segunda-feira, 30 de agosto de 2010

PAGAR OU MORRER, de Álvaro Dias Cuba








Pensando que um pasto deve ser grande, se pretende suportar a vaca, Marcelino sentou-se para estudar as dimensões do risco. Ficou à espera de um sentimento, mas enquanto não chegava, descascou duas laranjas que lhe espirravam, vingativas, jatos de vitamina C nos olhos. Depois, traçou o território no papel e determinou algumas medidas.

– Avião.

Quem jamais falou pelos cotovelos, uma vez nascido em Fevereiro, mês dos aéreos. Apenas uma palavra curta sussurrada no fundo da boca, bem antes do siso, quase garganta. Quando não havia mais via. Só havia avião. Enorme objeto plano dos desejos antigos, em que todo menino quer voar naquele que passa perto da pipa.

É que às 23h a maioria dos universitários daqui se põe a caminho de suas casas, exaustos de teorias e mensalidades. Entre os quais Marcelino, atento aos pormenores do céu, sejam eles as nuvens, os bichos voadores, a lua, todos muito pequenos deslizando no azul escuro. Sendo apenas duas formas de ascender aos céus: através de avião ou anjos. Pensava, claro, em balões, em zepelins, em helicópteros, em anões-bomba. Mas como Marcelino nenhum rapaz de iluminações práticas, qual possível tão e só pagar ou morrer.

Bem antes da palavra curta explodida em PLIN! de bolinha de sabão, não estivera na aula portuguesinha de minutos e minutos dentro de si mesmo, lugar alto. Ia subindo a Santa Maria Egipcíaca, que assim que lá fora, um rapaz alado ancorado pela mochila curvado, em fuga.

– E aí? Vai querer carona hoje?

– Valeu, Gil. Vou pegar o metrô.

O apartamento distante estaria distante, no sentido vertical de sua ambição. Porque caminhava até ele, e nunca. Havia via de novo, como parte horizontal de uma régua L. Esta sim, um prédio, única forma concreta de subir.

Descer era uma escada rolante após dois trombadinhas na superfície: um lusco-fusco no chão agarrado à fralda chupando o dedo com violência escorrendo verde a partir do nariz, outro inconformado pedindo-lhe dinheiro amarelo num blusão furta-cor sujo de cidade.

Se quando Marcelino já embaixo olha para cima e sacode a mão respingando o catarro do trombadinha a que não deu moeda, o pequenino às gargalhadas por mais uma vítima do corrimão molhado abre os braços, decola, é um avião.





(Narrativa e uma couve na horta e outros contos)




(Ilustração: João Ruas – scowrers)



sábado, 28 de agosto de 2010

ANNABEL LEE, de Edgar Allan Poe








It was many and many a year ago,
In a kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know
By the name of Annabel Lee;
And this maiden she lived with no other thought
Than to love and be loved by me.
I was a child and she was a child,
In this kingdom by the sea;
But we loved with a love that was more than love-
I and my Annabel Lee;
With a love that the winged seraphs of heaven
Coveted her and me.

And this was the reason that, long ago,
In this kingdom by the sea,
A wind blew out of a cloud, chilling
My beautiful Annabel Lee;
So that her highborn kinsman came
And bore her away from me,
To shut her up in a sepulchre
In this kingdom by the sea.

The angels, not half so happy in heaven,
Went envying her and me-
Yes!- that was the reason (as all men know, In this kingdom by the sea)
That the wind came out of the cloud by night,
Chilling and killing my Annabel Lee.

But our love it was stronger by far than the love
Of those who were older than we-
Of many far wiser than we-
And neither the angels in heaven above,
Nor the demons down under the sea,
Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabel Lee.

For the moon never beams without bringing me dreams
Of the beautiful Annabel Lee;
And the stars never rise but I feel the bright eyes
Of the beautiful Annabel Lee;
And so,all the night-tide, I lie down by the side
Of my darling, my darling, my life and my bride,
In the sepulchre there by the sea,
In her tomb by the sounding sea.



Tradução de Fernando Pessoa:


Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor -
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim `stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.




(Ilustração: Guennadi Ulibin – 1013)

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

I HAVE A DREAM / EU TENHO UM SONHO, de Martin Luther King, Jr.







I am happy to join with you today in what will go down in history as the greatest demonstration for freedom in the history of our nation.

Five score years ago, a great American, in whose symbolic shadow we stand today, signed the Emancipation Proclamation. This momentous decree came as a great beacon light of hope to millions of Negro slaves who had been seared in the flames of withering injustice. It came as a joyous daybreak to end the long night of their captivity.

But one hundred years later, the Negro still is not free. One hundred years later, the life of the Negro is still sadly crippled by the manacles of segregation and the chains of discrimination. One hundred years later, the Negro lives on a lonely island of poverty in the midst of a vast ocean of material prosperity. One hundred years later, the Negro is still languished in the corners of American society and finds himself an exile in his own land. And so we've come here today to dramatize a shameful condition.

In a sense we've come to our nation's capital to cash a check. When the architects of our republic wrote the magnificent words of the Constitution and the Declaration of Independence, they were signing a promissory note to which every American was to fall heir. This note was a promise that all men, yes, black men as well as white men, would be guaranteed the "unalienable Rights" of "Life, Liberty and the pursuit of Happiness." It is obvious today that America has defaulted on this promissory note, insofar as her citizens of color are concerned. Instead of honoring this sacred obligation, America has given the Negro people a bad check, a check which has come back marked "insufficient funds."

But we refuse to believe that the bank of justice is bankrupt. We refuse to believe that there are insufficient funds in the great vaults of opportunity of this nation. And so, we've come to cash this check, a check that will give us upon demand the riches of freedom and the security of justice.

We have also come to this hallowed spot to remind America of the fierce urgency of Now. This is no time to engage in the luxury of cooling off or to take the tranquilizing drug of gradualism. Now is the time to make real the promises of democracy. Now is the time to rise from the dark and desolate valley of segregation to the sunlit path of racial justice. Now is the time to lift our nation from the quicksands of racial injustice to the solid rock of brotherhood. Now is the time to make justice a reality for all of God's children.

