quinta-feira, 19 de outubro de 2017

CAFÉ QUENTE, NO TREM, de Clarice Lispector







Levantou-se, caminhou com o barulho das rodas, os movimentos inclinados contra a direção do trem; de algum modo achava divertido o esforço que fazia e talvez por isso sorriu como se completasse algum desígnio; penetrou no carro restaurante, pediu café ajeitando o chapéu empoeirado, assumindo vagamente uma atitude de pessoa alta, grande e bem disposta. Sentia uma clara paz aberta como um campo ignorado e tranquilo; aos poucos esqueceu-se de si própria e passou a observar com dócil interesse as coisas do trem, uma mulher mastigando. Raras fagulhas atravessavam com rápida violência as janelas, aquele já-já-já das rodas que pareciam um rumor interno. Entardecia, o trem corria pelos campos já sem cor. O restaurante estava quase vazio, sobre as toalhas manchadas as moscas pousavam, tudo era áspero e seco de poeira. Foi com um sobressalto que notou o próprio abandono. Perscrutou-se com ligeira ansiedade. Alguma coisa imperceptível já se transformara no entanto. Com alguma inquietação ela se escutava, o ser acordado, profundamente intranquilo. Atentava de leve; desvanecera-se a naturalidade das coisas ao seu redor, como o último laivo de morno prazer sonolento ao lavar o rosto, agora a própria existência era sacudida, dura e várias vezes quebrada. Ela mesma sentia-se intimamente sem conforto, as entranhas despertas como se tivesse os sapatos molhados ou a roupa suada presa às costas — num desgosto desassossegado afastou-se do encosto do banco. Compreendia numa decepção sem força e estupefata, já um começo de profundo cansaço fulgurando nos olhos, compreendia que não chegara a nenhuma posse, que a partida para a cidade não era simbólica. E a sensação que experimentara há poucos minutos? buscava ela esperançosa. Mas não, não — e ela não estava à altura de compreender seus pensamentos — na verdade o que havia de intocado, desperto e confuso nela mesma ainda tinha forças para fazer nascer um tempo de espera mais longo que o da infância até os seus dias, de tal modo ela não chegara a nenhum ponto, dissolvida vivendo — isso assustava-a cansada e desesperada do próprio fluir instável e isso era algo horrivelmente inegável, e isso no entanto a aliviava de um modo estranho, como a sensação a cada manhã de não ter morrido à noite. Com um despercebido movimento de desânimo perguntava-se confusamente se esqueceria para sempre o que sentira afinal de tão firme e sereno e cuja espécie já agora ela não podia precisar com nitidez, num começo de esquecimento. Não, não esqueceria, agarrava-se ela a si mesma sem saber, apenas como usá-lo? como viver disso? jamais poderia gastá-lo e isso era também algo inegável, o trem carregava-a para a frente como perdendo-a de si própria, as rodas resfolegavam, o rapaz do restaurante inclinava o corpo segundo o movimento do vagão, equilibrando-se, desequilibrando-se, o café, era quente, sim, certamente a primeira vez no mundo que num vagão restaurante alguém conseguia tomar café quente, o que era uma coisa de se sacudir a cabeça de leve, surpresa, como ela fazia agora agitando a fita vermelha do chapéu marrom.



(O Lustre)




(Ilustração: Daniel Dumetz - La femme au chapeau brun)







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