sexta-feira, 8 de abril de 2016

ISTRUPU VIRTUAL, de José Carlos Sibila Barbosa






Eu desci do táxi com alguma pressa, embora ainda faltasse uma hora para a reunião que traria para a agência de publicidade uma das maiores contas do país, mas a gente nunca sabe as peças que o trânsito e o dia a dia de uma cidade grande pode à gente aplicar e resolvi adiantar um pouco. Perder aquele encontro era algo impensável.

Arrisquei uma travessia irresponsável naquela rua maluca com trânsito nos dois sentidos; escutei xingamentos de motoristas de carros e motos que, para falar a verdade, tinham razão. Um ônibus quase me atropela ao desviar do veículo a sua frente. Finalmente o lado oposto da rua estava ali, a um passo da minha trajetória e eu pronto para pisar a salvo no outro lado da rua e seguir a tempo e com segurança para a reunião que se mostrava mais valiosa que a minha própria vida. Quando vou sair da rua e pisar na calçada uma senhora vem em minha direção e corremos o risco de um atropelamento a dois à beira da calçada da salvação, eu a puxei vigorosamente e caímos quase deitados sobre um desses degraus de calçada. Quase sem fôlego, fui logo falando meio bravo, mas sem muita energia, que eu quase já não tinha mais, ainda mais naquela posição meio deitado na rua com uma senhora.

- Mas que loucura é essa, a gente quase foi atropelado minha senhora.
            - Senhorita e com a graça do Divino vou morrer assim.
- Tá bom, mas a senhorita quase me leva junto e o seu Divino não ia fazer nada.
- É que eu estou com pressa e queria perguntar uma coisa aqui dessa rua aqui do papel, Luiz, não sei lê o resto.
            - Rua Luiz XV - Eu li com dificuldade naquele papel todo amassado.
- Pura verdade, abençoado. Olha, igualzinho eu vi escrito ali na placa da rua.
- Mas se a senhorita leu lá na placa, por que veio me perguntar onde é a rua?
-Não sei onde fica a casa da Dona Cleuza.
-Mas é só olhar o número.
-Não tem e eu achei que o senhor poderia me ajudar.
-Mas se não tem o número como é que eu posso ajudar?
-O senhor é bonito, bem vestido, deve saber das coisas. Eu só tenho o número do telefone da dona Cleuza.
-Então liga para ela.
-Não tenho telefone.
-Tome, usa o meu.
-Não sei usar isso não, abençoado.
-Me dá aqui o número e eu ligo, mas é a última coisa que eu faço, depois tenho que ir para minha reunião.
- O abençoado é muito bom, se um dia precisar de mim é só falar.

Do outro lado da linha atendeu a Dona Cleuza, que eu diria ter já uns setenta anos. Passei logo o celular para minha companheira de calçada.

            -Toma, acho que é a Dona Cleuza.
            -E o que eu faço?
            -Fale com ela, diga “alô” .
-Alô, é Dona Cleuza? É que eu estou um pouquinho atrasada e não consigo achar a casa da senhora. O moço abençoado que está aqui meio deitado comigo disse que é preciso o número da casa. Não Dona Cleuza, Deus o livre, ele não me istrupô não. O que?  Estamos meio deitados sim e ele me abraçou. Devo isso a ele. Não, nem deu tempo, ele não me istrupô não. Polícia? Mas por que Dona Cleuza? Dona Cleuza, alô Dona Cleuza.

Nisso a minha parceira de calçada virou-se para mim e decretou:

-Acho que o senhor está azarado. Dona Cleuza disse que ia ao outro telefone chamar a polícia para o senhor não me istrupá mais..
-Essa mulher é louca, tem neura de cidade grande.
-Magina se o senhor tão fino ia fazer uma maluquice dessa para uma senhorita que já vai para mais dos sessenta, que não é nem daqui e passa até alguma necessidade, que nem comer ainda comi hoje.
-A senhora não vai querer agora que eu pague alguma coisa para comer?
-Não vou não senhor, não sou de pedir nada não. O que eu quero é trabalhar.
-Pegou o número da casa dela?
-Ainda não. Ela ainda não voltou do outro telefone. Alô Dona Cleuza, a senhora pode me dar o número da casa? Por que a senhora não me quer mais? Eu preciso muito do trabalho. Não a senhora está com desconfiança à toa. Eu não fui istrupada Dona Cleuza. Estou inteirinha, virgem como vim a terra.