It would be fatal for the nation to overlook the urgency of the moment. This sweltering summer of the Negro's legitimate discontent will not pass until there is an invigorating autumn of freedom and equality. Nineteen sixty-three is not an end, but a beginning. And those who hope that the Negro needed to blow off steam and will now be content will have a rude awakening if the nation returns to business as usual. And there will be neither rest nor tranquility in America until the Negro is granted his citizenship rights. The whirlwinds of revolt will continue to shake the foundations of our nation until the bright day of justice emerges.

But there is something that I must say to my people, who stand on the warm threshold which leads into the palace of justice: In the process of gaining our rightful place, we must not be guilty of wrongful deeds. Let us not seek to satisfy our thirst for freedom by drinking from the cup of bitterness and hatred. We must forever conduct our struggle on the high plane of dignity and discipline. We must not allow our creative protest to degenerate into physical violence. Again and again, we must rise to the majestic heights of meeting physical force with soul force.

The marvelous new militancy which has engulfed the Negro community must not lead us to a distrust of all white people, for many of our white brothers, as evidenced by their presence here today, have come to realize that their destiny is tied up with our destiny. And they have come to realize that their freedom is inextricably bound to our freedom.

We cannot walk alone.

And as we walk, we must make the pledge that we shall always march ahead.

We cannot turn back.

There are those who are asking the devotees of civil rights, "When will you be satisfied?" We can never be satisfied as long as the Negro is the victim of the unspeakable horrors of police brutality. We can never be satisfied as long as our bodies, heavy with the fatigue of travel, cannot gain lodging in the motels of the highways and the hotels of the cities. We cannot be satisfied as long as the negro's basic mobility is from a smaller ghetto to a larger one. We can never be satisfied as long as our children are stripped of their self-hood and robbed of their dignity by signs stating: "For Whites Only." We cannot be satisfied as long as a Negro in Mississippi cannot vote and a Negro in New York believes he has nothing for which to vote. No, no, we are not satisfied, and we will not be satisfied until "justice rolls down like waters, and righteousness like a mighty stream."¹

I am not unmindful that some of you have come here out of great trials and tribulations. Some of you have come fresh from narrow jail cells. And some of you have come from areas where your quest -- quest for freedom left you battered by the storms of persecution and staggered by the winds of police brutality. You have been the veterans of creative suffering. Continue to work with the faith that unearned suffering is redemptive. Go back to Mississippi, go back to Alabama, go back to South Carolina, go back to Georgia, go back to Louisiana, go back to the slums and ghettos of our northern cities, knowing that somehow this situation can and will be changed.

Let us not wallow in the valley of despair, I say to you today, my friends.

And so even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream. It is a dream deeply rooted in the American dream.

I have a dream that one day this nation will rise up and live out the true meaning of its creed: "We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal."

I have a dream that one day on the red hills of Georgia, the sons of former slaves and the sons of former slave owners will be able to sit down together at the table of brotherhood.

I have a dream that one day even the state of Mississippi, a state sweltering with the heat of injustice, sweltering with the heat of oppression, will be transformed into an oasis of freedom and justice.

I have a dream that my four little children will one day live in a nation where they will not be judged by the color of their skin but by the content of their character.

I have a dream today!

I have a dream that one day, down in Alabama, with its vicious racists, with its governor having his lips dripping with the words of "interposition" and "nullification" -- one day right there in Alabama little black boys and black girls will be able to join hands with little white boys and white girls as sisters and brothers.

I have a dream today!

I have a dream that one day every valley shall be exalted, and every hill and mountain shall be made low, the rough places will be made plain, and the crooked places will be made straight; "and the glory of the Lord shall be revealed and all flesh shall see it together."

This is our hope, and this is the faith that I go back to the South with.

With this faith, we will be able to hew out of the mountain of despair a stone of hope. With this faith, we will be able to transform the jangling discords of our nation into a beautiful symphony of brotherhood. With this faith, we will be able to work together, to pray together, to struggle together, to go to jail together, to stand up for freedom together, knowing that we will be free one day.

And this will be the day -- this will be the day when all of God's children will be able to sing with new meaning:

My country 'tis of thee, sweet land of liberty, of thee I sing.


Land where my fathers died, land of the Pilgrim's pride,


From every mountainside, let freedom ring!

And if America is to be a great nation, this must become true.

And so let freedom ring from the prodigious hilltops of New Hampshire.

Let freedom ring from the mighty mountains of New York.

Let freedom ring from the heightening Alleghenies of Pennsylvania.

Let freedom ring from the snow-capped Rockies of Colorado.

Let freedom ring from the curvaceous slopes of California.

But not only that:

Let freedom ring from Stone Mountain of Georgia.

Let freedom ring from Lookout Mountain of Tennessee.

Let freedom ring from every hill and molehill of Mississippi.

From every mountainside, let freedom ring.

And when this happens, when we allow freedom ring, when we let it ring from every village and every hamlet, from every state and every city, we will be able to speed up that day when all of God's children, black men and white men, Jews and Gentiles, Protestants and Catholics, will be able to join hands and sing in the words of the old Negro spiritual:

Free at last! Free at last!

Thank God Almighty, we are free at last!


Tradução de Isaias Edson Sidney:





Eu estou feliz de estar aqui com vocês, neste dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.

Há cem anos, um grande americano, sob cuja sombra simbólica nos encontramos, assinava a Proclamação da Emancipação. Esse decreto fundamental foi como um raio luminoso de esperança para milhões de escravos negros que tinham sido marcados a ferro nas chamas de uma vergonhosa injustiça. Veio como uma aurora feliz para terminar a longa noite do cativeiro.


Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do Negro é ainda lamentavelmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação.

Cem anos depois, o Negro continua a viver numa ilha de pobreza, no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda definha nas margens da sociedade americana e se encontra exilado na sua própria terra. Por isso, encontramo-nos aqui hoje para dramaticamente mostrarmos sua vergonhosa condição.

