sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O VELHO, QUANDO EU NASCI..., de Reinaldo Moraes







O velho, quando eu nasci, tinha a mesma idade que eu tenho hoje: 42. Casou-se tarde, aos 39, mas só uma vez, pra vida toda. Seu primeiro emprego foi no Banco do Brasil, onde entrou por concurso aos 18 anos e de onde nunca mais saiu até se aposentar. Uma só mulher, um só emprego. A vida toda. Largava o banco no fim da tarde e ia direto para casa. Casa-trânsito-banco-trânsito-casa. Era a vida dele – ávida toda. Nas manhãs de sábado, gostava de bater perna com minha mãe no recém-inaugurado shopping Iguatemi, na Faria Lima, o primeiro da cidade. Um domingo ou outro saíam os dois pra visitar algum parente. Morreu de câncer no intestino uns três anos depois de se aposentar, sem ter realizado o sonho de morar na praia. Minha mãe foi atrás dele menos de dois anos depois: derrame fulminante.


Era um homem de poucos prazeres e muitos desgostos, meu pai. Não que fosse um asceta, nem nada. Só não acreditava que valesse a pena buscar prazeres na vida. Não dava a mínima para qualquer forma de arte, nem mesmo cinema. Quando comecei a dizer que queria fazer cinema, o tempo fechou em casa. “Cinema, é?”, ele disse. “Por que não vai fazer balé duma vez?” Comer também não era programa. Mandava o trivial caseiro da mulher e se dava por satisfeito. Deve ter comido muito mais chuchu cozido que pizza e feijoada em toda a sua carreira gastronômica. Seu grande luxo sensorial era tomar duas doses de uísque sentado na cozinha de papo com a velha ao voltar do trabalho à noite. No que começava a bocejar minha mãe punha um prato de sopa na frente dele. O velho comia reclamando que o meu irmão não saía do quarto nunca, nem pra jantar com a família.



“Isso não é normal, Edinha. O que tanto esse menino fica fazendo naquele quarto, me diga?”



Passei a adolescência toda ouvindo isso. Minha mãe, Edwiges de batismo, respondia que achava normal um jovem ter um temperamento mais retraído, que cada um é de um jeito, ninguém é obrigado a sair por aí atrás de farra e encrenca, “feito o Zeca. É com esse que você deve se preocupar, Carlos José. Deixa o coitado do Rubinho em paz”.



Daí, meu pai terminava a sopa, punha uma tampa de silêncio sobre o assunto e ia ver o noticiário na tevê, afundado numa cadeira-do-papai reclinável. Ali ficava ruminando em voz alta seu desgosto pelo “estado desse país” e pelos dois filhos “anormais” que ele tinha, um o avesso piorado do outro: o Rubens afundado em Fernando Pessoa e Sartre, eu na balada noite adentro.



O velho vivia em litígio permanente com o mundo. Tava tudo errado, a começar pelo banco, onde nunca achou espaço para uma promoção digna desse nome. Quando surgia uma boa oportunidade, abola sempre batia na trave e era outro que subia. São Paulo, então, tinha virado “uma tristeza” nas mãos de tanto bandido, vagabundo e “dessa baianada” que não parava de chegar na cidade “com uma mão na frente e uma peixeira atrás, disposta a tudo. Longe de mim qualquer preconceito”, ele frisava. “Mas por que não ficam lá na terra deles trabalhando pra melhorar de vida? Veja os israelenses. Transformaram aquele deserto da Palestina num oásis!”



Meu pai se achava “um democrata” e não escondia sua admiração pelo general Geisel, “um homem íntegro”, único milico que valia alguma coisa no exército. “Dessem mais um mandato para esse homem, e o Brasil ia ver só. Ele punha ordem nisso aqui. Mas não, escolheram aquele cavalariano bronco no lugar dele. Antes tivessem colocado o cavalo do homem na presidência. Francamente, o Brasil tá pedindo pra não dar certo.”



Aí vinha a novela, da qual minha mãe só reclamava – “é um nhenhenhém que não acaba mais” – sem jamais perder um capítulo. E não tinha noite em que não vertesse ao menos uma lágrima, sob o alto patrocínio da margarina Doriana e das Lojas Arapuã. No meio do primeiro bloco da novela o bancário Carlos José Ribeiro Filho entrava em “apneia estridulosa”, como ele chamava sua “doença respiratória” que o fazia roncar feito um mamute bronquítico. Minha mãe estava acostumada. Só aumentava um pouco o volume da tevê pra não perder as mesmas frases imortais, com pouquíssimas variações, que o Tarcísio Meira tinha a dizer todas as noites pra Regina Duarte.



Finda a novela, a vida sacudia o veio, que acordava rosando de mau humor, punha-se de pé com enorme esforço e ia arrastando os chinelos até o banheiro de baixo, seu preferido, onde mijava e peidava estridulosamente, antes de escalar os degraus da escada de dois lances que levava aos quartos no sobrado da Vila Mariana onde a gente morava. Às vezes se lembrava de dizer boa-noite à velha, em geral quando já estava no segundo lance da escada e, portanto, de cabeça e tronco não mais visíveis. Eram suas pernas que davam boa-noite.



