quinta-feira, 26 de novembro de 2015

CHANCE / SORTE, de Paul Geraldy






Et pourtant, nous pouvions ne jamais nous connaître !

Mon amour, imaginez-vous

tout ce que le Sort dû permettre

pour que l'on soit là, qu'on s'aime, et pour que ce soit nous ?




Tu dis : "Nous étions nés l'un pour l'autre." Mais pense

à ce qu'il a dû falloir de chances, de concours,

de causes, de coïncidences,

pour réaliser ça, simplement, notre amour !




Songe qu'avant d'unir nos têtes vagabondes,

nous avons vécu seuls, séparés, égarés,

et que c'est long, le temps, et que c'est grand, le monde,

et que nous aurions pu ne pas nous rencontrer.




As-tu jamais pensé, ma jolie aventure,

aux dangers que courut notre pauvre bonheur

quand l'un vers l'autre, au fond de l'infinie nature,

mystérieusement gravitaient nos deux coeurs ?




Sais-tu que cette course était bien incertaine

qui vers un soir nous conduisait,

et qu'un caprice, une migraine,

pouvaient nous écarter l'un de l'autre à jamais?




Je ne t'ai jamais dit cette chose inouïe :

lorsque je t'aperçus pour la première fois,

je ne vis pas d'abord que tu étais jolie.

Je pris à peine garde à toi.




Ton amie m'occupait bien plus, avec son rire.

C'est tard, très tard, que nos regards se sont croisés.

Songe, nous aurions pu ne pas savoir y lire,

et toi ne pas comprendre, et moi ne pas oser.




Où serions-nous ce soir si, ce soir-là, ta mère

t'avait reprise un peu plus tôt ?

Et si tu n'avais pas rougi, sous les lumières,

quand je voulus t'aider à mettre ton manteau ?




Car souviens-toi, ce furent là toutes les causes.

Un retard, un empêchement,

et rien n'aurait été du cher enivrement,

de l'exquise métamorphose !

Notre amour aurait pu ne jamais advenir !

Tu pourrais aujourd'hui n'être pas dans ma vie !...




Mon petit coeur, mon coeur, ma petite chérie,

je pense à cette maladie

dont vous avez failli mourir...





Tradução de Guilherme de Almeida:





Podíamos jamais nos conhecer talvez!

Meu amor, imagine, pois,

Tudo isso que a sorte nos fez

Para estarmos aqui, para sermos nós dois!




Nós fomos feitos um para o outro – diz você.

Mas pense no que foi preciso se interpor

de coincidências, para que

pudesse haver apenas isto: o nosso amor!




Que antes de unir nosso destino vagabundo,

vivemos longe um do outro, e sós, separados,

e que é tão longo o tempo, e que é tão grande o mundo,

e a gente era capaz de não se ter encontrado.




Você nunca pensou, meu romance bonito,

e que este amor correu de risco e indecisões

quando, ao encontro um do outro, em torno do infinito,

gravitaram à toa os nossos corações?




Você não sabe então que era incerta essa estrada

que conduziu nossos ideais,

e que um capricho, um quase nada

podia não ter nos juntado nunca mais?




Nunca lhe confessei esta coisa esquisita:

quando visitei você pela primeira vez,

a princípio nem vi que você era bonita...

não reparei quase em você.




Sua amiga me atraiu muito mais, com seu sorriso.

Foi só muito depois que cruzamos o olhar...

Nós podíamos não ter lido nada disso:

e você, não compreender, e eu, nem sequer ousar.




Que seria de nós se, aquela noite, alguém

viesse buscar você antes?

Ou se, entre luzes, você não corasse também

quando eu quis ajudar a pôr o seu manteau?...




Pois foram essas razões, lembra-se ainda?

Um atraso, um impedimento,

e nada existiria deste encantamento,

desta metamorfose linda!

Nunca aconteceria o amor que aconteceu!

Você não estaria agora em minha vida!...




Meu coração, meu coração, minha querida,

penso naquela doença

que você quase morreu...





(Toi et Moi; Eu e Você)





(Ilustração: Adrien-Henri Tanoux)







segunda-feira, 23 de novembro de 2015

CRÔNICA, de Caio Fernando Abreu






Meu nome é Caio F.

Moro no segundo andar,

mas nunca encontrei você na escada. 



Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.

Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.

No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?

Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)

Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.

Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas caírem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.



(OESP/ Caderno 2 de 29/07/1987)


(Ilustração: De Chirico - Los adioses del poeta)


















quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O OUTRO BRASIL QUE VEM AÍ, de Gilberto Freyre







Eu ouço as vozes

eu vejo as cores

eu sinto os passos

de outro Brasil que vem aí

mais tropical

mais fraternal

mais brasileiro.

O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados

terá as cores das produções e dos trabalhos.

Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças

terão as cores das profissões e regiões.

As mulheres do Brasil em vez das cores boreais

terão as cores variamente tropicais.

Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,

todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor

o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.

Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil

lenhador

lavrador

pescador

vaqueiro

marinheiro

funileiro

carpinteiro

contanto que seja digno do governo do Brasil

que tenha olhos para ver pelo Brasil,

ouvidos para ouvir pelo Brasil

coragem de morrer pelo Brasil

ânimo de viver pelo Brasil

mãos para agir pelo Brasil

mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis

mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil

mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar)

mãos livres

mãos criadoras

mãos fraternais de todas as cores

mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos,

sem Irineus

sem Maurícios de Lacerda.

Sem mãos de jogadores

nem de especuladores nem de mistificadores.

