, de Jack Keouac







Havia chuvisco e mistério no início da nossa viagem. Pude perceber que tudo aquilo seria uma grande saga nebulosa. "Iuupii", gritou Dean. "Lá vamos nós!" Inclinou-se sobre o volante e deu a partida; estava de volta a seu elemento natural, qualquer um podia perceber. Ficamos maravilhados, percebemos que estávamos deixando para trás toda a a confusão e o absurdo, desempenhando a única função nobre de nossa época: mover-se. E nos movíamos! Passamos como um raio pelas misteriosas placas brancas que, em algum lugar na noite de Nova Jersey, dizem SUL (com uma flecha) e OESTE (com outra flecha), e pegamos o caminho que apontava para o sul. Nova Orleans! Era o que reluzia em nossas mentes. Da neve suja da "frígida" e afrescalhada cidade de Nova York", como Dean a chamava, para o verdor e os aromas fluviais da velha Nova Orleans, nos confins rejeitados da América; e daí para o Oeste. Ed ia no banco de trás; Marylou, Dean e eu sentamos na frente e mantivemos uma conversação calorosa sobre a graça e a alegria de viver. Dean enterneceu-se, de repente: "Todos vocês, escutem aqui, raios: temos que admitir que tudo está ótimo e que não há nada no mundo com que nos preocuparmos, e devemos COMPREENDER que, na verdade, REALMENTE, não precisamos nos preocupar com ABSOLUTAMENTE NADA. Estou certo?" Todos concordamos. "Aqui vamos nós, estamos todos juntos... O que fizemos em Nova York? Está tudo perdoado." Todos tínhamos deixado algumas questiúnculas lá. "Ficou tudo pra trás, simplesmente por causa dos declives e de tantos quilômetros rodados. Agora vamos para Nova Orleans, para curtir o Old Bull Lee, e vai ser um barato, e agora escutem só esse sax-tenor perder a cabeça", aumentou o volume do rádio até o carro trepidar, "e ouçam como ele conta sua história, com total relaxamento e sabedoria".

Nos ligamos todos na música e concordamos. A pureza da estrada. A linha branca no meio da pista desenrolava-se e grudava-se na nossa roda dianteira esquerda como se estivesse colada ao nosso embalo. Dean arqueou o pescoço musculoso, vestindo apenas uma camiseta na noite invernal, e meteu o pé na tábua. Insistiu que eu dirigisse no tráfego de Baltimore para treinar; correu tudo bem, que ele e Marylou aos beijos e movimentos fogosos esbarravam no volante, me atrapalhando. Era uma loucura; o rádio estava quase estourando. Dean tocou bateria no painel até afundá-lo; fiz o mesmo. O pobre Hudson - nosso velho cargueiro para a China - estava sendo bem maltratado.

"Oh, cara, é demais!", berrou Dean. "Agora, Marylou, escuta, só meu bem, você sabe sou doidamente capaz de fazer tudo ao mesmo tempo e que tenho uma energia ilimitada, por isso, em São Francisco, nós temos mais que continuar vivendo juntos. Conheço o lugar ideal pra você - no fim da linha férrea principal -, estarei lá num piscar de olhos a cada dois dias, por doze horas de enfiada, e, cara, você sabe bem o que nós somos capazes de fazer em doze horas, minha querida. Enquanto isso, continuo morando com Camille como se nada estivesse acontecendo, sacou? Ela não vai ficar sabendo. A gente pode fazer isso, já fizemos antes." Para Marylou estava tudo bem, ela estava mesmo a fim da cabeça de Camille. O combinado era que Marylou iria transar comigo em risco, mas então comecei a pressentir que eles iam ficar grudados e eu seria deixado no olho da rua, abandonado na outra extremidade do continente. Mas para que pensar nisso quando se tem pela frente toda a vastidão dourada da Terra e acontecimentos imprevisíveis de todos os tipos estão à espera, de tocaia, para te surpreender e te fazer ficar satisfeito simplesmente por estar vivo para presenciá-los?