No seu último dia de trabalho no banco fizeram uma festa-surpresa pra ele depois do expediente. Meu pai saiu de casa nesse dia com seu melhor terno. Queria se apresentar nos conformes na festa-surpresa com a qual ele contava desde o dia em que requereu aposentadoria. Consta que até o subdiretor administrativo da regional-sul do BB apareceu para abraçar meu pai e lhe dar em mãos a lembrancinha de despedida em nome do Banco do Brasil: uma caneta-tinteiro Shaffer’s folheada a ouro, tampa e corpo, gravada com o nome dele, só que escrito errado: José Carlos Ribeiro, que é o meu nome, em vez de Carlos José, o nome dele. Cagada de alguma secretária encarregada de comprar e mandar gravar o nome na caneta. A Shaffer’s ficou mofando dentro do estojo no fundo de uma gaveta. Ele nunca usou aquilo no pouco tempo que desfrutou da vida de aposentado. Muito menos pensou em dar a caneta pra mim, que, afinal de contas, tinha meu nome inscrito nela. Só quando minha mãe morreu é que a caneta veio parar na minha mão. Dei a Shaffer’s de presente prum traficante num acesso de generosidade cocaínica e nunca mais vi nem caneta nem traficante. O sobrado familiar numa vilinha que saía da rua Pelotas já veio abaixo faz tempo também, cedendo terreno a um edifício de consultórios médicos.



Não sei o que me deu de desatar essas histórias empoeiradas, assim, de repente. No filme que pretendo tirar da história da surbrâmane não pretendo puxar esse lampejo retroativo familiar, como é óbvio. Nada a ver. Mas, só pra completar minha rica biografia, acrescento que entrei na escola de cinema da USP em 83. Meu irmão também entrou na USP, em filosofia, dois anos antes de mim. Nenhum de nós se formou, por motivos diversos. Eu, porque logo arranjei um trampo de cameraman numa pequena produtora de um amigo, saí de casa, caí na vida, parei de ir na faculdade, virei sócio do amigo, brigamos, falimos, brigamos mais um pouco, fui trabalhar em outro lugar, e tal. Meu irmão resolveu sair da vida por conta própria logo no primeiro semestre da filosofia. Até hoje não sei direito por que o Rubens se matou. Alguma coisa que ele leu naqueles filósofos e poetas pessimistas não desceu bem no espírito, conforme meu pai se cansara de advertir anos antes. Pelo menos meu irmão acabou saindo duma vez por todas daquele quarto onde vivia trancado. Quando ele morreu, entre lá e me obriguei a ler todos aqueles livros, num desafio à morte tinha levado meu irmão, coisa que só consigo sacar hoje. Já tinha filado alguns daqueles “buqãs”, como ele dizia e escrevia, vários deles sobe o estímulo do próprio Rubens. “Lê isso aí que é a tua cara”, ele dizia, sem olhar pra minha cara. Trópico de Câncer, On the Road, Paraísos artificiais, Junky e o caralho. Bom, se não li tudo, li um monte. Poetas, romancistas massudos, poetas contorcionistas, contistas minimalistas (um tal de Raymond Carver era ótimo), cronistas (Rubens Braga será sempre o maior), historiadores, biógrafos, ensaístas disso e daquilo e o diabo. Aprendi francês com uma bolsa da Alliance Française (não me pergunte como a ganhei, senão vou ter que contar sobre a professora Sévèrine e seu método Tavistock de sentir o aluno) pra ler Baudelaire, Rimbaud, Cioran (esse ele venerava, “o pessimismo lúdico”, Rubens dizia), e inglês com uma canadense que trocava flauta na extinta Filarmônica, pra encarar o Miller, que ele adorava tanto, justo ele, o tímido, venerando um fodão. Tadinho do Rubens. Senti muita falta da estimulante ausência dele. Te juro, não é jogo de palavra. O Rubinho tinha um jeito todo especial de nunca estar ali na sua frente. Só que, no dia seguinte, você se lembrava de cada palavra que ele tinha dito, tudo de uma inteligência, tudo importante. O Rubinho nunca esteve em nenhum lugar onde viver não lhe doesse – como deve ter dito mais de mil vezes o Fernando Pessoa, seu ídolo máximo em matéria de desencanto poético com o mundo. Seja lá como for, a morte do meu irmão me jogou no mundo dos livros. Um sofá e um livro na mão: o grande pretexto pra não se fazer picas. Quando entrei em cinema na ECA, botei fácil banca de intelecta pra cima de muita girlzinha xixilenta filha d’algo. Comi muitas delas, além de genuínas cabeçonas (duas professoras, inclusive, da fac), e mesmo várias coitadas gostosas e totalmente acéfalas, apenas jogando pra cima delas os leros fundamentais sugados da biblioteca do Rubens. Frases de efeito, conceitos impressionantes. Uso isso até hoje. Devo tudo a ele, meu irmão, o Rubens, e não é pouco. Descanse em paz, mano.



De resto, se você quiser saber, nasci em 1964, no dia 31 de março. Quer dizer, vim ao mundo no marco zero da ditadura. Lembro muito bem que em todos os meus aniversários o céu era cruzado a toda hora por jatos militares em formação, que nem no dia 7 de setembro. Alguns desses aviões deixavam um rastro de vapor no espaço que eu lia como um “parabéns pra você” em forma linear. Eu vibrava com aquilo. Meu irmão me mandava calar a boca e deixar de ser idiota, que aqueles aviões pertenciam “à ditadura”. Não sei o quanto consegui deixar de ser idiota, mas continuo adorando ver aviões de guerra em formação no céu, embora não tenha visto mais nenhum no meu aniversário.





(Pornopopeia)


(Ilustração: Felix Nussbaum – my father)


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

DE SÚBITO CESSOU A VIDA, de Henriqueta Lisboa







De súbito cessou a vida.
Foram simples palavras breves.
Tudo continuou como estava.


O mesmo teto, o mesmo vento,
o mesmo espaço, os mesmos gestos,
Porém como que eternizados.


Unção, calor, surpresa, risos
tudo eram chapas fotográficas
há muito tempo reveladas.


Todas as cousas tinham sido
e se mantinham sem reserva
numa sucessão automática.