De certo modo, viemos à capital do nosso país para descontar um cheque. Quando os arquitetos da nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de Independência, eles estavam assinando uma nota promissória da qual cada cidadão americano se tornaria herdeiro.Essa nota era uma promessa de que todos os homens – sim, tanto os homens negros como os homens brancos – teriam garantidos os “direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade”. É óbvio que a América ainda hoje não pagou tal promissória, principalmente no que concerne aos seus cidadãos de cor. Em vez de honrar esse compromisso sagrado, a América deu ao Negro um cheque sem fundo, um cheque devolvido marcado com : "saldo insuficiente".

Porém, nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça esteja falido. Nós nos recusamos a acreditar que não exista capital suficiente nos grandes cofres de oportunidades deste país. Por isso viemos aqui cobrar este cheque – um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas da liberdade e a segurança da justiça.

Também viemos a este lugar sagrado para lembrar à América a extrema urgência do Agora. Este não é o momento de parar para refletir, nem para tomar a pílula tranquilizante do gradualismo. Agora é o momento de tornar reais as promessas da Democracia. Agora é o momento de sairmos do vale escuro e desolado da segregação para o iluminado caminho da justiça racial. Agora é o momento de abrir as portas da oportunidade para todos os filhos de Deus. Agora é o momento de erguer o nosso país das areias movediças da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade. Agora é o momento de fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.

Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento e subestimar a determinação do Negro. Este sufocante verão do legítimo descontentamento do Negro não passará até que chegue o revigorador outono da liberdade e da igualdade. Mil e novecentos e sessenta e três não é um fim, mas um começo. E aqueles que acham que o Negro precisava só desabafar, e que a partir de agora ficará feliz, terão um violento despertar, se a Nação regressar à sua vida de sempre. Não haverá tranquilidade nem descanso na América até que o Negro tenha garantidos todos os seus direitos de cidadania. Os turbilhões da revolta continuarão a sacudir as fundações do nosso País até que desponte o luminoso dia da justiça.

Existe algo, porém, que devo dizer a este meu povo que se encontra no caloroso limiar que conduz ao palácio da justiça: na luta pela conquista de nossos direitos legítimos, não podemos ser acusados de ações injustas. Não tentemos satisfazer a sede de liberdade bebendo no cálice da amargura e do ódio. Temos sempre de conduzir a nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Não podemos deixar que o nosso protesto de criativo se degenere na violência física. Muitas e muitas vezes teremos de nos erguer para as majestosas alturas do encontro da força física com a força da alma.

A nova e maravilhosa militância que tomou a comunidade negra não nos deve levar a desconfiar de todas as pessoas brancas, pois muitos dos nossos irmãos brancos, como se pode comprovar por sua presença aqui hoje, têm consciência de que os seus destinos estão ligados ao nosso destino. Eles têm consciência de que sua liberdade está intrinsecamente ligada à nossa liberdade.

Nós não podemos caminhar sozinhos.

E, à medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de que continuaremos sempre em frente.

Não podemos retroceder.

Há quem pergunte aos defensores dos direitos civis: "Quando é que vocês ficarão satisfeitos?" Não estaremos nunca satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos incontáveis horrores da brutalidade policial. Não estaremos nunca satisfeitos enquanto os nossos corpos, cansados das fadigas da viagem, não conseguirem hospedagem em motéis ao longo das estradas ou nos hotéis das nossas cidades. Não podemos estar satisfeitos, enquanto a única liberdade de movimento do Negro for passar de um gueto pequeno para um maior. Nós não podemos nunca estar satisfeitos enquanto nossas crianças forem despojadas de sua identidade e roubadas de sua dignidade por estes dizeres: “Somente para Brancos”. Nós não podemos estar satisfeitos enquanto um Negro do Missisipi não tiver direito ao voto e um Negro de Nova Iorque achar que não há nada pelo qual valha a pena votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos, e só ficaremos satisfeitos quando “a justiça correr como a água e a retidão, como uma poderosa corrente”.

Eu não deixei de notar que alguns de vocês chegaram até aqui depois de muitas dificuldades e tribulações. Alguns de vocês saíram há pouco de apertadas celas de prisões. Alguns de vocês vieram de lugares onde a sua busca – busca por liberdade - deixou-os marcados pela violência das perseguições e abalados pela força da brutalidade policial. Vocês são veteranos no sofrimento. Continuem trabalhando com a crença de que um sofrimento injusto é redentor. Voltem para o Mississipi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para a Luisiana, voltem para os cortiços e guetos de nossas cidades do norte, tendo a certeza de que, de alguma forma, esta situação pode e será modificada.

Não nos deixemos afundar no vale do desespero, eu lhes peço hoje, meus amigos.

E no mesmo instante em que nos encontramos diante das dificuldades de hoje e do futuro, eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e viverá o real significado do seu credo: “nós afirmamos ser evidente por si mesma esta verdade, que todos os homens são iguais.”

Tenho um sonho de que um dia, nas rubras montanhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos proprietários de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade.

Tenho um sonho de que um dia, mesmo o estado do Mississipi, um estado sufocado pela força da injustiça, sufocado pela força da opressão, será transformado num oásis de liberdade e de justiça.

Tenho um sonho de que meus quatro filhos pequenos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pela retidão de seu caráter.

Eu tenho um sonho, hoje!Tenho um sonho de que um dia, no Alabama dos racistas ferozes, de um governador de cujos lábios gotejam palavras de “impedimento” e de “nulificação” – um dia, neste mesmo Alabama, garotos negros e garotas negras poderão dar as mãos a meninos brancos e meninas brancas, como irmãos e irmãs.

Eu tenho um sonho, hoje!Tenho um sonho de que, um dia, os vales se elevarão, as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares acidentados se tornarão planos, e os caminhos tortuosos serão endireitados “e a glória do Senhor se manifestará e toda a carne a verá”(*).

Esta é nossa esperança e esta é a fé com a qual voltarei para o Sul.