Mãos todas de trabalhadores,

pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,

de artistas

de escritores

de operários

de lavradores

de pastores

de mães criando filhos

de pais ensinando meninos

de padres benzendo afilhados

de mestres guiando aprendizes

de irmãos ajudando irmãos mais moços

de lavadeiras lavando

de pedreiros edificando

de doutores curando

de cozinheiras cozinhando

de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.

Mãos brasileiras

brancas, morenas, pretas, pardas, roxas

tropicais

sindicais

fraternais.

Eu ouço as vozes

eu vejo as cores

eu sinto os passos

desse Brasil que vem aí.




(1926)



(Poesia Reunida)





(Ilustração: Carybé - cotidiano)




segunda-feira, 16 de novembro de 2015

CERTA ENTIDADE EM BUSCA DE OUTRA, de Qorpo Santo





Comédia em dois atos

PERSONAGENS:
Velho Brás;  homem  sisudo.
Ferrabrás; estudante, filho adotivo deste.
Micaela (Tagarela), mulher pouco comedida ou respeitável.
Satanás

ATO PRIMEIRO

BRÁS (entrando) – Quem diabo está nesta casa!? (muito admirado.) Por um dos reposteiros vi aqui a Satanás com olhos adiante e pernas atrás! Depois vi Judas Iscariotes, que andava a trotes! Por uma janela, a Micaela abrindo a boca de gamela! Mas o meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite maquina! Oh! Esse, nem por sombras me quer aparecer, ou  eu pude ver! Bárbaros! Assassinos! Traidores! Que tudo me roubam! Comem como burros; como cavalos; e depois querem que eu trabalhe para sustentá-los! Infames! Poluem a honra das famílias! Divorciam esposos para massacrá-los, e a seu gosto fruírem seus bens! Escravizam  em vez de libertarem... Hei de lançar por terra tão indigno governo! Ou hão de os governantes e governados terem  direitos e deveres, ou nenhum governo durará no poder mais que treze meses! A Nação, cujo espírito será como o de um só homem, - os inutilizará, a todos embrutecendo ou a cabeça fedendo! Ainda não estão satisfeitos estes entes ( a que chamam Governo porque ocupam as posições oficiais ) com os milhões de desgraças que têm ocasionado!? Quererão bilhões, trilhões Assassinos, traidores de sua Pátria! Até onde chegará a vossa perversidade? E até que ponto subirá também, ou a que extensão alcançará a vingança do supremo Arquiteto do Universo!? Tremei, malvados! A trombeta final não tardará muito a tocar a voz: - Sejam queimados e reduzidos a cinzas!
(Aparece Satanás.)
BRÁS – Infeliz! Que fazes aqui?
SATANÁS – Sou Satanás, rei dos infernos, encarregado pelos demônios para destruirmos  os maus!
BRÁS – Oh! Dai-me um abraço! Sois meu Irmão, meu amigo e companheiro! Estais            armado?
SATANÁS – Sim. Trago as armas – do poder e da vingança.
BRÁS – Pois sabei que eu empunho a espada da justiça; o revólver do direito e o punhal da razão! Combina-se bem com as tuas. Triunfaremos!
SATANÁS – Sem dúvida. Com tais armas, jamais haverá poder que nos possa vencer!
BRÁS – Muito bem! Muito bem! Venha de lá outro abraço! (Torna a abraçá-lo.)
MICAELA (entrando muito apressadamente)  - Oh! Vivam! Os Srs. Juntos! Que bela liga há de fazer Satanás com o velho Brás! Não esperava ver o grande prazer de os encontrar tão amigos; e até abraçados! Que lindos! Modificarão suas ideias!? Sem dúvida grandes negócios políticos os hão juntado... Deus os conserve para felicidade pública e individual. (Apontando para o próprio peito.)  
BRÁS – Seja bem-vinda, Sra. D. Micaela! Não sabe quanto aprecio a sua presença (À parte: ) e ainda mais a sua ausência – cá para nós, a quem nenhum malévolo ouve. Que notícias nos traz e o que há de novo pelo seu bairro? O que nos conta finalmente?
MICAELA - Estou muito escandalizada! Sendo eu a mulher menos faladora que há, houve quem atrevesse-se à audácia de apelidar-me Tagarela: e nesta mesma casa meus ouvidos ouviram suas tão duras palavras!
BRÁS – Sinto profundamente que tão grande infortúnio pesasse tanto sobre a cabeça e o coração de minha muito prezada... Sra. D. Micaela Tagarela!
MICAELA – E o Sr. também me insulta!? Com efeito, não o esperava!
SATANÁS -  Oh! Eu não sabia de tal. Prometo que há de ser vingada, que... a Sra. bem sabe! Eu não sou peco; e tenho à minha disposição a força e poder necessário para punir todos aqueles que ofendem a quem ninguém ofendeu. Tenho na minha carteira as sentenças para todas espécies de crimes, e fique certa que, ao abri-la, hei de puni-la! Isto é, hei de vingá-la!
MICAELA – Muito agradecida, Sr. Satanás! Muito obrigada; eu sou a sua menor, porém mais afetuosa criada! Quer saber a única cousa que me pesa? É que quando o Sr. defende ou castiga sempre lesa! Entretanto sou de algum modo forçada a aceitar o seu tão importante oferecimento!
BRÁS (chegando-se e apalpando os peitos de Tagarela)- Que pomos deliciosos!
MICAELA – Oh! Sr. Brás! Queira retira-se da minha presença! O Sr. bem sabe que eu não sou dessas mulheres mundanas, para com as quais se procede de tal modo!
BRÁS – Desculpe-me, Sra. Tagarela! Pareceu-me – duas lindas laranjas; é por isso que quis tocá-los.
MICAELA – Pois não continue a ter desses enganos, porque podem ter más consequências!
SATANÁS – Sim! Sim! (À parte: )Penso que são conhecidos há muito! É talvez minha presença que os está incomodando! Retiro-me portanto. (Vai saindo; Brás o agarra.)