Passos caminhavam no assoalho,
talheres batiam nos dentes,
janelas se abriam, fechavam.


Vinham noites e vinham luas,
madrugadas com sino e chuva.
Sapatos iam na enxurrada.


Meninas chegavam gritando.
Nasciam flores de esmeralda
no asfalto! mas sem esperança.


Jornais prometiam com zelo
em grandes tópicos vermelhos
o fim de uma guerra. Guerra?...


Os que não sabiam falavam.
Quem não sentia tinha o pranto.
(O pranto era ainda o recurso
de velhas cousas coniventes.)


Nem o menor sinal de vida.
Tão-só no fundo espelho a face
lívida, a face lívida.



(A Face Lívida,1945)



(Ilustração: Fritz Aigner)



segunda-feira, 26 de setembro de 2011

POEMAS DE UM ÚNICO VERSO, de Enrique Vila-Matas








Tirou, da mesma gaveta da qual havia tirado o fumo, uma pasta azul que continha uma grande etiqueta em que se podia ler: "Arquivo de poemas abandonados".


Lembro-me muito bem das cinquenta folhas em que havia escrito com tinta vermelha os poemas que abandonava, poemas que, de fato, jamais passavam do primeiro verso; lembro-me muito bem de algumas dessas folhas de um único verso:



Amo o twist de minha sobriedade.



Seria fantástico ser como os outros.



Não vou dizer que um sapo seja.



Tudo aquilo me impressionou muito. Pareceu-me que Pineda fora preparado por seus pais para triunfar, era muito adiantado e original em tudo e, além disso, sobrava-lhe talento. Eu estava muito impressionado (e queria ser como ele), mas tentei fazer com que ele não percebesse tudo isso e adotei um gesto quase de indiferença, ao mesmo tempo em que lhe sugeria que faria bem se ocupando de terminar aqueles poemas. Ele sorriu com grande suficiência e me disse:



- Como se atreve a me dar conselhos? Eu gostaria de saber o que é que você lê, lembre que ainda não me disse. Acho que você lê gibis, o Capitán Trueno e tudo isso, ande, fale a verdade.



- Antonio Machado - respondi, sem tê-lo lido, só gravei esse nome porque íamos estudá-lo.



- Que horror! - exclamou Pineda. - Monotonia da chuva na vidraça. Os colegiais estudam...



Foi até a biblioteca e voltou com um livro de Blas de Otero, que tratava de España.



- Tome - disse. - Isto é poesia.



Ainda guardo esse livro, porque não o devolvi, foi um livro fundamental em minha vida.



Depois, mostrou-me sua ampla coleção de discos de jazz, quase todos importados.



- O jazz também lhe inspira versos? - perguntei.



- Sim. Quer apostar que em menos de um minuto eu componho um?



Colocou uma música de Chet Baker - que, a partir daquele dia, passaria a ser meu intérprete favorito - e permaneceu durante alguns segundos totalmente concentrado; de novo, com os olhos voltados para dentro, para uma remota distância. Passados esses segundos, como se estivesse em transe, pegou uma folha e, com a esferográfica vermelha, anotou:



Jeová enterrado e Satanás morto.



Conseguiu me deixar fascinado. E essa fascinação iria num crescendo ao longo de todo aquele curso. Transformei-me, tal como havia desejado, em sua sombra, em seu fiel escudeiro. Eu não podia me sentir mais orgulhoso de ser visto como o amigo de Pineda. Alguns até deixaram de me chamar de corcunda. Aquele ano do segundo grau está ligado à lembrança da imensa influência que ele exerceu sobre mim. A seu lado aprendi uma infinidade de coisas, mudaram meus gostos literários e musicais. Dentro de minhas lógicas limitações, até me sofistiquei. Os pais de Pineda como que me adotaram. Comecei a ver minha família como um conjunto infeliz e vulgar, o que me causou problemas: ser, por exemplo, tachado de "ridículo filhinho de papai" por minha mãe.



No ano seguinte, deixei de ver Pineda. Por motivos profissionais de meu pai, minha família transferiu-se para Gerona, onde passamos alguns anos, e lá fiz o pré-universitário. Ao voltar a Barcelona, matriculei-me em Filosofia e Letras, convencido de que ali reencontraria Pineda, mas ele, para minha surpresa, matriculou-se em Direito. Eu escrevia cada vez mais versos, fugindo de minha solidão. Certo dia, em uma assembléia geral de estudantes, localizei Pineda, fomos comemorar em um bar da praça de Urquinaona. Vivi aquele reencontro com a sensação de estar vivendo um grande acontecimento. Da mesma forma que nos primeiros dias de nossa amizade, meu coração disparou, vivi tudo aquilo de novo como se estivesse desfrutando de um grande privilégio: a imensa sorte e felicidade de estar em companhia daquele pequeno gênio, eu não tinha dúvidas de que um grande futuro o esperava.



- Continua escrevendo poemas de um único verso? - perguntei-lhe, para perguntar algo.



Pineda tornou a rir como antes, como um príncipe de um conto medieval que estivesse entrando em contato com um camponês e se esforçasse em rebaixar-se para se parecer com este. Lembro muito bem que tirou de seu bolso papel de cigarro e se pôs a escrever, sem pausa alguma, um poema completo - do qual curiosamente lembro apenas o primeiro verso, sem dúvida impressionante: "a estupidez não é meu forte" -, que pouco depois transformou em um cigarro que fumou tranquilamente, quer dizer, fumou seu poema.



Quando terminou de fumar, olhou-me, sorriu e disse:



- O importante é escrevê-lo.



Pensei ver uma elegância sublime naquela sua maneira de fumar o que criava.