Com esta fé, seremos capazes de talhar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé, poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação numa bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé, poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, ir para a prisão juntos, resistir juntos pela liberdade, com a certeza de que um dia seremos livres.Este será o dia – este será o dia quando todos os filhos de Deus poderão cantar com um novo significado:

"Ó meu país, doce terra de liberdade, a ti eu canto.

Terra onde morreram os meus pais, orgulho dos peregrinos,

Da encosta de cada montanha, ecoe a liberdade!" (**)E se a América quer ser uma grande nação, isto tem que se tornar realidade.

Que ecoe a liberdade do alto das altas montanhas de Nova Hamphsire.

Que ecoe a liberdade das imensas montanhas de Nova Iorque.

Que ecoe a liberdade dos altos cumes Alleghenies da Pensilvânia. (***)

Que ecoe a liberdade da montanhas nevadas do Colorado.

Que ecoe a liberdade dos picos sinuosos da California.

Mais ainda:

Que ecoe a liberdade da Montanha de Pedra da Geórgia.

Que ecoe a liberdade da Montanha Lookout do Tennessee.Que ecoe a liberdade de cada montanha e de cada colina do Mississipi.

De cada lado de cada montanha ecoe a liberdade.

E quando isso acontecer, quando nós permitirmos que a liberdade ecoe, quando nós a deixarmos ecoar de cada aldeia, de cada povoação, de cada estado e de cada cidade, nós seremos capazes de antecipar aquele dia em que todos os filhos de Deus, homens negros e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, estarão prontos para juntar as mãos e cantar as palavras da velha canção negra:

“Enfim, livres; enfim, livres!

“Graças a Deus Todo-Poderoso, finalmente, nós somos livres!”(****)




Notas:

(*) Citação de Isaias 40:5: “E a glória do Senhor se manifestará, e toda a carne juntamente verá que foi a boca do Senhor que isto disse”.

(**)"My Country, 'Tis of Thee", também conhecida como "America", é uma canção patriótica estadunidense, cuja letra foi escrita por Samuel Francis Smith.

(***) Allegheny Mountain Range é uma montanha que faz parte da Cadeia de Montanhas Apalache, que vai do leste oriental dos Estados Unidos até o Canadá.

(****)" FREE AT LAST", canção folclórica estadunidense compilada no livro “American Negro Songs ", de John Wesley Work, III, 1901-1967.



(Ilustração: foto da internet, sem indicação de autoria)





terça-feira, 24 de agosto de 2010

¿QUÉ ES POESÍA?, de Gustavo Adolfo Bécquer









¿Qué es poesía? -- dices mientras clavas

en mi pupila tu pupila azul.

¿Qué es poesía? ¿Y tú me lo preguntas?

Poesía... eres tú.



(Ilustração: Andrzej Malinovski – tresse cuivre et or)



domingo, 22 de agosto de 2010

O NAVIO DAS SOMBRAS, de Érico Veríssimo





É noite escura e o cais está deserto. Ivo ergue a gola do sobretudo. Sente muito frio, e o silêncio enorme e hostil enche-o de um vago medo. Vai viajar. Mas é estranho... Tudo parece diferente do que ele sempre imaginara. O grande transatlântico se desenha sem contornos certos contra o céu de fuligem. Não se vê um só vulto humano no cais. Adivinha-se, entretanto, na treva, a presença rígida e gelada dos guindastes.

Os minutos passam. Ivo olha. Sim, agora vê com mais clareza a silhueta do grande barco. A grande Viagem! O seu sonho vai se realizar. Ficarão para trás todas as suas angústias. É uma libertação. Devia estar alegre, sacudir os braços, correr, gritar. Mas uma opressão estranha o paralisa. Que é isto? Onde estão os outros passageiros? Onde se meteu a tripulação? É inquietante este silêncio noturno. E pavorosa esta sombra glacial que envolve tudo. Ivo quer lançar ao ar uma palavra. Pronuncia bem alto seu próprio nome. O som morre sem eco. O silêncio persiste. Então ele começa a sentir um mal-estar que nem a si mesmo consegue explicar.

Divisa aos poucos, vultos imóveis na amurada do paquete. Parecem guardas petrificados dum barco fantasma. Por que não se movem? Por que não falam? A esta hora a orquestra de bordo devia estar tocando uma marcha festiva. Carregadores gritando. Passageiros, empregados de hotel, agentes da companhia de navegação, guardas — muita gente devia andar pelo cais num formigamento sonoro. No entanto reina o mais espesso silêncio... Ivo dá dois passos e é tomado duma esquisita sensação de leveza. Caminha sem o menor esforço. E como se não encontrasse nenhuma resistência no ar, como se suas pernas fossem de algodão.

Mete a mão no bolso. Sim, ali está a sua passagem. Fica mais tranquilo e encorajado. Pode embarcar. Deve embarcar... Seria decepcionante perder o navio...

Dirige-se para a prancha. Hesita um instante antes de partir, porque a seus ouvidos soa, muito fraca, muito abafada, uma voz amiga.

— Ivo, Ivo querido, não me abandones!


Inexplicável. De onde veio a voz? Volta a cabeça para os lados, procurando. Só encontra a escuridão fria e inimiga, O navio apita. Um som soturno, grave e prolongado, enche a grande noite. E uma queixa, quase um choro e, apesar disso, tem um certo tom de ameaça. Nesse apito rouco Ivo sente o pavor do oceano desconhecido na noite negra, a angústia dos navios perdidos a pedirem socorro, a aflição dos náufragos, o horror das profundezas do mar. O apito uivante e áspero parece feito dos gritos de todos os afogados, de todos os mares.

Ivo sente-se desfalecer de medo.

— Meu Ivo, por que foi? Por que foi?

Outra vez a voz. Ivo estremece. De onde vem aquela voz? Na amurada, os
vultos continuam imóveis. Nenhum deles podia ter falado assim com aquela
ternura longínqua. Porque eles devem ter uma voz cavernosa de pedra.