Eu tirei o celular da minha companheira de calçada e esbravejei com a interlocutora do telefone:

-A senhora é uma louca. Pode me dar o número da sua casa que eu vou levar essa pessoa que está comigo pessoalmente aí. Eu não estuprei ninguém, não houve nenhum estupro e a mulher que está aqui comigo é uma santa. Não, não e não. Não vou levar para minha casa e pode me dar o número. Alô, alô. Desligou.
-Para falar no certo, eu acho que o senhor devia é se mandar daqui, porque a polícia pode chegar e é logo.
-A senhora já viu a polícia chegar na hora certa em alguma ocorrência?
-Abençoado, estou escutando aquele barulho do medo.
-Deve ser outra coisa. Eles nunca vão chegar a tempo. E depois, não fizemos nada de errado, eles vão falar o que?
-Istrupu.
-Para com isso.

O toque do celular me faz lembrar-me da reunião, ouço a voz nervosa do dono da agência perguntando por que eu ainda não havia chegado:

-Já estou chegando meu chefe, tive um pequeno incidente, mas já já eu estou aí. Eu sei que é a conta mais importante da agência e eu também preciso muito dela. Eu já chego.

Desligo e a minha companheira de calçada me adverte:

            -O senhor não tem jeito para mentiroso.
            -Eu não sou mentiroso.
            -Mas mentiu para a pessoa aí do telefone.
            -Não menti e já estou indo.
            -Vai não, olha a polícia aí e está mostrando os dentes como sempre.

Parecia um batalhão inteiro. Quatro viaturas paralisaram o trânsito, duas subiram na calçada e uma multidão de soldados desceu de armas em punho, fuzis, metralhadoras, o helicóptero Águia rondava sobre minha cabeça. Até um carro de resgate chegou e dois helicópteros midiáticos procuravam se posicionar para o melhor ângulo. Em questão de segundos eu iria virar uma celebridade. O meu celular volta a tocar e faço menção de pegá-lo e um soldado grita para todos ouvirem:

            -Não se mexa, não se mexa, solte a mocinha.
            -Mas eu não estou segurando e ela nem é uma mocinha.
            -Para, para ou eu atiro.
-Seu guarda, se o senhor olhar bem eu nem estou me mexendo e eu só quero pegar o meu celular.

O repórter de uma emissora de televisão me perguntou se eu sabia o que acontecia com estuprador na cadeia. O policial o afastou num jogo encenado e veio me algemar. Naquele momento eu já me sentia uma celebridade e arrisquei um argumento.

-Seu policial, o senhor tem ideia do ridículo desta situação? A possível vítima está aqui, pergunte a ela se houve alguma coisa.
-Ela será levada para exame de corpo de delito.

O que sei é que depois daquela trapalhada toda eu estava no distrito com uma acusação de estupro e desacato à autoridade e a minha companheira fora levada para o tal exame. O delegado, com uma barriga enorme, que não cabia dentro da calça e uma gravata solta, sentou-se a minha frente. Suava e a pressão arterial lá pelos dezoito. Falou com aquela voz de quem já estava atendendo o vigésimo flagrante do dia.

-Flagrante de estupro é coisa grave. Lá fora vira celebridade, aqui dentro vira mocinha. E ainda tem o desacato, mas o garanhão tem grana e vamos dar um jeito de te ajudar.
-Eu já disse que não estuprei ninguém.
-Eu sei, mas as coisas não são o que são, elas são o que  parecem ser. Está tudo certo, a intenção da polícia é sempre ajudar.
-Eu não vou corromper ninguém!
-O senhor não me fale em corrupção dentro de um distrito policial.
-Então vamos falar onde?
-Seu patrão já conversou comigo por telefone. Está tudo resolvido, ele quer a celebridade junto com ele.
-Mas eu não sou uma celebridade.
-Virou, saiu em tudo que é televisão, em rede Nacional. Espere o seu advogado para dar um aspecto legal aos procedimentos e depois pode ir embora.
-Mas e a senhora que foi estuprada?
-A gente dá uma ajeitada nela, uns troquinhos e tudo se acerta. Mas tem que ser tudo dentro da lei E veja se fala umas coisas boas da polícia quando a mídia te assediar e não complica a vida de ninguém. O senhor tem muita sorte de estar ao lado do poder. Até um estuprador se torna celebridade e celebridade vende, meu amigo. A sua agência quer o senhor por lá e ainda vai fazer o maior sucesso com as mocinhas.

Um pouco mais tarde eu saí pela porta dos fundos do distrito, acompanhado pelo advogado e por um representante da agência que eu trabalhava. Nunca mais vi a senhora que eu estuprei e o meu telefone tocava tanto que tive que mudar o número.


(Ilustração: Zevin Blum - men & their machines)





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