Disse-me que estudava Direito porque Filosofia era uma carreira apenas para moças e monjas. E, dito isso, desapareceu, deixei de vê-lo por muito tempo, por muitíssimo tempo, ou melhor, às vezes o via, mas sempre em companhia de novos amigos, o que dificultava a relação, a maravilhosa intimidade que havíamos tido em outros tempos. Um dia fiquei sabendo, por meio de outros, que ele pretendia estudar para tabelião. Não o vi durante muitos anos, reencontrei-o no final dos anos 80, quando eu menos esperava. Havia se casado, tinha dois filhos, apresentou-me a sua mulher. Havia se transformado em um respeitável tabelião que, após muitos anos de peregrinação por povoados e cidades da Espanha, conseguira chegar a Barcelona, onde acabava de abrir um escritório. Achei que estava mais bonito do que nunca, agora com as têmporas prateadas, e que conservava o porte de distinção que tanto o diferenciava do restante do mundo. Apesar do tempo transcorrido, de novo meu coração disparou por estar diante dele. Apresentou-me a sua mulher, uma gorda horrível, mais parecida com uma camponesa da Transilvânia. Ainda não tinha saído de minha surpresa quando o tabelião Pineda me ofereceu um cigarro, que aceitei.



- Não será um de seus poemas? - disse-lhe com um olhar de cumplicidade, ao mesmo tempo em que olhava também para aquela gorda infame que nada tinha a ver com ele.





(Bartleby e Companhia; Tradução de Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista)







(Ilustração: Nicolás Berlingieri – Two profiles)





sábado, 24 de setembro de 2011

O AMOR EM VISITA, Herberto Helder










Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.

Seus ombros beijarei, a pedra pequena

do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade

de dois seios, com o peso lúbrico e triste

da boca. Seus ombros beijarei.


Cantar? Longamente cantar,

Uma mulher com quem beber e morrer.

Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave

o atravessar trespassada por um grito marítimo

e o pão for invadido pelas ondas,

seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes

ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento

de alegria e de impudor.


Seu corpo arderá para mim

sobre um lençol mordido por flores com água.

Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;

e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,

os bordões da melodia,

a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,

desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.

- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,

mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria.


Dai-me uma mulher tão nova como a resina

e o cheiro da terra.

Com uma flecha em meu flanco, cantarei.


E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,

cantarei seu sorriso ardendo,

suas mamas de pura substância,

a curva quente dos cabelos.

Beberei sua boca, para depois cantar a morte

e a alegria da morte.


Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro

pescoço de planta,

onde uma chama comece a florir o espírito.

À tona da sua face se moverão as águas,

dentro da sua face estará a pedra da noite.

- Então cantarei a exaltante alegria da morte.


Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela

despenhada de sua órbita viva.


- Porém, tu sempre me incendeias.

Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite

imagem pungente

com seu deus esmagado e ascendido.

- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.


Entontece meu hálito com a sombra,

tua boca penetra a minha voz como a espada

se perde no arco.

E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua

estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo

se desfibra - invento para ti a música, a loucura

e o mar.


Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,

a inspiração.

E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.

Vou para ti com a beleza oculta,

o corpo iluminado pelas luzes longas.

Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos

transfiguram-se, tuas mãos descobrem

a sombra da minha face. Agarro tua cabeça

áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou

aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -

eu sou a beleza.

Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem

teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.


Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti

que me vem o fogo.

Não há gesto ou verdade onde não dormissem

tua noite e loucura,

não há vindima ou água

em que não estivesses pousando o silêncio criador.

Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos

originais.

Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra

a carne transcendente. E em ti

principiam o mar e o mundo.


Minha memória perde em sua espuma

o sinal e a vinha.

Plantas, bichos, águas cresceram como religião

sobre a vida - e eu nisso demorei

meu frágil instante. Porém

teu silêncio de fogo e leite repõe

a força maternal, e tudo circula entre teu sopro

e teu amor. As coisas nascem de ti

como as luas nascem dos campos fecundos,

os instantes começam da tua oferenda

como as guitarras tiram seu início da música nocturna.


Mais inocente que as árvores, mais vasta

que a pedra e a morte,

a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,

tinge a aurora pobre,

insiste de violência a imobilidade aquática.

E os astros quebram-se em luz sobre

as casas, a cidade arrebata-se,

os bichos erguem seus olhos dementes,

arde a madeira - para que tudo cante

pelo teu poder fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza,

eu sei quanto és o íntimo pudor

e a água inicial de outros sentidos.


Começa o tempo onde a mulher começa,

é sua carne que do minuto obscuro e morto

se devolve à luz.

Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras

com uma imagem.

Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito

de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade

uma ideia de pedra e de brancura.

És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,

que te alimentas de desejos puros.

E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,

a sombra canta baixo.


Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,

onde a beleza que transportas como um peso árduo

se quebra em glória junto ao meu flanco

martirizado e vivo.

- Para consagração da noite erguerei um violino,

beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada

darei minha voz confundida com a tua.


Oh teoria de instintos, dom de inocência,

taça para beber junto à perturbada intimidade

em que me acolhes.


Começa o tempo na insuportável ternura

com que te adivinho, o tempo onde

a vária dor envolve o barro e a estrela, onde

o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida

ingénua e cara, o que pressente o coração

engasta seu contorno de lume ao longe.

Bom será o tempo, bom será o espírito,

boa será nossa carne presa e morosa.

- Começa o tempo onde se une a vida

à nossa vida breve.


Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna

salina, imagem fechada em sua força e pungência.

E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado

em torno das violas, a morte que não beijo,

a erva incendiada que se derrama na íntima noite

- o que se perde de ti, minha voz o renova

num estilo de prata viva.