BRÁS – Onde vai? Aonde vai? Somos companheiros; e se não chega para dois ao mesmo tempo, há de chegar passada uma hora!
SATANÁS – Não! Não! Sempre tive, tenho e terei medo de mulheres. É para mim o objeto de mais perigo que  o  ... Ah! não digo! Mas fique certo que...sim!
MICAELA – Passem bem! Passem bem, meus Srs.! (Retirando-se com a frente para ambos, e entrando em um dos quartos.)
BRÁS (fazendo um cumprimento, e seguindo-a)- Então já vai? Não acha cedo? Eu... sim; mas... Vamos juntos! (Enfia-se pela porta, atrás de Micaela.)
SATANÁS (pondo as mãos) – Céus! Meu Deus! Que imoralidade! Deixar a minha presença, e a minha visita, e meterem-se em quarto... em um quarto em presença... É audácia! É atrevimento!  Mas eu os hei de compor! (Puxa a porta e fecha por fora.) Agora hão de sair, quando eu estiver cansado – de comer, de dormir, e de viver! Já se vê pois que aí têm de morrer, se alguém os não acudir, e secos como uma varinha de...como um palito! Porque já se sabe: eu cá hei de durar pelo menos cem anos! Ou o que é mais certo - não morro mais! (Metendo a chave na algibeira.) Cá vai! Vou dar meu passeio, e não sei se cá voltarei mais! (Chegando-se para perto da porta do quarto: ) Adeus, minhas encomendas! Adeus, minhas venturas! Adeus! Adeus! (Sai.)
ATO SEGUNDO
BRÁS (batendo na porta; fazendo esforço para abrir; gritando)- Satanás! Satanás! Ó Diabo! trancaste-me a porta!? Judeus! Que é isto, ó Diabo! Abre-me a porta, senão te engulo! Não falas!? Querem ver que este demônio trancou-me a porta e foi-se embora!? Tirano! Deixa estar que tu me pagas. Hei de perseguir-te até os infernos!
MICAELA – Sr. Brás. Não se aflija! Não se incomode! Deixa estar que tudo se há de arranjar! Olhe! Veja! Pense! Medite, e não fale!
BRÁS (gritando) – Como diabo não hei de falar e me incomodar, se o Satanás trancou-me a porta? (Para Micaela: )  Mulher, puxa daí, que eu puxo daqui! Anda, mulher dos diabos! Faz força, cutia velha! Parece-me que já não vales mais nada! Olha, e faz como eu!
MICAELA – Estou ajudando-o a bem morrer! Que mais quer!?
BRÁS (tanto puxa, que cai no cenário com Micaela e a porta. Levantando-se, para Micaela) – Quase quebrei a cuia!  Mas ao menos não fiquei enterrado! Que dizes? Levanta-te, não tenhas preguiça! 
MICAELA – Não posso! Estou... ai! Penso que... (esfregando uma perna) esta perna se não está quebrada, está esfolada!
BRÁS – Pois quem te mandou cair junto comigo!? Eu não te disse que segurasse a porta!? Agora levanta-te; quer possas, quer não! (Pegando-lhe em uma mão.) Vá! Arriba! Arriba!
MICAELA – Ai! ai! Não posso mais!
BRÁS (atirando-a) – Pois vai-te com a porta, e com todos os diabos que saírem hoje dos infernos!
MICAELA (levantando-se com muito custo) – Ai! Além de ajudá-lo a abrir a porta, e de cair com ele, mas esta crueldade! Atira comigo... esmaga-me... (Endireita a cabeleira na cabeça.) Rasgou-me o vestido de que eu mais gostava, com modos brutais! Quase pôs-me nua. Que crueldade! (levantando-se, compõe o xale.) Muito sofre quem ama!
FERRABRÁS (entrando a manejar com uma bengala, vestido muito à pelintra) – Oh! Hoje, sim! O dia foi grande! Grande! Muito grande para mim ! Vi a minha namorada da Rua dos Andradas! A minha amiguinha do Beco do Botabica! A minha queridinha da Travessa da Candelária! Vi, vi, vi, que mais? Ah! a minha tia avó (dando uma grande gargalhada), e em visitas aos velhos tortos, aleijados! Etc. etc.
BRÁS – Oh! Rapaz! Quando tomarás tu juízo!? Cada vez ficas pior! Anda para ali; anda! Toma a bênção à tua mãe.
FERRABRÁS – Ora, meu pai, sempre o Sr. me está dando mães! Há três dias era uma velha de que todos têm nojo, porque lhe sai tabaco pelas fossas, mormente pelos ouvidos, pela boca, e até pelos olhos! Ontem era uma torta deste olho; aleijada desta perna (batendo com a bengala na perna direita do pai.)
BRÁS – Mais devagar com os teus exemplos, que estas pernas já são – o Sr. sabe - algum tanto velhas e cansadas!
FERRABRÁS – Senhor! Dizia eu que ontem era uma velha nestas agradabilíssimas condições, e hoje quer que eu tome a benção desta tagarela (puxa-lhe pelo xale e quase o tira do pescoço.)
MICAELA – Mais prudência, Sr. Dr.! Olhe que não estou acostumada a estes insultos! Pilha-me abatida, senão o Sr. não ousaria insultar-me, porque eu ainda teria mãos!
FERRABRÁS – Olhem; olhem que joia!
BRÁS (muito zangado)- Este rapaz não toma mais caminho! Cada vez fica mais tolo, mais estonteado, e mais surdo! Vai, vai! (empurrando-o) Vai procurar outro pai! Eu não te quero mais por filho!
FERRABRÁS – Pois meu pai, o Sr. é que tem a culpa. Apresenta-me (tira-lhe a cabeleira e atira-a no chão) com esta cabeça rapada para minha mãe, como se eu fora alguma criança! Que quer que eu lhe faça!?
MICAELA (atirando-lhe com a cabeleira à cara) – Eu não o posso mais aturar,Sr. atrevido!
FERRABRÁS – Olhe que lhe dou com a bengala!
BRÁS – Acomodem-se! Senão eu lhe dou um cachação!
(Micaela avança à bengala, toma-a de Ferrabrás e dá-lhe uma bengalada; trava-se uma peleja entre ambos; dando-lhe este com a cabeleira pelo rosto. Brás mete-se entre ambos para apartar a briga, apanha e dá pancadas, e nesta luta termina a comédia.)

