terça-feira, 2 de agosto de 2016

PARA UMA GAROTA DE QUINZE ANOS, de Lourenço Diaféria






Nós a trouxemos para casa logo nos primeiros dias do mês de novembro, faz quinze anos. Tinha o rosto miúdo, um tufo enroladinho de cabelos pretos, e os olhos já prometiam ser o que são hoje: janelas escancaradas sob cílios longos. Chorava nas horas certas. Costumava tomar a última mamadeira da noite, ou largar o peito da mãe, já adormecida, e assim varava a madrugada até as primeiras luzes do dia.

Aprendeu a sorrir com a precocidade das crianças que vão ser alegres, e ficamos surpresos ao ver que o bebê descia do berço e ensaiava os passos na direção dos braços que o aguardavam. Cresceu com jeito de carneirinho: um carneirinho macio que gostávamos de carregar no colo, até que seus pés se desprenderam de todo e buscaram o contato com o chão de cimento, conquistando a gloriosa sujeira da infância.

Depois do banho, penteada, perfume de sabonete, se encolhia junto às minhas mãos e me aquecia com o calor de seu pijama de flanela.

Vejo-a de lancheira cor-de-rosa descobrindo a primeira tarde na escola, jardim onde se reuniam outras crianças de sua idade.

Um dia me trouxe um desenho pintado com todos os lápis de cor que eu lhe havia dado. Eu disse: “Está muito bonito! ”.

E era verdade.

Ganhou cartilha. Descobriu a música que as letras fazem quando se misturam a outras letras. Fez a primeira composição com tinta, ficou com receio de tirar nota baixa, roeu as unhas, frequentou uma escola-modelo no Bexiga (magnífico projeto de ensino depois reduzido à expressão mais simples de uma escola como outra qualquer).

Nós a criamos com simplicidade e ternura.

No íntimo, me recuso a aceitar que todas essas coisas levaram apenas quinze anos para acontecer e transformá-la na mocinha morena que misturou no tecido de seu temperamento uma densa compreensão pelas pessoas e principalmente pelas crianças ainda bem pequenas, que se agarram a ela como se tivesse visgo: compreensão e carinho misturados a uma pitada de timidez muito mal disfarçada pela garra com que se atira às decisões que aprendeu a tomar sozinha, senhora de seu nariz – aliás desafiante e arrebitado.

Quinze anos.

Imaginava eu que nessa idade as meninas morenas e loiras sonham sempre com longas festas, onde sempre aparece um cara que, além de tocar uma baita bateria, consegue um equipamento de luz negra, e tem um conjunto que faz um som da pesada, ou então chega com duas caixas e um amplificador, e tudo fica muito louco até o momento solene da valsa, com as meninas portando velas acesas e os rapazes com flores, enfim, a zorra dos quinze anos que os pais curtem com tremor dentro do peito, isso quando não se cotizam para o grande baile das debutantes, rigorosamente lindas, apresentadas geralmente por um compenetrado colunista social ou por um artista que, “… como anunciamos ao distinto público”, acedeu ao convite da cidade, mesmo tendo de abandonar compromissos profissionais já assumidos, como a filmagem dos vinte últimos capítulos da novela em que é personagem principal.

Quinze anos.

Onde terei errado na minha função de pai?

Pois a menina de quinze anos que carreguei no colo e que admirei através do vidro da maternidade na noite de novembro em que a lâmpada cor-de-rosa se acendeu recusa com um sorriso provocador qualquer coisa que lembre essa festa de aniversário. E apenas deposita um beijo na minha testa, como se esse gesto bastasse para ela provar que acaba de completar quinze anos.

Não sei onde foi buscar esse despojamento e essa indiferença pela vaidade frágil que dura o tempo do spray no ar.

Chego a me atemorizar. Penso que, por desleixo ou falta de prática, falhei nalgum ponto – e criei a filha de um operário, de um ferroviário, de um lutador de boxe que perdeu por pontos, de um balconista das Casas Pernambucanas, de um lanterninha de cinema, ou – para pensar o pior – criei a filha de um mero Cronista da Cidade.

Que Deus me perdoe se falhei. E que Deus me abençoe se minha filha de quinze anos pensa exatamente como deve pensar uma garota morena de quinze anos, sem os cacoetes e sem os falsetes que nós, os adultos, gostamos de emprestar a essa idade própria das decisões pessoais, quando se aprende a usar o dom – hoje raro e falsificado – chamado: a liberdade de ser.




(Ilustração: Isabel Guerra - la luz)



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