Quando o fruto empolga um instante a eternidade

inteira, eu estou no fruto como sol

e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada

matriz de sumo e vivo gosto.

- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices

das nuvens florescem, a resina tinge

a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.

E estás em mim como a flor na ideia

e o livro no espaço triste.


Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento

na cevada pura, de ti viriam cheias

minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses

em minha espuma,

que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?

- No entanto és tu que te moverás na matéria

da minha boca, e serás uma árvore

dormindo e acordando onde existe o meu sangue.


Beijar teus olhos será morrer pela esperança.

Ver no aro de fogo de uma entrega

tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus

será criar-te para luz dos meus pulsos e instante

do meu perpétuo instante.

- Eu devo rasgar minha face para que a tua face

se encha de um minuto sobrenatural,

devo murmurar cada coisa do mundo

até que sejas o incêndio da minha voz.


As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso

jovem da carne aspiram longamente

a nossa vida. As sombras que rodeiam

o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto

seu bárbaro fulgor, o rosto divino

impresso no lodo, a casa morta, a montanha

inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo

- aspiram longamente a nossa vida.


Por isso é que estamos morrendo na boca

um do outro. Por isso é que

nos desfazemos no arco do verão, no pensamento

da brisa, no sorriso, no peixe,

no cubo, no linho, no mosto aberto

- no amor mais terrível do que a vida.


Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz

o perfume da tua noite.

Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua

e branca das mulheres. Correm em mim o lacre

e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca

ao círculo de meu ardente pensamento.

Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam

sobre o teu sorriso imenso.

Em cada espasmo eu morrerei contigo.


E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente

das urzes, um silêncio, uma palavra;

traz da montanha um pássaro de resina, uma lua

vermelha.

Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,

casa de madeira do planalto,

rios imaginados,

espadas, danças, superstições, cânticos, coisas

maravilhosas da noite. Ó meu amor,

em cada espasmo eu morrerei contigo.


De meu recente coração a vida inteira sobe,

o povo renasce,

o tempo ganha a alma. Meu desejo devora

a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma

de crepúsculos e crateras.


Ó pensada corola de linho, mulher que a fome

encanta pela noite equilibrada, imponderável -

em cada espasmo eu morrerei contigo.


E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se

entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro

da tua entrega. Bichos inclinam-se

para dentro do sono, levantam-se rosas respirando

contra o ar. Tua voz canta

o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com

o lento desejo do teu corpo.

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo

eu morrerei contigo.




(Ilustração: Eduardo Fiel)

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

TARZAN, de Waldir de Luna Carneiro








Quais os escritores que encantaram a juventude? Júlio Verne? Emílio Salgari? Mayne Reid? Fenimore Cooper com seus moicanos? Edgar Wallace com seus inspetores da Scotland Yard, Sax Rhomer com seu Fu-Manchu e assassinos chineses, Zane Grey com seus pioneiros do oeste ou Karl May com seu índio Winnetou? Entretanto nenhum deles ganhou mais dinheiro do que o criador de Tarzan, que em 1914, deu seu primeiro vagido nas selvas.


C. Riess no seu livro “Best-Sellers”, editora Renes, nos conta que Edgar Rice Burroughs começou escrevendo sobre o planeta Marte: “Dejah Thoris, Princesa de Marte”. O editor deu-lhe alguns dólares pelo original que o deixou entusiasmado. Será assim tão fácil ganhar dinheiro, escrevendo, por que não continuar? Animado, lança um segundo romance marciano, mas alguém lhe dissera para desistir daquela baboseira porque as histórias eram idiotas e seu estilo, detestável. Não se importou, deixou Marte e descobriu um livro de Henry Morton Stanley, “Nos confins da África”, aventuras de um repórter, vivido na tela por Spencer Tracy, que descobre no Congo nada menos que o Dr. David Livingstone, encarnado por Sir Cedrid Hardwick. Quem não se lembra da célebre frase: “Doutor Livignstone, presumo”? Consta que Burroughs se inspirou para escrever as aventuras de Tarzan quando viu um quadro representando Rômulo e Remo sendo amamentados por uma loba. Os críticos diziam que ele ignorava tudo de romance, tinha poucos conhecimentos geográficos e quase nada de gramática. Tarzan apareceu primeiramente na Inglaterra e lá levou as primeiras bordoadas da crítica, porque ele botava tigres na África e a fauna era toda errada, mas o herói personificava o sonho de milhões de leitores. Quando a primeira edição do livro se esgotou, insistiram para que ele continuasse, como aconteceu com Sherlock Holmes, que morreu numa última aventura mas que, atendendo pedidos dos fanáticos leitores, ressuscitou em outra. E logo veio “A volta de Tarzan”; daí por diante não parou mais, foram cinquenta e cinco histórias do homem-macaco e acabou em best-sellers com tiragens de dar inveja a Honoré de Balzac, Agatha Christie, Edgar Wallace, Julio Verne. Dizem que Burroughs teve um começo de vertigem ao ouviu um jornalista dizer que seus milhões de exemplares empilhados ultrapassariam a altura de muitas torres Eiffel, e isso só com as edições norte americanas, das quais Hollywood abocanhou quase tudo, logo depois do advento do cinema falado. O famoso berro que assustava a bicharada seria uma mistura da voz de tenor com a de um contralto e uivos de cães. Um dos entusiastas repórteres de suas aventuras, ao perceber que Tarzan não tinha humor, chamou-o de Hamlet das selvas. Quase todos os jornais do mundo exibiam “tiras” do filho de Lorde Greystoke. No Brasil, encantou a juventude na coleção Terramarear e suplementos dominicais com desenhos de Hal Foster e Rex Maxon. Comentava-se que Burroughs chamava seu escritório de oficina e que lá montava, às pressas, as histórias do filho das selvas. Não gostava de entrevistas. Não se sabe se por blague, ou seriamente, vivia dizendo que para se escrever com sucesso era preciso “ser um homem desiludido e desencorajado; ter malogrado em tudo o que tentou fazer; ter levado uma vida insuportavelmente monótona; estar enjoado da civilização; saber mal a gramática, ler pouco e nunca tratar de assunto do qual entenda alguma coisa”.