Parado ao pé da prancha, Ivo olha para o alto. Vê um homem na extremidade superior da escada. Está de pernas abertas, braços cruzados, olhando para baixo. Ivo não lhe pode distinguir as feições. Mas é curioso, ele sente a força de dois olhos magnéticos que o fitam. E aquele olhar é um chamado, uma ordem.
Começa a subir. Lembra-se de um trecho de antologia da sua infância. André Chenier subindo as escadas do cadafalso. Sim, ele sente que vai ser guilhotinado. Lá em cima está o carrasco. Ou será apenas o capitão? Ivo sobe. Um, dois, três, quatro degraus ... O frio aumenta, Ivo começa a tiritar. Cinco, seis, sete. Sente uma fraqueza, uma tontura. Subiu apenas sete degraus, mas agora o cais está tão longe de seus pés, que ele tem a sensação de se encontrar no alto duma torre altíssima. O vento sopra gelado como a face dum morto. Mas por que lhe vêm com tanta insistência esses pensamentos macabros? Esta não é então a Viagem, a sua desejada aventura transoceânica? Deve então alegrar-se, cantar . . . Procura assobiar uma ária alegre. Mas o vento lhe impõe silêncio. Ivo sobe sempre . . . Quando senta o pé no navio, não vê mais o capitão. Volta os olhos e só enxerga a noite, a grande noite, a densa noite.
Por que não acendem as luzes deste navio? Senhores, as luzes! Outros vultos passam. Mulheres, homens, crianças. É aflitivo. Ivo não lhes pode ver os rostos. E o silêncio apavorante!...

Ivo se aproxima dum homem que se acha encostado à amurada.

— Por favor, meu amigo, pode me dizer se este vapor é o...

Cala-se. É assustador. Ele não sabe o nome do barco em que entrou. Como foi isso? Não se trata então duma viagem, da "sua" desejada viagem, por tanto tempo planejada e acariciada? Por que tudo agora está tão esfumado e confuso, como se sobre sua memória tivesse caído um véu? Ivo começa a suar. O suor lhe escorre pelo rosto em bagas frias.

- Pode me dizer onde fica o bar?

Sim, precisa tomar uma bebida qualquer. Deve ser o frio que o deixa assim tão sem memória, tão fraco e trêmulo.

— Cavalheiro, pode me dizer onde fica o sol?

O sol? Mas ele não queria perguntar onde ficava o sol. Jurava que iaperguntar onde ficava o bar.

— Por favor, cavalheiro...

O vulto se move sem o menor ruído e some-se na sombra.

Ivo treme dos pés à cabeça. "Preciso encontrar o meu camarote" diz para si mesmo — "preciso descobrir a minha bagagem" — pensa, numa crescente aflição. — "Deve existir alguém a bordo que possa me explicar. Talvez um doutor... Sim. Estou doente..."

E agora ele tem consciência duma dor, não aguda mas continuada e martelante, bem no lado esquerdo do peito. Leva a mão ao coração. Retira-a úmida. Será sangue ? Sim, deve ser...

Sai a correr apavorado. Um médico! Um médico! Estou ferido, vou morrer, socorro! Mas suas pernas, de tão leves, agora se vergam. Ivo para. Ajoelha-se e grita ainda: Um médico! Mas não consegue ouvir a própria voz. Ergue-se, agoniado. Homens, mulheres e poucas crianças continuam a passar. São ainda sombras sem vozes nem gestos.

Ivo procura orientar-se na escuridão. Parece-lhe agora enxergar contornos mais nítidos. Sim. Ali está uma porta. Um corredor. Se ele entrar no corredor talvez ache o seu camarote. Tem agora vagamente a lembrança dum número. 27... 27... Recorda-se de tê-lo visto impresso em algarismos negros sobre um quadro branco. 27... Onde?

De repente tem a impressão de que na memória se lhe abre uma clareira por onde ele enxerga o passado. Mas é apenas um relâmpago. De novo cai a névoa. Já não lhe dói mais o peito. Tudo deve ter sido ilusão ... ele não está ferido. As sombras passam. A bruma que vem do mar invade o navio. Onde estará o capitão? O frio e o silêncio persistem. O barco misterioso torna a soltar um gemido rouco e prolongado. Mas – é incrível, incompreensível, endoidecedor — nem o apito consegue quebrar o silêncio.

Ivo caminha sem destino. Não ouve o ruído dos próprios passos. Não tropeça em nada. Aproxima-se da amurada e olha o mar. Só vê a escuridão velada duma bruma de cor doentia.

Um homem se aproxima dele. Ivo olha-lhe o rosto... Já se lhe distinguem alguns traços. Decerto o hábito da escuridão. Céus, mas que rosto pálido! Parece a cara dum cadáver. A pele está ressequida e tem um tom esverdeado. Os olhos, parados e sem brilho. Os dentes arreganhados...

Agora aparecem outras faces. Uma criança sorrindo um sorriso horrendo. Uma mulher com os olhos furados escorrendo sangue. Um velho com a boca queimada de ácido. Ivo solta um grito... Mas o silêncio continua. Onde estarei? — pensa ele. — Onde estarei? Faz um esforço dolorido para se lembrar.
Quem sou eu? Como foi que vim parar aqui? Onde estão os meus amigos, as pessoas que eu via todos os dias?

O frio aumenta. Ivo sente-se desfalecer. Tem a impressão de estar boiandonas ondas dum mar gelado, como um náufrago; como um iceberg...

Camarote 27! — diz Ivo, - 27... 27... — Seus lábios se movem, mas nenhum som perturba o silêncio do grande barco e da enorme noite.

De repente uma onda morna lhe invade o corpo. Pela proa do navio começa anascer uma luz, pálida a princípio, mas a pouco e pouco se fazendo mais viva e dourada. Os olhos de Ivo se agrandam. Aquela luminosidade vai ser a explicação de tudo, a volta da memória... Sim, ele vai descer pela prancha e ganhar o cais. O cais também é negro e silencioso. Mas não há nada como a terra firme. Ele não quer viajar neste vapor tenebroso cujos passageiros são fantasmas. O mar desconhecido é um pavor na noite. Oh Deus! – pensa Ivo - como foi que eu cheguei a desejar esta viagem!? Que louco! Que louco! A luz cresce. O calor aumenta. A voz amiga se ouve mais forte: "Ivo, meu querido, fica comigo!" Sim, ele quer ficar. E preciso fugir do capitão do barco noturno. Ivo dá dois passos para a luz.