Porto Alegre, junho 10 de 1866.

(Ilustração: Leonor Fini)



sexta-feira, 13 de novembro de 2015

ONTEM MORREU CLARICE LISPECTOR , de Heitor Saldanha







Hoje talvez anoiteça

mais cedo ou

amanheça

maiscedo ou

anoitemanheça.

Hoje não é aqui

nem nunca.

Hoje só não pode ser ontem.

Hoje estou no Treviso

com o Edgar Koetz.

Hoje estou na Volunta

com Zina Loreto.

Hoje estou com o Paulo

na cidade-baixa.

Hoje no 111

estou lendo um romance

de uma bela menina.

Hoje a grande amizade

nasceu de um abraço

na Senhor dos Passos.

Hoje estou com o Grupo

num canto do Huberthus.

Hoje estou com o Mário

no Guaraxaim.

Hoje estou de volta

de onde nunca estive.

Hoje estou sarrafo,

muafo, afo.

Hoje cada instante

tem cara de inseto.

Hoje estou numa serra

entre roças e rios,

hoje sou acidente

e morri de repente.

Hoje cruzei o fundo

das águas extremas,

levaram Vicente.

Hoje sou um instante

vivendo no Leme.

Hoje tenho a cabeça

e os pés numa síntese.

Hoje sou o cavalo

dos meus desajustes.

Hoje sou o estrabismo

que encurva as distâncias.

Hoje estou neste bar

entre gente festiva.

Hoje estou nesta mesa

bebendo sozinho.

Hoje é quando não sei

mais notícias de mim.

Hoje tudo é possível.

Ontem, não.

Ontem, não.

Ontem não é possível.

Ontem não é possível.

Clarice morreu.


(Folha da Tarde,  POA, 7 de janeiro de 1978)

(Ilustração: De Chirico Clarice Lispector)


terça-feira, 10 de novembro de 2015

POR QUE NÃO DANÇAM?, de Raymond Carver









Na cozinha, ele serviu-se de outra bebida e olhou para a mobília de quarto que estava no jardim da frente. O colchão estava despido e os lençóis às riscas cor-de-rosa dobrados junto de duas almofadas em cima da cómoda. Tirando isto, as coisas estavam dispostas quase da mesma maneira como tinham estado no quarto — mesa-de-cabeceira e candeeiro de leitura do seu lado da cama, mesa-de-cabeceira e candeeiro de leitura no lado da cama dela. O seu lado, o lado dela. Pensou nisto enquanto bebericava o whisky. A cómoda encontrava-se a curta distância dos pés da cama. Passara os conteúdos das gavetas para dentro de caixotes nessa manhã, e os caixotes estavam na sala de estar. Havia um aquecedor portátil junto da cómoda, e uma cadeira em verga com uma almofada decorativa aos pés da cama. Os móveis da cozinha em alumínio polido ocupavam uma parte da entrada para a garagem. Uma toalha amarela de musselina, demasiado grande, que lhes tinha sido oferecida, cobria a mesa e pendia dos lados. Um feto dentro de um vaso estava em cima da mesa, junto de uma caixa com talheres e um gira-discos, também ofertas. Um grande televisor, modelo de cómoda, estava pousado sobre uma mesa de café, e a alguns passos desta encontravam-se um sofá e uma cadeira e um candeeiro de pé. Tinha ligado uma extensão à tomada e havia electricidade, as coisas funcionavam. A secretária estava encostada à porta da garagem. Havia alguns utensílios em cima da secretária, junto com um relógio de parede e duas gravuras emolduradas. Havia ainda na entrada para a garagem um caixote com copos, chávenas e pratos, cada um dos objectos embrulhado em papel de jornal. Naquela manhã ele esvaziara os armários e, com excepção dos três caixotes na sala de estar, estava tudo fora da casa. Uma vez por outra um carro abrandava e as pessoas olhavam. Mas ninguém parava. Ocorreu-lhe que também ele não pararia.

— Deve ser uma venda de garagem — disse a rapariga ao rapaz.

Esta rapariga e este rapaz andavam a mobilar um pequeno apartamento.

— Vamos ver quanto é que eles querem pela cama — disse a rapariga.

— Gostava de saber quanto é que pedem pela televisão — disse o rapaz.