É a receita do sucesso.




(Alegro – contos e crônicas)




(Ilustração: capa do livro Tarzan, o filho das selvas)


domingo, 18 de setembro de 2011

A CARTA, de Marina Tsvetaeva






Assim não se esperam cartas.
Assim se espera - a carta.
Pedaço de papel
Com uma borda
De cola. Dentro - uma palavra
Apenas. Isto é tudo.


Assim não se espera o bem.
Assim se espera - o fim:
Salva de soldados,
No peito - três quartos
De chumbo. Céu vermelho.
E só. Isto é tudo.


Felicidade? E a idade?
A flor - floriu.
Quadrado do pátio:
Bocas de fuzil.
(Quadrado da carta:
Tinta, tanto!)
Para o sono da morte
Viver é bastante.


Quadrado da carta.



(Poesia Russa Moderna- tradução de Augusto de Campos)


(Ilustração: Riccardo Mantovani)




sexta-feira, 16 de setembro de 2011

ESCREVO PARA ME ALIVIAR, de Emil Cioran








Só tenho vontade de escrever num estado explosivo, na excitação ou na crispação, num estupor transformado em frenesi, num clima de ajuste de contas em que as invectivas substituem as bofetadas e os golpes.(...) Escrevo para não passar ao ato, para evitar uma crise. A expressão é alívio, desforra indireta daquele que não consegue digerir uma vergonha e que se revolta em palavras contra os seus semelhantes e contra si mesmo. A indignação é menos um gesto moral que literário, é mesmo a mola da inspiração. E a sabedoria? É justamente o oposto. O sábio em nós arruína todos os nossos élans, é o sabotador que nos enfraquece e nos paralisa, que espreita em nós o louco para dominá-lo e comprometê-lo, para desonrá-lo. A inspiração? Um desequilíbrio súbito, volúpia inominável de se afirmar ou de se destruir. Não escrevi uma única linha na minha temperatura normal.(...) Escrever é uma provocação, uma visão infelizmente falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece existir. Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que, livre da sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnífica, sempre desconcertante, algumas vezes odiosa. Nada mais miserável do que a palavra, e no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade! Pode-se alcançá-lo também, curiosamente, através da ironia, com a condição de que esta, levando ao extremo sua obra de demolição, cause arrepios de um deus às avessas. As palavras como agente de um êxtase invertido... Tudo o que é realmente intenso participa do paraíso e do inferno, com a diferença de que o primeiro só podemos entrevê-lo, enquanto o segundo temos a sorte de percebê-lo e, mais ainda, de senti-lo. Existe uma vantagem ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de se livrar de seus perigos. Sem a faculdade de encher as páginas, me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais!





(Exercicios De Admiraçao - Ensaios e Perfis, tradução de José Thomaz Brum)




(Ilustação: Jacek Yerka – eruption)



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A SERENATA, de Adélia Prado







Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?



(Ilustração: Alia El-Bermani – espelho)


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

UM CASO OBSCURO, de Rachel de Queiroz







Não quero fazer campanha contra quem acredita em espíritos, quem tem visões ou ouve "avisos". Espiritismo é religião tão respeitável quanto qualquer outra. Quero apenas prevenir meu amigo leitor contra alguma conversão apressada, porque o fato é que as forças da terra muitas vezes se misturam com as forças do céu.


O caso que passo a contar como exemplo, naturalmente que e verídico. Se fosse a cronista inventar um conto, teria que apurar muito mais o enredo e os personagens, dar-lhes veracidade e complexidade. E, aliás, como ficção ele não teria importância nem sentido. O seu valor único é a autenticidade.



Certa professora de grupo, minha conhecida, tem uma empregada, senhora cinquentona, de cara séria e jeito discreto, natural de Suruí, no Estado do Rio, de onde veio há poucos meses. E lá em Suruí deixou a mãe cega e enferma, da qual não tinha notícias desde que viera para a cidade. Analfabeta, não escrevia nem recebia cartas. Essa gente da roça não acredita muito em correspondência senão para notícias capitais.



Mas um belo dia acordou a empregada, que se chama Joana, chorando, abaladíssima, queixando-se de estranhas visões. Dizia que passara toda a noite acordada; mas não pudera chamar ninguém porque com o medo ficara sem fala. Sentira uns assopros no ouvido, depois lhe sacudiam a cama, como se fosse um terremoto. Por fim vira a mãe, a velhinha cega, estirada num caixão, metida numa mortalha preta. Toda a manhã a mulher chorou e lamentou-se. A patroa, penalizada, ofereceu-se para mandar um telegrama pedindo noticias. Joana porém tinha medo de telegramas:



— E mais medo tem minha mãe. Chegando telegrama lá, se ela ainda estiver viva morre só de susto.



Estavam nisso as coisas quando ao meio-dia aparece na casa da professora um filho homem de Joana, que também reside na cidade. Trazia na mão um envelope fechado, sem carimbo nem selo. Era uma carta vinda em mão própria da sua terra, explicou o moço. E como ele também não sabia ler, pediram à patroa que abrisse e lesse a missiva — aliás curta e comovente.



"Minha irmã como vai esta tem por fim de lhe dizer que a nossa mãe está às portas da morte já de vela na mão. Joana se apresse sinão não vê mais nossa mãe adeus do seu irmão Basílio."