Ajoelhada ao pé da cama a moça aperta e beija a mão pálida do rapaz.

— Ivo, não quero que morras, não quero. Por que foi que fizeste isso? Por que foi?

Com a seringa de injeção numa das mãos, o médico contempla o rosto pálido do suicida. Pobre diabo! Perdeu tanto sangue... O corpo está quase frio.
A um canto do quarto, a dona da casa, torcendo o avental, olha muito assustada para a cama. "Por causa do que me devia, ele não precisava fazer isso. Eu podia espe­rar. Não tinha importância. Deus me perdoe. Se eu soubes­se, não tinha vindo hoje trazer a conta. Logo hoje, Nos­sa Senhora!"
Ao pé da janela, o porteiro da casa conversa com um agente de polícia.

— De onde era ele?

— Do interior.

— Tinha família?

O porteiro encolhe os ombros.

— Era um moço muito calmo, muito delicado. An­dava sem emprego. Eu dizia para ele que tivesse paciência. Mas qual! Não aguentou... Há gente nervosa.

Falam já de Ivo como quem fala dum morto. O médico aproxima-se do grupo.

— Fiz uma tentativa desesperada. Injetei-lhe adrena­lina no coração. — Sacode a cabeça. — Não tenho muita esperança. Enfim... acontecem milagres...

Ao ouvir a palavra milagre a velha começa a rezar. De repente a moça se ergue, como que impelida por uma mola.

— Doutor! Ele está se mexendo... venha! Venha! Os três homens se aproximam da cama. O rosto de Ivo se move, seus olhos se entreabrem. Há um breve instante de aflitiva esperança. Ivo como que se baloiça, indeciso, por sobre as tênues fronteiras que separam a vida da morte.Mas parece haver do outro lado um chamado mais forte. O corpo se imobiliza.

O doutor inclina-se e ausculta-lhe o coração. Olha para a moça e diz, baixinho:

— Sinto muito. Mas não há mais nada a fazer.

A dona da casa desata a chorar. Com o rosto contraído numa expressão mais de estupefação que de dor, a rapariga olha do médico para o morto, do morto para a folhinha da parede, onde o número 27 em letras negras se destaca sobre o quadrado branco. Iam contratar casamento, hoje, hoje...O transatlântico vai partir. O transatlântico apita. É um gemido rouco, longo, doloroso, desesperado, irremediável. Debruçado à amurada, Ivo olha o vácuo. Agora é uma sombra resignada entre as outras sombras. O vento do grande mar desconhecido varre o barco dos suicidas. E todos eles ali vão em silêncio, enquanto na ponte o fantástico Capitão olha com seus olhos vazios a noite insondável.



(Ilustração: Max Ernst - men shall now nothing of this)






sexta-feira, 20 de agosto de 2010

NOSSA CAMA, de J. G. de Araujo Jorge






Olho nossa cama. Palco vazio

Sem o drama, sem a comédia


Do nosso amor.

A nossa cama branca,


Branca página, em silêncio,


De onde tudo se apagou...

(Meu Deus! Quem poderia ler aquelas ânsias, aqueles gemidos, aqueles carinhos, que a mão do tempo raspou, como nos velhos pergaminhos?...)


A nossa cama


Imensa, como a tua ausência,


Tão ampla, tão lisa, tão branca, tão simplesmente cama,


E era, entretanto, um mundo,


De anseios, de viagens, de prazer,

– oceano, que teve ondas e gritos encapelados,


e nele nos debatemos tantas vezes como náufragos


a andar... e a morrer...

Olho a nossa cama, palco vazio,


Em nosso quarto – teatro fechado –


Que não se reabrirá nunca mais...

Nossa cama, apenas cama, nada mais que cama


Alva cama, em sua solidão


Em seu alvor...

Nossa cama:


– campa (sem inscrição)


do nosso amor.



(Ilustração: Cecily Bbrown – justify my love)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O QUE É UM FILÓSOFO?, de Paulo Ghiraldelli






O que é um filósofo? Quase todos os mais escolarizados sabem o que é. Todavia, quando a pergunta é dirigida a alguém que estudou filosofia ou que fez o curso de graduação em filosofia ou que é reconhecidamente um filósofo, nem sempre aquele que pergunta obtém uma resposta satisfatória. Não raro, os que estão na empresa da filosofia complicam demais a resposta. Como todo e qualquer campo do saber, quem está nele sabe que detém algum poder – isso nos foi ensinado por Bacon, de um modo, e por Foucault, de outro. Alguns acreditam, então, que se respondem às perguntas que lhe fazem de um modo complicado, podem exercer o poder de maneira ampliada. Afinal, tudo que é misterioso, mesmo no mundo moderno, o mundo que Weber qualificou de desencantado, parece guardar mais poder que aquilo que é exposto claramente.

É claro que, como Aristóteles notou e praticou, pode-se falar de filosofia em diversos níveis e para diversos públicos segundo discursos diferentes. Mas, enfim, isso é desse modo para qualquer assunto. O que não é impossível de fazer é não conseguir explicar, para alguém com alguma escolarização, o que é ser filósofo, e isso de modo claro, objetivo e até mesmo simples. Aliás, quem não expõe de modo claro o que pensa, não pensa bem – não sabe corretamente o que acredita que sabe.

O filósofo ocidental é aquele tipo de intelectual que está inserido na conversação inaugurada pelos pré-socráticos e, enfim, colocada de um modo durável por Platão. Trata-se da conversa que, depois de Aristóteles, chamamos de metafísica. Metafísica e alguma coisa que começamos a saber o que é quando a comparamos com a física.