O rapaz meteu pelo acesso à garagem e estacionou em frente à mesa da cozinha.

Saíram do carro e começaram a examinar as coisas. A rapariga mexeu na toalha de musselina e o rapaz ligou a trituradora e rodou o botão para a posição moer. Ela pegou no aquecedor de comida. Ele ligou o televisor e começou a ajustar a imagem. Sentou-se no sofá para ver televisão. Acendeu um cigarro, olhou em redor, e atirou o fósforo para a relva. A rapariga sentou-se na cama. Tirou um sapato com a ajuda do outro e deitou-se. Conseguia ver a estrela polar.

— Anda cá, Jack. Experimenta esta cama. Traz uma dessas almofadas — disse ela.

— Como é? — perguntou ele.

— Anda experimentar — disse ela.

Ele olhou em redor. A casa encontrava-se na escuridão.

— É um bocado estranho — disse ele. — É melhor vermos se está alguém em casa.

Ela agitou-se em cima da cama.

— Experimenta primeiro — disse ela.

Ele deitou-se na cama e colocou a almofada debaixo da cabeça.

—O que é que achas? — perguntou ela.

— Parece-me firme — disse ele.

Ela voltou-se de lado e enlaçou-lhe o pescoço com o braço.

— Beija-me — disse ela.

— Vamos levantar-nos — disse ele.

— Beija-me. Beija-me, querido — disse ela.

Ela fechou os olhos. E continuou a abraçá-lo. Ele teve de lhe abrir os dedos para se soltar.

Ele disse:

— Vou ver se está alguém em casa — mas apenas se sentou.

O televisor continuava ligado. As luzes acenderam-se nas casas por toda a rua. Ele sentou-se na beira da cama.

— Não achas que seria engraçado se nós... — disse a rapariga, e sorriu, mas não terminou a frase.

Ele riu-se. Ligou o candeeiro de leitura.

Ela afastou um mosquito.

O rapaz levantou-se e meteu a camisa para dentro das calças.

— Vou ver se está alguém em casa — disse ele. — Parece que não está ninguém. Mas, se estiver, vou ver qual é o preço destas coisas.

— Seja o que for que pedirem, oferece menos dez dólares. — disse ela. — Eles devem estar desesperados, ou coisa assim.

—A televisão é bem boa — disse o rapaz.

— Pergunta-lhes quanto é— disse a rapariga.

Max caminhou pelo passeio com um saco de compras do mercado. Trazia sanduíches, cerveja e whisky. Tinha estado a beber a tarde toda e chegara agora a um ponto em que a bebida parecia deixá-lo mais sóbrio. Mas havia lacunas. Tinha parado no bar junto do mercado, tinha escutado uma canção na jukebox, e de alguma maneira havia escurecido antes que se recordasse das coisas no jardim.

Viu o carro na entrada para a garagem e a rapariga deitada na cama. O televisor estava ligado. Depois viu o rapaz no alpendre. Fez o caminho pela relva.

— Olá — disse Max à rapariga. — Vejo que encontraste a cama. Ainda bem.

— Olá — disse a rapariga, e levantou-se. — Estava só a experimentá-la. — Deu umas palmadas no colchão. — É uma cama bem boa.

—É uma boa cama — disse Max. — O que é que eu digo agora?

Ele sabia que devia dizer alguma coisa em seguida. Pousou o saco de compras e tirou de lá a cerveja e o whisky.

— Julgávamos que não estava ninguém aqui — disse o rapaz.

— Estamos interessados na cama e, quem sabe, na televisão. Talvez também na secretária. Quanto é que quer pela cama?

— Estava a pensar em cinquenta dólares pela cama — disse Max.

— Aceita quarenta? — perguntou a rapariga.

— Está bem, aceito quarenta — disse Max.

Tirou um copo do caixote, desembrulhou o copo do papel de jornal e rodou a tampa da garrafa de whisky quebrando- lhe o selo.

—E quanto à televisão? — perguntou o rapaz.

— Vinte e cinto.

— Aceita vinte? — perguntou a rapariga.

— Vinte, está bem. Posso aceitar vinte — disse Max. A rapariga olhou para o rapaz.

— Miúdos, querem uma bebida?— disse Max. — Os copos estão no caixote. Vou sentar-me. Vou sentar-me no sofá.

Sentou-se no sofá, recostou-se, e ficou a olhar para eles.

O rapaz encontrou dois copos e serviu-os de whisky.

— Quanto é que queres disto? — perguntou à rapariga.

Tinham apenas vinte anos, o rapaz e a rapariga, e faziam anos com a diferença mais ou menos de um mês.

— Já chega — disse a rapariga. — Acho que quero água no meu.

Ela puxou uma cadeira e sentou-se à mesa da cozinha.

— Há água naquela torneira ali — disse Max. — Abre aquela torneira.

O rapaz deitou água nos dois whiskies. Aclarou a garganta antes de também se sentar à mesa da cozinha. Depois sorriu. Pássaros esvoaçavam por cima deles, à caça de insectos.

Max olhava para a televisão. Terminou a sua bebida. Alcançou o interruptor do candeeiro de pé e deixou cair o cigarro no espaço entre as almofadas do sofá. A rapariga levantou-se para o ajudar a encontrá-lo.

— Queres mais alguma coisa, querida? — disse o rapaz.

Ele sacou do livro de cheques. Serviu-se a si, e à rapariga, de mais whisky.

— Oh, quero a secretária — disse a rapariga. — Quanto é que custa a secretária?

Max fez um aceno com a mão perante esta pergunta disparatada.