Chegando assim aquela carta, após a série de visões noturnas, era impressionante. E a própria patroa a abrira, excluindo-se assim a possibilidade de conhecimento prévio do conteúdo. Era uma dessas bofetadas que o mundo dos invisíveis atira aos pobres humanos, deixando-os cheios de susto e dúvida. Com seus próprios ouvidos escutara a patroa pela manhã a história do assopro, das sacudidelas na cama, da figura amortalhada no caixão. Com suas mãos recebera a carta, com seus olhos lera o endereço tremido e oblíquo, e depois a lacônica má nova. Naturalmente deu imediata licença a Joana para a viagem. Grande falta lhe faria em casa, mas quem pode pensar em impedir um filho de despedir-se da mãe, à hora da morte? E deu-lhe mais dinheiro, deu-lhe um vestido preto quase novo, consultou o horário dos trens, forneceu provisões para a viagem. Não era só caridade de burguesa progressista que a animava, mas principalmente o interesse do profano por uma criatura feita instrumento das forças do Incognoscível. E Joana partiu. A patroa ficou contando a história aos conhecidos; contou por boca e por telefone. Chegou a contar por carta. Não a repetiu às crianças no grupo só de medo de assustá-las com essas coisas misteriosas que ficam entre o céu e a terra. O caso era tão simples, tão líquido: resumia-se apenas a fatos dos quais ela própria era testemunha. E fazia cálculos: a carta deve ter partido de Suruí na antevéspera, de modo que a velha bem podia estar mesmo morrendo na hora das visões noturnas de Joana. Ficou a esperar impaciente a volta da viajante. Sim, porque Joana pediu que o seu lugar fosse conservado, que, consumado tudo, voltaria. "Nem espero a semana de nojo, patroa. Venho logo depois do enterro."



E, falando em enterro, rompeu em pranto.



Passados oito dias, chegou Joana, mas ainda com a saia estampadinha de encarnado com a qual partira, em vez do vestido de seda preta que lhe dera a patroa, prevendo o luto. Sim, a velha continuava viva. Contou que a mãe estivera de fato muito ruim, vai-não-vai, mas de repente melhorara. Por isso Joana se demorara mais, até que a melhora parecesse segura. E voltou a trabalhar como dantes.



Aquela quase ressurreição desorientou a patroa. Afinal, a velha aparecera de mortalha, e dera o assopro, e sacudira a cama... Mas consultando sobre o assunto os amigos espíritas, eles lhe explicaram que era assim mesmo, e tanto o espírito encarnado como o desencarnado poderia mandar "avisos". Falaram mesmo em corpo astral, e a professora se impressionou muito.



Nesse estado moral ficou, meio abalada, meio crente, até que um dia sucedeu dessas incríveis, dessas raras coincidências que só acontecem na vida real e nos romances de fancaria: recebeu a visita de uma amiga a quem também contara a história da visão. A amiga vinha de propósito lhe narrar a tal coincidência inaudita. Imagine-se que o filho de Joana por acaso fora trabalhar em sua casa, consertando-lhe o jardim. Lá estava fazia uma quinzena quando inexplicavelmente desapareceu por uma semana. Passados os oito dias, voltou, e alegou motivo de moléstia para a ausência.



No jardim, revolvendo os canteiros, podando o fícus, estabeleceu-se entre jardineiro e patroa esse entendimento normal entre companheiros de trabalho, Ela explicava como queria o serviço, ele dizia que na casa do Dr. Fulano fazia assim e assim, que enxerto de mergulha só é bom com lua tal etc. Afinal, ela lhe perguntou que doença fora a sua, dias antes. O rapaz, que enterrava umas batatas de dália, ficou encabulado. Depois, teve assim como um assomo de consciência, e explicou:



— Patroa, falar a verdade é preciso. Não estive doente não. Mas o caso é que minha mãe meteu na ideia ir em casa, com vontade de assistir umas ladainhas que rezam lá no mês de agosto. Como estava num emprego bom, teve medo que a dona de casa se zangasse com uma viagem assim à toa e não guardasse o lugar para ela, de volta. Então se combinou comigo, só por causa de não fazer a moça se zangar. Pegou a ter uns sonhos com a minha avó, enfiava os olhos na fumaça do fogo para sair chorando. Ai eu mandei um companheiro fazer uma carta chamando, dizendo que a velha estava morrendo, lá no Suruí. A patroa consentiu logo, naturalmente. Tive que fazer companhia a minha mãe, assistimos as ladainhas e agora estamos os dois de volta à nossa obrigação...



A moça ficou espantadíssima:



— Mas, criatura, como é que sua mãe teve a coragem de chamar assim morte para cima de sua avó? Vocês não tiveram medo do agouro?



— Qual, dona! Uma velha daquela, cega, doente, em cima duma cama, dando trabalho e consumição a todo mundo, chamar a morte para ela não é agouro; chamar a morte para ela é mais uma obra de caridade. E daí, agouro que fosse, vê-se bem que não pegou...





(Quatro Vozes)



(Ilustração: Jean Bailly)


sábado, 10 de setembro de 2011

DO DESEJO, de Hilda Hilst









E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e de acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.