(On the road - Pé na estrada, tradução de Eduardo Bueno)




(Ilustração: Mondrian Piet - summer night)









domingo, 6 de janeiro de 2013

A SERRA DO ROLA MOÇA, de Mário de Andrade









A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...

Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.

Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E se puserem de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.

Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.

As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.

Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos,
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.

Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz ...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.

E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.



(Ilustração: foto Serra do Rola-Moça; autoria não identificada)



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

OS MÍNIMOS CARAPINAS DO NADA, de Autran Dourado







No Ponto, na farmácia de seu Belo, no armazém de secos e molhados de seu Bernardino, mesmo no final das tardes de conversação distinta do Banco Duas Pontes, no gabinete do nobre de alma e de gestos Vítor Macedônio (o belo varão, bem-nascido e gentil-homem), que reunia em torno de si (ali se servia do melhor conhaque francês) os potentados do café como o coronel Tote ou ilustres desocupados como seu Bê P. Lima, maledicente e boa-vida, mas de berço, enfim nas várias ágoras da cidade onde se comerciava a novidade, a imaginação, o ócio e o tédio...

Nas janelas das casas terreiras de grandes e pesadas janelas de marco rústico, baixo e retangular, junto das calçadas, onde se ficava sabendo de tudo pelos passantes que iam e vinham (como era bom se debruçar e bater dois dedinhos de prosa ou fugir para dentro, se quem apontava na esquina era um maçante), de tudo se sabia sem carecer de estafeta e selo, as notícias e novidades: quem andava pastoreando quem, aquela que tinha caído na vida e agora era carne nova, estava de rapariga na Casa da Ponte, na testa de quem apontara o broto de futura e soberba galhada... 

Mesmo nas nobres sacadas de ferro, nas janelas de ricos sobrados, podia-se ver a qualquer hora do dia, no enovelar lento do tempo, os carapinas do nada, ocupados na gratuita e absurda, prazerosa ocupação. 

Eram os carapinas do mínimo e do nada, os devoradores das horas, insaciáveis Saturnos, dizia o sapientíssimo, alambicado, precioso dr. Viriato. Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo, vinha por sua vez o proverbial, memorioso, eterno, pantemporal noveleiro Donga Novais, uma das poucas pessoas a não se entregar inteiramente ao vício e paixão da cidade. É porque para ele a entidade metafísica do tempo não existe (como para os platônicos que, ao contrário dos hebreus, não tinham o senso da historicidade, lidavam com o puro universal), passado, presente e futuro são uma coisa só, retrucava o dr. Viriato súbito espantosamente aderindo à fiação e tecelagem dos nossos mitos. Ele que era um cientista exaltado, um agnóstico convicto, de dialético linguajar maneirista que demandava precioso raciocínio, imaginação, dicionário.

Não que o dr. Viriato tivesse as mãos ocupadas no admirável passa-tempo (santo remédio para a ansiedade e a angústia), que demandava habilidade, precisão e paciência, a que se dedicavam aristocraticamente potentados e pingantes que só tinham de seu serem bem-nascidos. Tão alto-crítico ele era, jamais se permitiria aquela vamos dizer arte, paixão antiga de Duas Pontes. De uma certa maneira ele colaborava era na criação de nossos mitos, mesmo negando-os, racionalista que ele se dizia e era. 

Quando, quem inventou tão sublime vamos dizer desocupação e alívio do espírito, perguntava o dr. Viriato a seu Donga Novais, sapiência viva do nosso tempo e história, os fabulosos, inconclusos e aéreos anais. Você, Donga, é o Sócrates da nossa pólis. Não sei, dizia desapontando à gente o nosso macróbio cidadão Donga Novais: amor e ócio são maus negócios. Eu acho que deve ser invenção de índio, que enfeitava caprichosamente as suas flechas que, partidas do arco, não voltavam mais. Mas eles não estão enfeitando nada, dizia por sua vez o dr. Viriato. Os puristas, os cultores do absoluto, os escribas da idéia, dos protótipos e arquétipos ideais, os minúsculos carapinas do nada. 