— Diz-me tu um número — disse.

Olhou para eles, sentados à mesa. À luz do candeeiro havia alguma coisa peculiar na expressão dos seus rostos. Durante um minuto esta expressão pareceu conspiratória e depois tornou-se terna — não havia outra palavra. O rapaz tocou na mão dela.

— Vou desligar a televisão e pôr um disco a tocar — disse Max. — O gira-discos também está à venda. Barato. Façam-me uma oferta.

Ele serviu-se de mais whisky e abriu uma garrafa de cerveja.

— Está tudo à venda.

A rapariga ergueu o copo e o homem serviu-a de whisky.

— Obrigada — disse ela.

— Isto sobe à cabeça — disse o rapaz. — Estou a sentir isto chegar-me à cabeça.

Acabou a bebida, aguardou, e serviu-se novamente. Estava a escrever um cheque quando Max encontrou os discos.

— Escolhe alguma coisa de que gostes — disse Max à rapariga, e mostrou-lhe os discos.

O rapaz continuava a escrever o cheque.

— Este — disse a rapariga, apontando. Não conhecia os discos, mas não tinha importância. Aquilo era uma aventura. Levantou-se da mesa e depois tornou a sentar-se. Não lhe apetecia estar sentada e quieta.

— Vou passar o cheque ao portador — disse o rapaz, ainda a escrever.

— Claro — disse Max. Bebeu o que restava do whisky e depois começou a beber a cerveja. Sentou-se outra vez no sofá e cruzou as pernas.

Beberam. Ouviram o disco até ao final. E depois Max pôs outro disco a tocar.

— Por que não dançam? — disse Max. — É uma boa ideia. Por que não dançam?

— Não, não me parece — disse o rapaz. — Queres dançar, Carla?

— Força — disse Max. — O jardim é meu. Podem dançar se quiserem.

Braços em volta um do outro, corpos unidos, rapaz e rapariga subiram e desceram a entrada da garagem. Estavam a dançar.

Quando o disco chegou ao fim, a rapariga pediu a Max para dançar com ela. Ainda estava descalça.

— Estou bêbedo — disse ele.

— Não estás bêbedo — disse a rapariga.

— Bom, eu estou bêbedo — disse o rapaz.

Max voltou o disco ao contrário e a rapariga aproximou-se. Começaram a dançar.

A rapariga olhou para as pessoas que se reuniam na janela de sacada do outro lado da rua.

— Aquelas pessoas que ali estão. A observar-nos — disse ela. — Há problema?

— Não faz mal — disse Max. — É o meu jardim. Podemos dançar. Achavam que já tinham visto acontecer de tudo por aqui, mas isto nunca viram — disse ele.

Ele começou a sentir o hálito dela no pescoço, e disse:

— Espero que gostes da tua cama.

— Vou gostar — disse a rapariga.

— Espero que os dois gostem — disse Max.

— Jack! — disse a rapariga. — Acorda!

Jack segurava o queixo e observava enquanto eles dançavam.

— Jack — disse a rapariga.

Ela fechou e depois abriu os olhos. Empurrou o rosto contra o ombro de Max. Puxou-o para mais próximo de si.

— Jack — murmurou ela.

Ela olhou para a cama e foi incapaz de compreender o que estava aquilo a fazer no jardim. Olhou para o céu, por cima do ombro de Max. Segurou-se a Max. Estava tomada de uma felicidade insuportável.

Mais tarde, a rapariga disse:

— O tipo era de meia-idade. Tinha as coisas todas ali no jardim. Não estou a brincar. Apanhámos um grande pifo e dançámos. Na entrada para a garagem. Oh, meu Deus. Não te rias. Ele pôs discos a tocar. Olha para este gira-discos que ele nos ofereceu. E estes discos velhos também. O Jack e eu dormimos na cama dele. O Jack estava de ressaca e teve de alugar uma carrinha pela manhã. Para transportar as coisas todas do gajo. Acordei uma vez. Ele estava a tapar-nos com o cobertor, o tipo. Este cobertor. Toca-lhe.

Ela continuou a falar. Contou a toda a gente. Havia alguma coisa por dizer, ela sabia-o, mas não o conseguia exprimir em palavras. Passado algum tempo deixou de falar no assunto.




(O que sabemos do amor; tradução de João Tordo)




(Ilustração: Loïc Allemand)



domingo, 8 de novembro de 2015

CAMINHO, de Paulo Seben







Um homem de mãos nos bolsos

cruzando a praça vazia.

Talvez em meio à garoa

ou restos de cerração.

O fato é que está sozinho

e tem nos bolsos vazios

as duas mãos impotentes.

O fato é que está vazio,

e as suas mãos tão sozinhas

cerradas nos bolsos vão

sem poder nem ir à toa.

Caminha rumo ao patíbulo.




As mãos seguram a vida

que tenta fugir dali.

Os dentes cerrados cortam

a língua que quer sair.

Os lábios cerrados calam

a voz que iria gritar.

Caminha rumo ao patíbulo

no frio da antemanhã.




Se houvesse sol, se ele abrisse

os braços pra perguntar

por que caminha sozinho,

por que um bolso é algema,

por que há neblina sempre

e praças que atravessar...




O sol não há. Não há gente

a quem fizesse a pergunta.

Caminha trôpego e chuta

pedrinhas em gol nenhum.

Caminha rumo ao patíbulo

e não deseja chegar.