(Do Desejo - 1992)



(Ilustração: Matisse - nymph and satyr)


quinta-feira, 8 de setembro de 2011

CATÁSTROFE, de Luiz Vilela







— Vai ser uma catástrofe!
— O que eu podia fazer?
— Você podia ter falado pra ela não vir.
— Eu ia falar uma coisa dessas?
— Por que não?
— Uma pessoa me telefona falando que quer vir passar uns dias na minha casa: aí eu falo pra ela não vir?
— Por que não?
— Você falaria?
— Claro que eu falaria.
— Pois eu não.
— Eu falaria: "Escuta, fulana, eu fico muito feliz de você ter se lembrado de mim e da minha casa, mas seria melhor você não vir, porque meu marido não só não aprecia visitas, como também, e principalmente, não aprecia crianças, tanto é que nós não as temos.”
— Muito engraçado... Já imaginou eu dizendo isso pra ela ou pra quem quer que seja?
— Você não disse; o resultado aí está: eles vêm.
— São só seis dias, Artur.
— Só seis dias...
— Ela quer aproveitar a Semana da Criança.
— E nós com isso?
— Ela queria dar um presente para os meninos, e aí ela escolheu esse passeio.
— Muito bonito: ela dá o presente, e nós pagamos a conta...
— Ela me disse: "Mimi, sabe de que os meus filhos estão precisando? Sabe de quê? Eles estão precisando de um banho de interior."
— Se depender de mim, eles vão ter é um banho de sangue.
— "Você acredita, Mimi, você acredita que até hoje alguns dos meus meninos nunca viram uma galinha de verdade?”
— Por que eles não vão numa granja? Perto de São Paulo existem dezenas.
— Ah, Artur; você sabe que não é isso.
— Então é o quê?
— Você sabe que... É como a Dininha disse: "Uma galinha passando na rua, os pintinhos atrás...”.
— Galinha passando na rua...
—"A galinha ciscando..."
— Essa sua amiga é maluca...
— São essas coisas, entende? São essas coisas que ela quer...
— É maluca sua amiga.
— Não, maluca ela não é não.
— Começa pelos filhos. Ou melhor: por ter filhos, já que ter filhos é um ato de insanidade mental.
— Ter filhos é um ato de amor, Artur.
— Os ratos que o digam.
— Ter filhos...
— Já começa por aí, por ter filhos; agora, ter sete, sete filhos: isso é a própria loucura.
— Por quê?
— Porque é.
— Eu não acho.
— E os nomes? Os nomes dos moleques...
— Quê que tem os nomes?
— Repete aí pra mim...
— Pra quê?
— Repete...
— Dagoberto, Delmiro, Dilermando, Donato, Durango, Dorval e Durval.
— Santa Maria...
— Os dois últimos são gêmeos.
— Bem feito. Deus castiga.
— Eu tenho muita dó da Dininha; muita. Já pensou, ser abandonada nova ainda, com sete filhos pequenos?...
— Eu imagino o cara: um dia ele olhou ao redor, viu aquele bando de meninos e aí pensou: "Meu Deus, quê que eu fiz?..." Pegou então a maleta, saiu de fininho e caiu no mato.
— Além do mais, a Dininha foi minha amiga de infância, minha melhor amiga. É um jeito de eu agora ajudá-la; de nós dois a ajudarmos.
— Ajudar...
— O que é hospedar por alguns dias uma família?
— Isso não é uma família: é uma horda.
— Nossa casa é grande; nós temos recursos, felizmente...
— O problema não é esse, Mimi; o problema nem é a nossa paz, que eles vão perturbar.
— Então qual é o problema?
— O problema é que eles vão acabar com tudo!
— Acabar com tudo como?
— Acabar com tudo, tudo o que tem aqui: acabar com os quadros, com as esculturas, os tapetes, as orquídeas, os bichos; eles vão acabar com tudo!
— Como você pode falar isso, se você nem conhece os meninos, Artur?
— É preciso?
— Você nem sabe como eles são.
— É uma equação, Mimi; uma equação matemática.
— Equação...
— Pensa bem: sete meninos, sete meninos de três a onze anos, sete meninos engaiolados num apartamento no centro de São Paulo: de repente esses meninos são soltos, levados para o interior e despejados numa casa ampla, com jardins, quintal, bichos... O que vai acontecer?
— Não vai acontecer nada.
— Não, não vai não...
— Não vai acontecer nada.
— Eles só vão acabar com tudo.
— Imaginação sua, Artur.
— Imaginação...
— Você que está imaginando isso.
— Os quadros e as esculturas, eu ainda podia levar para um banco, podia fazer isso. Mas e as orquídeas? E os bichos? Como que a gente vai tirá-los daqui? Onde que a gente vai pôr? E quem iria cuidar deles?
— Pense um pouco, Artur...
— Pensar o quê?
— Pense no que seria essa viagem para os meninos...
— Por que eu vou pensar nisso?
— Você também já foi menino...
— Já, já fui, e dou graças por não ter sido menino de capital e por nunca ter morado em apartamento; e, se mais alguma coisa preciso acrescentar por ter visto galinhas desde pequeno.
— Você também já foi filho...
— Fui, embora não exatamente por minha vontade. Mas, de qualquer forma, posso dizer que ter sido filho foi, pela mãe que eu tive, a melhor coisa de minha vida.
— Então? A Dininha também está querendo ser uma boa mãe para os filhos dela.
— Filhos...
— O quê?
— Para que filhos?...
— Para quê?...
— Será que não vão um dia parar com essa bobagem?
— Se parar, a humanidade acaba.
— Alguma objeção?
— Se não fossem os filhos, uma hora dessas nós dois não estaríamos aqui.
— Nem estaria essa debiloide nos ameaçando com essas sete pragas, com essa catástrofe.
— Bom: nós já falamos muito.
— Já.
— Vamos encerrar?
— Vamos.
— Eu não vou fazer nada.
— Não.
— Eles vêm.
— É.
— Eu até já vou comprar uma lata de biscoitos.
— E eu uma caixa de balas.
— Balas? Você?...
— Balas de revólver, my dear.



(A cabeça)




(Ilustração: Iman Maleki)