Seu Donga ficou um tempo parado, assuntando, ideando. Não é que o senhor tem razão, dr. Viriato? Sim, dizia o médico, porque a finalidade mágica dos bisões e demais caças pintadas nas cavernas pelo homem de Cro-Magnon... Seu Donga desatou a rir, não tinha mesmo jeito aquele dr. Viriato, comia brisas com pirão de areia. 

Porque havia três categorias de livres oficinas que se dedicavam à nobre arte de desbastar e trabalhar a madeira com o simples canivete e um ou outro instrumento auxiliar feito as latinhas que faziam as vezes do compasso. Três, porque não se podia considerar como cultores da Idéia, do sublime e do nada, os carpinteiros e marceneiros, que se utilizavam da madeira e de instrumentos mais eficientes como o formão, o cepilho, as brocas, e tudo sabiam de sua arte, ofício e meio de vida. São os nossos sofistas, dizia o dr. Viriato, que pensavam ser possível ensinar a arte e recebiam pelo seu trabalho e tinham as mãos calosas. 

A primeira categoria quase se podia, se não fosse o nenhum pagamento, considerar uma corporação de operários, que faziam de sua técnica e imaginação um ofício. Se vendiam o produto, não eram bem vistos pelos autênticos carapinas do nada, os sublimes; podiam começar a receber encomendas como qualquer trabalhador, o que se considerava degradante. 

Não há dúvida que o elogio é uma forma sublimada de remuneração e só se remunera operário, o que nem de longe se podia dizer deles (se ofendiam) que nunca pegaram no pesado. Eles e seus ancestrais, patriarcas absolutos, sempre estiveram do lado do cabo do chicote. 

Eram os fabricantes de carrinhos de bois, caminhões, mobilinhas, monjolos de sofisticada feitura e perfeita serventia, usados para compor presépio. Em geral exerciam a sua ocupação ociosa em casa, se serviam de instrumentos caseiros para auxiliar o trabalho do canivete, e chegavam a utilizar outros materiais que não a madeira, como espelhinhos, pregos, folhas-de-flandres. 

A segunda categoria, os marceneiros da nobre arte. Era exatamente aquela, sem metáfora ou imagem, de que falou o sábio e intemporal rifoneiro Donga Novais - os que literalmente enfeitavam cabo de colher de pau. Às vezes se dava o caso de que a colher ficava tão bem-feitinha e artística, com delicado e sutil rendilhado, labiríntica barafunda, de quase absoluta nenhuma serventia, que a peça passava de mão em mão por toda a parentela, vizinhos e mesmo estranhos. Os elogios que recebia valiam por uma paga ao artista, que acabava por consentir (queriam) que a mulher ou a filha colocasse a colher na parede, para nunca ser usada. 

O perigo dessa categoria era o autor, por vaidade ou outro motivo subalterno, gravar o seu nome na concha ou no cabo da colher. Como o primeiro artista da antiguidade que gravou numa obra sua a frase "Felix fecit", inaugurando assim o culto da personalidade, tão contrário aos artistas do gótico, que nunca tinham a certeza de verem concluídas as catedrais que iniciavam, e eram anônimos, senão humílimos oficiais. 

O coronel Sigismundo era exemplo típico dos oficiais da segunda categoria. Era não só meio destelhado e quarta-feira, mas verdadeira alimária. Dele constavam dos anais fantásticas proezas nos seus carros sempre novos e lustrosos, se dando ao luxo e à extravagância de às vezes vestir a sua brilhosa e engalanada farda da Guarda Nacional, que não mais existia, e passear de carro pela cidade. 