(Caderno Globo 33)


(Ilustração:  Zdzisław Beksiński)

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

COMO SE FABRICA A OPINIÃO PÚBLICA, de Pierre Bourdieu





Um homem oficial é um ventríloquo que fala em nome do Estado: assume uma atitude oficial – seria preciso descrever a encenação do personagem oficial -, fala a favor e em lugar do grupo ao qual se dirige, fala para e em lugar de todos, fala enquanto representante do universal.

E nesse ponto chega-se à moderna noção de opinião pública. O que é essa opinião pública, invocada pelos criadores de direito das sociedades modernas, das sociedades nas quais o direito existe? É tacitamente a opinião de todos, da maioria ou daqueles que contam, daqueles que são dignos de ter uma opinião. Penso que a definição explícita, numa sociedade que se pretende democrática, ou seja, de que a opinião oficial é a opinião de todos, esconda uma definição latente, ou seja, que a opinião pública é a opinião daqueles que são dignos de ter uma opinião. Há uma espécie de definição censuária da opinião pública como opinião iluminada, opinião digna desse nome.

A lógica das comissões oficiais é aquela de criar um grupo capaz de dar todos os sinais externos, socialmente reconhecidos e reconhecíveis, de sua capacidade de expressar a opinião digna de ser expressada, e nas formas convenientes. Um dos critérios tácitos mais importantes na seleção dos membros de uma comissão, em particular de seu presidente, é a intuição, por parte de quem esteja encarregado da composição da comissão, de que a pessoa em questão conheça as regras tácitas do universo burocrático e as reconheça: em outras palavras, alguém que saiba jogar o jogo da comissão de maneira apropriada, aquela maneira que vai além das regras do jogo, que o legitima: nunca se está tanto dentro do jogo como quando se vai além. Em cada jogo, há regras e fair-play. A propósito do homem cabilo (N. do T.: berbere da Argélia), ou do mundo intelectual, eu tinha utilizado esta fórmula: a excelência, na maior parte das sociedades, é a arte de jogar com a regra do jogo, fazendo desse jogo com a regra do jogo uma homenagem suprema ao jogo. O transgressor controlado é a verdadeira antítese do herético.

O grupo dominante coopta os seus membros com base em indícios mínimos de comportamento, que são a arte de respeitar a regra do jogo até mesmo nas transgressões reguladas pela regra do jogo: as boas maneiras, o comportamento. É a célebre frase de Chamfort: “O ‘grande vigário’ pode sorrir de uma piadinha contra a religião, o bispo pode rir dela abertamente, o cardeal pode acrescentar-lhe algo de seu (1).” Mais subimos na hierarquia das excelências, mais podemos jogar com a regra do jogo, mas ‘ex officio’, a partir de uma posição tal que seja eliminada qualquer dúvida. O humor anticlerical de um cardeal é requintadamente clerical. A opinião pública é sempre uma espécie de realidade dupla. É aquilo que não se pode não invocar quando se quer legiferar em campos não organizados. Quando se diz: “Há um vazio jurídico” (expressão extraordinária), a propósito da eutanásia ou dos bebês-proveta, são convocadas pessoas que se colocarão a trabalhar com toda a sua autoridade. Dominique Memmi (2) descreve uma comissão de ética [sobre a procriação artificial], a sua composição com pessoas disparates – psicólogos, sociólogos, mulheres, feministas, arcebispos, rabinos, cientistas etc. – que têm a tarefa de transformar uma soma de idioletos(3) éticos num discurso universal que preencherá um vazio jurídico, ou seja, – legalizar as mães portadoras, por exemplo. Quando se trabalha nesse tipo de situação, é necessário invocar uma opinião pública. Nesse contexto, compreende-se muito bem a função atribuída às sondagens. Dizer “as sondagens estão do nosso lado” é como dizer “Deus está conosco” em um outro contexto.

Mas a questão das sondagens é irritante, porque às vezes a opinião iluminada é contra a pena de morte, ao passo que as sondagens são predominantemente a favor. O que fazer? Faz-se uma comissão. A comissão constitui uma opinião pública iluminada que traduzirá a opinião iluminada em opinião legítima em nome da opinião pública – que, possivelmente, diz o contrário ou não tem nenhuma opinião formada a respeito (como acontece com muitos assuntos). Uma das propriedades das sondagens consiste em colocar às pessoas problemas que elas mesmas não se põem, em sugerir respostas a problemas que elas mesmas não se colocam, portanto, em impor respostas. Não é questão de procurar caminhos transversos na constituição das amostras, é o fato de se impor a todos problemas que são sentidos pela opinião iluminada e, por essa via, de propor respostas gerais a problemas sentidos somente por alguns, portanto, de dar respostas iluminadas enquanto tiverem sido geradas com a pergunta: deu-se vida a problemas que não existiam para as pessoas, enquanto a pergunta era qual fosse o problema delas.

Vou lhes traduzir um texto de Alexander Mackinnon, de 1828, extraído de um livro de Peel sobre Herbert Spencer(4). Mackinnon define a opinião pública, dá a definição que seria oficial, se não fosse inconfessável numa sociedade democrática. Quando se fala de opinião pública, joga-se sempre um duplo jogo entre a definição confessável (a opinião de todos) e a opinião autorizada e eficiente que se obtém como subconjunto restrito da opinião pública democraticamente definida: “É a opinião, a propósito de um qualquer argumento de que se fale, expressa pelas pessoas mais informadas, mais inteligentes e mais morais da comunidade. Ela é gradualmente difundida e adotada por todas as pessoas dotadas de uma certa instrução e de um sentir adequado a um Estado civilizado”. A verdade dos dominantes se torna aquela de todos.