A física fala do mundo, das coisas materiais. Sua função, ao menos no início das cosmologias, era o de procurar um princípio (um arkhé, em grego), dado por um elemento material (água, terra, ar e fogo – para os gregos antigos), cujo funcionamento e conduta, uma vez mostrados, diria como todo o mundo se faz e se organiza. A meta-física, como o próprio nome já diz, não se prende ao que é físico, vai além da física (ou aquém, dependendo do ponto de vista), e quer encontrar princípios que regem o mundo em algo não material. Está embutida na metafísica a idéia de que há a aparência e há a realidade essencial de tudo, e que, em geral, tomamos a aparência pelo real e, então, vivemos na ilusão. Assim, o irmos para além da física, ao entrarmos na metafísica, podemos desvendar os mecanismos pelos quais cometemos esse erro, o que nos faz cair na ilusão e não enxergar o real. Eis aí o trabalho da filosofia. Eis aí o que faz um filósofo, em um sentido bem amplo: ele é aquele que acredita que há uma ilusão – um especial tipo de ilusão – que dá um trança-pés na maioria das pessoas, os não-filósofos, e que ele, o filósofo, pode contar a tais pessoas como a estrutura do cosmos coloca a perna na frente de todos, armando o trança-pés. Antes que simplesmente expor o que é o real, o filósofo seria aquele capaz de mostrar o mecanismo pelo qual o real não estaria sendo captado pelo chamado senso comum.

É claro que há filósofos que dizem que toda essa conversa de metafísica é bobagem. São essas pessoas, que se dizem antimetafísicos, também filósofos? Na maioria dos casos, sim! Denunciar as ilusões da filosofia ou da metafísica, pela via cética ou pela via de pensamentos deflacionários – ou descritivos, como os de Donald Davidson – não coloca tais pessoas como quem não sabe o que diz a metafísica, mas, antes, como experts da conversação que veio desde os pré-socráticos e Platão – filósofos, então.

Cada filósofo autêntico é um ingênuo e, não raro, um presunçoso. Ele acredita – e tem de acreditar – que pode dar fim à filosofia, pois vai desvendar de uma vez o mecanismo que estaria dando o trança-pés em todos, ou seja, a armação do cosmos ou do mundo que faz com que o chamado senso comum tome o que é a mera aparência pelo real. Ao mesmo tempo, cada filósofo autêntico é um presunçoso, pois ele continua essa investigação mesmo olhando para trás e vendo que os que investigaram antes a questão não eram tolos – eram grandes filósofos.

Assim, em termos gerais, há dois tipos de filósofos: o metafísico e o deflacionário. Um, infla a filosofia com metafísica, o outro tenta fazer uma descrição do mundo racional, mas de um modo descritivo, querendo mostrar que não é necessário usar da dualidade central da metafísica – aparência e realidade – para tecer uma boa descrição do mundo, da nossa atividade no mundo e tudo o mais.

Esses segundos filósofos poderiam ser os cientistas? Não! Por uma razão simples: ainda que esses filósofos possam evocar algum tipo de empirismo ou pragmatismo, ou mesmo algum tipo de ceticismo, eles não fazem investigação a partir de experimentos e experiências, como os cientistas. Quando falam em experiências, estas são imaginárias, não são possíveis de serem efetivamente feitas em laboratório. São filósofos, sim, pois tentam fazer uma exposição geral do mundo a partir de uma descrição racional, ainda que digam que a exposição racional do mundo que estão fornecendo ou que poderiam oferecer tenha dispensado a presença do célebre trança-pés.

Particularmente, como filósofo, eu sou daqueles que ama ler os colegas metafísicos, embora me sinta mais companheiro dos deflacionários. Amo Platão, é certo, mas fui amigo, mesmo, de Rorty.

Ao longo dos anos em que fui me filiando à empresa da filosofia, procurei criar minha própria definição do que seria a filosofia, e do que eu mesmo seria nisso tudo. Cheguei então à formulação atual: o filósofo é um desbanalizador do banal. O filósofo não busca o que está “por trás”, mas é aquele que fica estupefato com o mais banal, o que está sob a visão e observação de todos. Não é que ele esteja vendo mais que outros, ou de modo mais profundo, ele apenas é capaz de redescrever o que vê (ou que escuta ou que lê) de modo que aquilo que ficou banal se desbanaliza e ganha ou recupera fama, prestígio, adquire ou readquire capacidade de não ser mais banal.

É claro que bons escritores, diretores de cinema, artistas de teatro etc. podem desbanalizar o banal. Mas, o banal do qual eu falo é o banal desbanalizado a partir da conversação e da linguagem da filosofia. Encaixa-se perfeitamente na tradição dos assuntos que se colocaram, de uma maneira ou de outra, na agenda da filosofia ocidental ou que poderiam ter sido colocados. Por isso, não raro, a minha redescrição é sempre a partir de uma já boa redescrição. Não à toa a filosofia, como eu a prático, é uma forma de conversação sobre a cultura. Nessa linha, tento manter a articulação entre filosofia teórica e prática, como os filósofos gregos fizeram, negando o que atualmente a maioria dos professores de filosofia da universidade fazem – eles falam de filosofia e, no entanto, não vivem filosoficamente. O que os guia na vida são os interesses mundanos, são levados pela vida e não conseguem eles próprios levar a vida. Não são filósofos, de modo algum.

Uma boa definição de filosofia é aquela que não serve apenas para explicar o que o filósofo que a formulou faz. Ela tem de se encaixar como boa explicação da atividade de todos os outros filósofos do passado. Eles, os filósofos do passado, explicaram suas atividades de outro modo, é claro. No entanto, se voltassem à vida e lessem a minha definição de filosofia, seriam capazes de dizer: “é, isso não foge tanto do que eu mesmo fiz”. Isso deve valer, inclusive, para os não deflacionários. A definição tem de ser específica, para caracterizar o que é o filósofo, e ao mesmo tempo ampla, de modo a trazer para o seu interior até os metafísicos – contra os quais podemos, ora ou outra, nos colocar.

Ora, minha definição obedece a esses critérios? Isso é uma das coisas que tenho posto à prova, a cada dia, a cada iniciativa minha na vida filosófica que levo. Sempre convido o meu leitor ou ouvinte a participar dessa aventura comigo. Pois, filosofia é algo da conversação pública, da investigação coletiva. Nenhum filósofo imaginou filosofar sozinho. O filósofo que pensa fazer isso, não percebeu ainda que não é filósofo.