Tudo se desculpava no coronel Sigismundo, por respeito ou medo. Ele se deu ao máximo, como nos tempos de casa-grande e senzala, de oferecer não uma colher de pau, mas palmatória de manopla por ele rendilhada, verdadeiro instrumento de suplício, ao major Américo, diretor e dono do Colégio Divino Espírito Santo, de terrível e acrescentada memória, capaz de desasnar a própria alimária. O velho major da Guarda Nacional recuou, os tempos agora eram outros. O gesto de ofertar e a utilidade do produto desqualificavam muito o coronel Sigismundo. Podia-se argumentar em seu favor que uma colher de pau finamente trabalhada para remexer panela, o bom dela, após o trabalho do artista, era não servir para coisa nenhuma, puro deleite. 

E agora se apresenta a pura, a sublime, a extraordinária terceira categoria. Só aos seus membros, peripatética academia, se podia aplicar estes qualificativos: divinos e luminosos, aristocráticos artífices do absurdo. Eram como poetas puros, narradores perfeitos, cepilhando e polindo as vazias estruturas do nada. A terceira categoria era o último estágio para se atingir a sabedoria e a salvação. 

Às vezes se dava o caso de que o artista (e isso não se ensina, ao contrario do que afirmava os sofistas, dizia o Dr. Viriato, emérito teórico do vazio e do absoluto) vinha diretamente da primeira categoria, e alcançava a plenitude do nada , era um dos amados dos deuses, para os quais o grande, senão único pecado é a ignorância. Não se atingia essa categoria (era raríssimo o caso de um jovem a ela pertencer; falta à juventude ócio e paciência) senão a velhice, quando se alcançava a plenitude da arte. 

Vovô Tomé era um desses casos raros do artista que passa veloz e diretamente da primeira à terceira categoria. Atribuem a sua proeza e sua mestria no ofício ao sofrimento, que é uma das vias para se atingir o absoluto e a glória. Ele os alcançou, e isso consta dos anais do vento, na última velhice, quando atingiu, de apara em apara, cada vez mas longe e mais longas e mais finas, enroladinhas que nem cabelo de preto, o etéreo e o que lhe restou na mão foi um minúsculo pedacinho de pau. Na mesa, a seu lado, no círculo de luz do cone do abajur, um monte de finíssimas aparas , nenhuma delas partida. Uma obra divina, foi o que disse o famigerado artista Bê P. Lima, quando viu o tiquinho de nada que restou. Falou quem pode, disse seu Donga Novais da sua aérea fantástica e insone janela, almenara da cidade. Um mestre e guru nirvântico, acolitou o Dr. Viriato. 

Para atingir esse estágio, o noviço carece de muita paciência, aplicação, humildade, modéstia. É preciso enfrentar a maledicência dos ocupados, vencer a delicadeza e timidez, correr o risco de se ferir. 

O mais elevado ideal dos membros dessa categoria era se dedicar a tão sublime ocupação sentado numa roda, prestando atenção no desenrolar da conversa vadia e mesmo dela participando com um ou outro aforismo ou ponderação, sem despregar os olhos da mecânica ocupação. Conta-se a fantástica proeza de um dos sacerdotes do culto, o inefável seu Bê P. Lima, que começou desbastando um grande pedaço de madeira e foi indo, de caracol, sem pressa, preciso, cuidando do seu gratuito ofício, o ouvido porém atento a conversa, que esquentava, e seu Bê não queria perder nada, cujo tema principal era comportamento de certa dama de nossa cidade. 

E de repente se suspendeu a conversação, todos voltados para ele. Seu Bê se aproximava do fim, faltava-lhe uma última e mínima apara para atingir o nada. O próprio seu Belo veio lá de dentro do laboratório e ficou à espera. Então aconteceu. Não se podia dizer se o que ficou na mão de seu Bê fosse ou não minúsculo caracol que ele soprou. Como num circo ou num concerto, após sustenida atenção, a respiração suspensa, a roda prorrompeu num coro de palmas.