Nos anos 1880, dizia-se abertamente à Assembleia Nacional aquilo que a sociologia precisou redescobrir, isto é, que o sistema educacional precisava expulsar os filhos das classes mais desfavorecidas. No início, a questão era colocada mas depois foi plenamente resolvida, à medida que o sistema escolar começou a fazer, sem solicitação explícita, aquilo que se esperava dele. Portanto, nenhuma necessidade de se falar a respeito. O interesse pela volta à gênese é muito importante porque, na fase inicial, podem ser recuperados debates em que são expressas com letras claras coisas que, em seguida, podem parecer provocações dos sociólogos.

O reprodutor da autoridade sabe produzir – no sentido etimológico do termo: produzir significa “trazer à luz”-, teatralizando-o, algo que não existe (no sentido de sensível, de visível), e no nome do qual se fala. Deve produzir em nome de quem tem o direito de produzir. Não pode não teatralizar, não dar forma, não fazer milagres. O milagre mais comum, para um criador verbal, é o milagre verbal, o sucesso retórico; deve produzir a encenação daquilo que autoriza o seu dizer, em outras palavras, da autoridade em nome da qual é autorizado a falar.

Reencontro a definição da prosopopeia que eu procurava antes: “Figura retórica pela qual se faz falar ou agir uma pessoa que é evocada, um ausente, um morto, um animal, uma coisa personificada”. E no dicionário, que é sempre um instrumento formidável, encontra-se esta frase de Baudelaire a respeito da poesia: “Manejar sapientemente uma língua, quer dizer praticar uma espécie de bruxaria evocadora”. Os clérigos, aqueles que manipulam uma língua sapiente como os juristas e os poetas, devem encenar o referente imaginário em nome do qual falam, e que falando produzem nas formas; devem fazer existir aquilo que exprimem e isso em nome do que se exprimem. Devem juntos produzir um discurso e produzir a confiança na universalidade do seu discurso através da produção sensível (no sentido de evocação dos espíritos, dos fantasmas – o Estado é um fantasma…) dessa coisa que será garantia daquilo que fazem: “a nação”, “os trabalhadores”, “o povo”, “o segredo de Estado”, “a segurança nacional”, “a demanda social” etc…

Percy Schramm mostrou como as cerimônias de consagração fossem a transferência, na ordem política, das cerimônias religiosas(5). Se o cerimonial religioso pode ser transferido assim facilmente para as cerimônias políticas, através das cerimônias da consagração, é porque se trata, em ambos os casos, de fazer acreditar que há um fundamento no discurso, o qual aparece auto-fundante, legítimo, universal só enquanto existir a teatralização – no sentido de evocação mágica, de bruxaria – do grupo unido e consonante com o discurso que o une. Daí o cerimonial jurídico. O historiador inglês E. P. Thompson insistiu no papel da teatralização jurídica no século XVIII inglês – as perucas, etc.-, que não pode ser compreendido completamente se não se vê que não se trata de um simples aparato, no sentido de Pascal, que viria a ser acrescentado: é parte constitutiva do ato jurídico(6). O falar forense em paletó e gravata é arriscado: arrisca-se perder a pompa do discurso. Fala-se sempre em reformar a linguagem jurídica, sem jamais fazê-lo, porque é o último indumento: os reis nus deixam de ser carismáticos

Uma das dimensões muito importantes da teatralização é a teatralização do interesse pelo interesse geral; é a teatralização da convicção do interesse pelo universal, do desinteresse do homem político – teatralização da fé no padre, da convicção do homem político, de sua confiança naquilo que faz. Se a teatralização da convicção faz parte das condições tácitas do exercício da profissão de clérigo – se um professor de filosofia deve parecer acreditar na filosofia -, é porque é a homenagem fundamental do personagem oficial para com a autoridade; é aquilo que precisa conceder à autoridade para ser uma autoridade, para ser um verdadeiro personagem oficial. O desinteresse não é uma virtude secundária: é a virtude política de todos os mandatários. As escapadelas dos padres, os escândalos políticos são o colapso dessa espécie de fé política na qual todos estão de má-fé, a fé sendo uma espécie de má-fé coletiva, no sentido sartriano: um jogo no qual todos mentem a si mesmos e aos outros, sabendo que os outros também mentem a si mesmos. É essa a autoridade…



NOTAS


(1) Nicolas de Chamfort, Maximes et pensées, Paris, 1795.

(2) Dominique Memmi, «Savants et maîtres à penser. La fabrication d’une morale de la procréation artificielle», Actes de la recherche en sciences sociales, n° 76-77, Paris, 1989, p. 82-103.

(3) Do grego idios, «particular»: discurso particular.

(4) John David Yeadon Peel, Herbert Spencer. The Evolution of a Sociologist, Heinemann, Londra, 1971. William Alexander Mackinnon (1789-1870) teve uma longa carreira como membro do Parlamento britânico.

(5) Percy Ernst Schramm, Der König von Frankreich. Das Wesen der Monarchie von 9 zum 16. Jahrhundert. Ein Kapital aus der Geschichte des abendländischen Staates (dois volumes), H. Böhlaus Nachfolger, Weimar, 1939.

(6) Edward Palmer Thompson, «Patrician society, plebeian culture», Journal of Social History, vol. 7, n° 4, Berkeley (California),1974, p. 382-405.




(Le Monde Diplomatique – janeiro de 2012; tradução de Mario S. Mieli)



(Ilustração: Jean Veber (French - 1864-1928 - Les Aveuglés, or L’Opinion Publique)