(Ilustração: René Magritte – la philosophie dans le boudoir)






segunda-feira, 16 de agosto de 2010

ELEGIA ÍNTIMA, de Ivan Junqueira








Minha mãe chorando no fundo da noite
rachou o silêncio do quarto adormecido.
Meu pai olhava o escuro e não dizia nada,
Um relógio preto gotejava barulho.

Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.

Minha mãe chorando no fundo da noite
Apunhalou o sono de Deus.



(Os Mortos)


(Ilustração: Zinaida Serebryakova)



sábado, 14 de agosto de 2010

O MITO DA NÃO-VIOLÊNCIA BRASILEIRA, de Marilena Chauí






Por que mito? Porque:

a) um mito opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferidas para uma solução imaginária, que torna suportável e justificável a realidade. Em suma, o mito nega e justifica a realidade negada por ele;

b) um mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente;

c) um mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam, isto é, um mito produz valores, idéias, comportamentos e práticas que o reiteram na e pela ação dos membros da sociedade. Em suma, o mito não é um simples pensamento, mas formas de ação;

d) um mito tem uma função apaziguadora e repetidora, assegurando à sociedade sua auto-conservação sob as transformações históricas. Isto significa que um mito é o suporte de ideologias: ele as fabrica para que possa, simultaneamente, enfrentar as mudanças históricas e negá-las, pois cada forma ideológica está encarregada de manter a matriz mítica inicial. No nosso caso, o mito fundador é exatamente o da não-violência essencial da sociedade brasileira.

Muitos indagarão como o mito da não-violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa. Ora, é justamente no modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se. Se fixarmos nossa atenção ao vocabulário empregado pelos mass media, observaremos que os vocábulos se distribuem de maneira sistemática:

- fala-se em chacina e massacre para referir-se ao assassinato em massa de pessoas indefesas, como crianças, favelados, encarcerados, sem-terra;

- fala-se em indistinção entre crime e polícia para referir-se à participação de forças policiais no crime organizado, particularmente o jogo do bicho, o narcotráfico e os sequestros;

- fala-se em guerra civil tácita para referir-se ao movimento dos sem-terra, aos embates entre garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aos homicídios e furtos praticados em pequena e larga escala, mas também para referir-se ao aumento do contingente de desempregados e habitantes das ruas, aos assaltos coletivos a supermercados e mercados, e para falar dos acidentes de trânsito;

- fala-se em fraqueza da sociedade civil para referir-se à ausência de entidades e organizações sociais que articulem demandas, reivindicações, críticas e fiscalização dos poderes públicos;

- fala-se em debilidade das instituições políticas para referir-se à corrupção nos três poderes da república, à lentidão do poder judiciário, à falta de modernidade política;

- fala-se, por fim, em crise ética.

Essas imagens têm a função de oferecer uma imagem unificada da violência. Chacina, massacre, guerra civil tácita e indistinção entre polícia e crime pretendem ser o lugar onde a violência se situa e se realiza; fraqueza da sociedade civil, debilidade das instituições e crise ética são apresentadas como impotentes para coibir a violência. As imagens indicam a divisão entre dois grupos: de um lado, estão os grupos portadores de violência, e de outro, os grupos impotentes para combatê-la.

Essas imagens baseiam-se em alguns mecanismos ideológicos por meio dos quais se dá a conservação da mitologia.

O primeiro mecanismo é o da exclusão: afirma-se que a nação brasileira é não-violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. "Eles" não fazem parte do "nós".

O segundo é o da distinção: distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero, passageiro, uma "epidemia" ou um "surto" localizado na superfície de um tempo e de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência não-violenta.

O terceiro é jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinquência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (furto, roubo e latrocínio). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem são os "agentes violentos" (de modo geral, os pobres e, entre estes, os negros) e legitimar a ação da polícia contra a população pobre, os negros, as crianças de rua e os favelados. A ação policial pode ser, às vezes, considerada violenta, recebendo o nome de "chacina" ou "massacre" quando, de uma só vez e sem motivo, o número de assassinados é muito elevado. No restante das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural, uma vez que se trata da proteger o "nós" contra o "eles".

Finalmente, o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem não-violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção à natural fragilidade feminina, proteção inclui a idéia de que as mulheres precisam ser protegidas de si próprias, pois, como todos sabem, o estupro é um ato feminino de provocação e sedução; o paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a natural inferioridade dos negros, os quais, como todos sabem, são indolentes e safados; a repressão contra os homossexuais é considerada proteção natural aos valores sagrados da família e, agora, da saúde e da vida de todo o gênero humano ameaçado pela Aids, trazida pelos degenerados, etc..

No caso desse mecanismo de inversão, foi sintomática a reação de uma parte da classe média diante do Prouni. De fato, muitos disseram, pasmem!, que se tratava de “opressão racial contra os brancos”, no momento da entrada na universidade, e de “estímulo ao ódio contra os negros”, durante a permanência universitária. Em suma, o Prouni seria a criação do racismo no Brasil!

Mais clara e ainda mais paradigmática do mecanismo da inversão é o que acaba de ocorrer com a Ministra Matilde Ribeiro pela entrevista concedida à BBC: para puni-la por todas as políticas de ações afirmativas e de criação democrática de direitos sociais, econômicos e culturais, para puni-la por sua luta contra a violência racial, os meios de comunicação de massa tentam transformá-la em agente da violência. Ora, ao isolar suas palavras do contexto, os defensores da “não-violência” praticam uma ato de violência psíquica, intelectual e política, pois deformam e traem o que ela disse. Usando essa violência, declaram que não há racismo no Brasil, a não ser este que, segundo eles, ela teria instituído. E, suprema ironia, um dos jornais atacantes e pretensamente não racista costumava referir-se a FHC como “presidente mulatre”!

Em resumo, no Brasil, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que isto, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira, que, em sua violência cotidiana, reitera, alimenta e repete o mito da não-violência.



(Ilustração: Wendy Vaughan )