Seu Vítor Macedônio, que passava pela farmácia, diante do silêncio da roda, parou. Não se dedicava ao nobre ofício, mas vendo a atenção de todos, também ele aderiu à rodada de palmas. Seu Bê, me faça o favor de comparecer no banco lá pelo fim da tarde, para comemoramos o evento. Mais do que o normal, ele seria generoso com seu conhaque francês. 

Acredito com os outros que o móvel inicial que levou vovô Tomé à nobre ocupação de pica-pau tenha sido o sofrimento. O suicídio de tio Zózimo, a loucura mansa de tia Margarida, um desastre econômico de papai que o obrigou a vender a Fazenda do Carapina para que não lhe tomassem a casa. Mas muito antes da terrível morte do tio Zózimo ele já se ocupava em fazer a canivete um ou outro objeto de alguma serventia. A gratuidade mesmo de magníficos caracóis ele só viria a atingir depois da morte por enforcamento de tio Zózimo. 

Mas antes mesmo do primeiro desses tristes acontecimentos vovô Tomé já se dedicava a manter as mãos ocupadas. Acredito em parte que foi a tentativa de manter as mãos ocupadas para vencer a opressão e a angústia que o levou a se dedicar a pequena tarefas caseiras. Porque não lhe bastava fazer um longo, caprichado e lento cigarro de palha, tarefa em que era perito. 

Os outros podem estar certos, e eu mesmo recuaria no tempo (não conhecia senão de crônica vovô Zé Mário, pai de vovô Tomé), se pudesse contar a historia que num dia de maior solidão e sufocamento, sob a maior promessa de sigilo, me contou vovô Tomé. Mas é um caso longo não é para agora. 

Não , não foi só isso. Havia um lado menino muito bom em vovô Tomé. Eu me lembro do entusiasmo em que ele ficava quando da chegada de um circo à nossa cidade, mesmo que fosse circo de tourada. E eu muito criança ia com ele, ficava no seu camarote. Só depois é que o abandonei para estar com meus amigos mais velhos lá no alto das arquibancadas. 

Me lembro (e isso mamãe e vovó Naninha confirmam) dos primeiros passos de vovô Tomé na arte de picar pau. Eu estava sentado no chão de tábuas lavadas e secas da sala, cortando umas figuras de umas revistas velhas. Eram de uma coleção de tia Margarida. 

Quando vovô Tomé viu e me chamou. João, deixa isso de banda, guarde as revistas onde você tirou, venha comigo, tive uma idéia. Vamos ao armazém de seu Bernardino buscar material. 

Ele me deu a mão e eu estava muito feliz. Não era meu aniversário quando, como fazia com os netos e afilhados, ele nos levava ao armazém de seu Bernardino para comprar um sapato de ver Deus. 

No armazém, depois de uma conversa breve e formal com seu Bernardino, vovô perguntou se ele podia nos arranjar um caixote vazio. Seu Bernardino se espantou com o pedido, vovô ainda não era da confraria. Quer que eu mande levar, perguntou seu Bernardino. Se me fizessem a bondade... Eu tive um ímpeto, disse pode deixar que eu levo. Seu Bernardino olhou pra mim, olhou para vovô Tomé, e disse como ficamos, seu Tomé? Mande levar, disse vovô. E o preço da peça e do carreto, por favor. Seu Bernardino disse brincando nem o preço de uma das suas fazendas bastaria. Então lhe mandarei no fim da safra, uma saca do melhor café tipo sete. Ora, seu Tomé, e eu ia acreditar?! Não é pelo caixote, é por nossa velha amizade, disse vovô Tomé. 

Aprendi então um dos preceitos do seu código de aristocracia rural. Eu e ele não podíamos fazer qualquer trabalho manual, a nossa posição nos vedava. O primeiro foi (como esquecer!) quando soube que o delegado seu Dionísio tinha mandado dar uma surra num preso para ele confessar. Em homem não se bate, é melhor matar, por respeito à sua condição de homem, é mais digno. Outro preceito do seu código de honra aprendi muito menino, quando uma vez, a mando de mamãe, lhe fui tomar bênção. Ele me recusou a mão, disse homem não beija mão de homem. Era um comportamento raro em Duas Pontes, cidade de velhos patriarcas. 

Nem bem chegamos em casa e veio o empregado com o caixote. Era um caixote de madeira branca que, pelos dizeres e pelo cheiro, se viu que tinha servido para embalar bacalhau, madeira das estranjas. 

Vovô tirou o paletó, desabotoou o colete, afrouxou o colarinho e começou a fazer um caminhãozinho para mim. Para quem parecia estar usando as mãos pela primeira vez, não estava mal. No final da tarde, a obra estava pronta. Tinha ficado um tanto rústica, mas eu não disse nada a vovô Tomé, para não atrapalhar a sua satisfação. 

No outro dia dei com vovô Tomé aparando pachorrentamente um pedaço de pau. Quê que o senhor está fazendo, perguntei. Uma colher de pau para Naninha, ela me pediu, disse ele meio envergonhado, talvez pela sua utilidade doméstica. O senhor parece que não está gostando, não é, perguntei. Para lhe ser franco, não, disse vovô. O que gostaria de fazer, um monjolinho, indaguei. Não, gostaria de fazer nada, disse ele. Nada, à toa? Disse eu meio desapontado. Não, fazendo absolutamente nada, quer dizer, ir aparando vagarosamente a madeira até não restar mais nada. Assim feito seu Bê, perguntei. Vovô riu, achava muita graça nas bestagens de seu Bê P. Lima, nas histórias obscenas que ele contava, quando não tinha menino por perto, na presença de menino e de mulher ele fechava a cara, metia a viola no saco, se dava ao respeito. Bê é um artista do nada, por isso é um homem feliz, disse. 

E vovô Tomé foi ficando um perito na arte dos caracóis. Demorava muito o aprendizado, ele porém não tinha pressa. Pra quê? dizia, não falta matéria-prima neste mundo. E brincando, haja povo na terra para desbastar a floresta amazônica. Às vezes fico imaginando o povo todo do mundo picando pauzinho. Seria a paz e a união dos homens. 

Eu tinha um certo medo de que vovô enjoasse do gratuito ofício e virasse um teórico do não fazer nada, absolutamente nada. Seu Bê, por exemplo, não tinha dessas cogitações, apenas ia aparando as suas fitas e caracóis. 

Vovô não tinha a pachorra e a tranquilidade de seu Bê. Era exigente, ia ao armazém de seu Bernardino escolher as melhores madeiras, havia uma certa qualidade de pinho que era em si uma beleza. A madeira não podia ter olhos nem veios muito acentuados, nem mistura de tons. Quanto mais lisa e uniforme, melhor. Quem tem pressa não faz nada, dizia ele já agora conceituoso. Ele tinha a sua poética, a diferença entre ele e seu Bê é que seu Bê não tinha poética nenhuma, era um puro artista do nada. 

Com o passar do tempo, vovô Tomé viu que se aprende até certo ponto, depois é desaprender de tal maneira que cada dia se tenha diante de si o puro nada. 

E os anos passaram e eu me afastei de vovô Tomé. Fui para Belo Horizonte, onde fiz o meu curso superior sustentado por ele. É com remorso que me lembro de que lhe escrevi apenas umas minguadas cartas. Em nenhuma delas perguntei como ele ia na sua velha arte. Fiquei sabendo por uma carta de vovó Naninha que ele tinha morrido. 

Voltei imediatamente a Duas Pontes. Vovó Naninha disse que ele morrera de pé, feito queria, sem curtir leito de doente, à grande mesa da sala de jantar, tirando um enorme caracol. Tinha encontrado o seu nada. 

Vovó Naninha me deu o seu canivete preferido. Não sei o que fazer com ele, é de outra maneira que procuro o meu nada. 



(Os cem melhores contos brasileiros do século)




(Ilustração: Dalí - The Persistence of Memory)