sábado, 28 de fevereiro de 2015

EU TE AMO!!!, de Adalgisa Nery








Eu te amo

Antes e depois de todos os acontecimentos

Na profunda imensidade do vazio

E a cada lágrima dos meus pensamentos.





Eu te amo

Em todos os ventos que cantam,

Em todas as sombras que choram,

Na extensão infinita do tempo

Até a região onde os silêncios moram.





Eu te amo

Em todas as transformações da vida,

Em todos os caminhos do medo,

Na angústia da vontade perdida

E na dor que se veste em segredo.





Eu te amo

Em tudo que estás presente,

No olhar dos astros que te alcançam

Em tudo que ainda estás ausente.





Eu te amo

Desde a criação das águas,

desde a ideia do fogo

E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.





Eu te amo perdidamente

Desde a grande nebulosa

Até depois que o universo cair sobre mim

Suavemente.





(Ilustração: Gabriel Mark Lipper)


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O SENTIDO DO SOL DE MAIAKÓVSKI, de Régis Bonvicino






Maiakóvski, nascido em julho de 1893, filiou-se ao Partido Social-Democrata dos Trabalhadores Russos, futuro Partido Bolchevique (depois PCUS) em 1908, aos quinze anos. Foi preso em 1910 e, após a Revolução de Outubro de 1917, trabalhou para o governo soviético, primeiro criando peças de incentivo durante a guerra civil – as famosas “Okna ROSTA” –, depois desenhando cartazes para campanhas sanitárias, entre outros. ROSTA é o acrônimo da Agência Telegráfica Russa, e okna significa janelas.

Com o propósito de informar uma população, em sua maior parte, analfabeta em um vasto país, os postos da Agência Telegráfica Russa passaram a difundir notícias e propaganda na forma de cartazes colados em suas janelas. De início contendo apenas os textos de telegramas militares com novidades do front, logo passaram a contar com frases e desenhos dos artistas cubofuturistas, que os criavam em ritmo diuturno.

O trabalho de criar os cartazes seria o mote central de “A aventura insólita que viveu V. Maiakóvski quando de sua estada na datcha”[1], poema que traz à tona, entre outras leituras possíveis, as contradições insolúveis entre Revolução e arte revolucionária, já a partir de seu título. Escrito no auge da guerra civil que contrapunha a Revolução à contrarrevolução (1920), refere-se, em primeiro lugar, à “aventura”, não do povo russo, ou da classe operária, ou do Exército Vermelho, nem ao menos de um batalhão, mas do próprio poeta. Tal aventura é uma “estada na datcha”, ou seja, um fim de semana no campo. Trata-se de peça em que Maiakóviski aparece como um trabalhador braçal a serviço da revolução proletária (a criar intermináveis cartazes populares para a ROSTA), mas, mesmo nessa condição, é uma espécie de gigante capaz de enfrentar o próprio sol.

O sol simboliza, no texto, o ócio, o ócio dourado de alguém (pois o astro é antropomorfizado, recebendo forma humana) que não faz nada exceto “vagar entre as nuvens”, dia após dia, enquanto o poeta se cansa (e se sente afrontado, como se verá) a criar cartazes para a Revolução.


O ocaso ardia em cento e quarenta sóis,

em julho deslizava o verão,

fazia calor,

o calor ardia

assim era na datcha.

A colina de Púchkino acorcundava-se

na montanha de Akulov,

E ao pé da montanha –

havia uma aldeia,

encurvada de tetos de cortiça.

E atrás da aldeia

havia um buraco,

e para esse buraco, com certeza,

descia o sol, toda vez,

lentamente e fielmente.

E no dia seguinte

de novo

a inundar o mundo

erguia-se o sol escarlate.

E dia após dia a enfurecer-me terrivelmente

isso começou.

E assim uma vez enfureci-me tanto

que tudo desbotou de medo,

à queima-roupa eu gritei ao sol:

‘Desce!

chega de vadiar nesse calor tórrido!’

Eu gritei ao sol: ‘Parasita!

Tu estás aconchegado nas nuvens,

mas aqui, sem saber quando é verão e quando é inverno

é um tal de senta! desenha cartazes!’ [2]




The sunset blazed like sixty suns.

July was under way.

The heat was dense,

he heat was tense,

upon that summer’s day.

The slope near Pushkino swelled up

into Akulov Hill,

while at the foot

a village stood,

roofs like a warped-up frill.

Behind the village

was a hole;

by evening, sure though slow,

into that hole the sun would roll,

to sleep, for all I know.

And then,

next morning,

crimson-clad,

the sun would rise and shine,

till finally it made me mad —

the same each blasted time!

Till once so crazy I became

that all turned pale with fright.

‘Get down, you loafer!

to the sun’

I yelled with all my might.

‘Soft job, sun’, I went on to shout,

‘this coming up to roast us,

While I must sit, year in, year out,

and draw these blooming posters!’ [3]


A irritação do poeta leva-o não apenas a desafiar o próprio sol, mas a fazê-lo de maneira irônica, convidando-o para um chá (outra forma de ócio, de lazer ocioso):


‘Ouve’, testa de ouro,

‘que tal deixar os negócios de lado

e vir tomar um chá comigo?’



‘Look here’, I cried, ‘you Goldy-Head,

it’s time you changed you ways.

Why not step in for tea’?


Como acontece nas fábulas, o sol ouve. Ouve e reage. E reage aceitando o convite, encaminhando-se para a datcha de Maiakóvski, que, de início, sente pavor e espanto, mas, em seguida, por meio de um giro narrativo, em que a presença próxima do sol parece confundir a lucidez do narrador, consegue conversar “calmamente” com o astro sentado à sua mesa.


O que eu inventei! Estou perdido!

Para mim, de boa vontade,

ele mesmo,

abrindo seus largos passos-raios

vem à terra.

Quero não mostrar meu susto

e dou uns passos para trás.

Seus olhos já estão no jardim.

Já está atravessando o jardim.

Pelos postigos, pelas portas,

pelas frestas entrando,

a massa do sol desaba,

irrompe;

reconduzindo o fôlego

disse com voz de baixo:

‘Eu rechaço meus fogos

pela primeira vez desde a criação’.

‘Tu me chamaste? Manda vir o chá,

poeta, manda vir a geleia!’

com lágrimas nos olhos devido ao calor




eu perdi a cabeça

e [disse] a ele – [olhando] para o samovar:

‘E então, astro, senta!’

O diabo atiçou minha ousadia

a gritar com ele, – e eu, confuso

sentei no cantinho do banco

com medo que a coisa fosse piorar.

Mas uma estranha claridade do sol

emanou – e esquecendo

qualquer solenidade, sento a falar

com o astro calmamente.



What have I done!

Corona, beams and all,

itself,

with giant strides the sun

is coming at my call.

I try to cover up my fear,

retreating lobster-wise;

it’s coming, it’s already near,

I see its white-hot eyes.

Trough door and window,

chink and crack

it crammed into the room.

Then stopped

to get its hot breath back,

and blimey, did it boom!

‘I’m changing my itin’rary

the first time since creation.

Now, poet, out with jam and tea,

else why this invitation ?’

Myself scarce fit to match two words,

half-barmy with the heat,

I somehow nodded kettlewards:

‘Come on, orb, take a seat!’

The hollering won’t come to good.

My impudence be dashed!

Thought I and sat as best I could

upon the bench, abashed.

But strange to say, with every ray

I felt the stiffness ease,

and cramped formality gave way

to frankness by degrees.


Maiakóvski está agora frente a frente com o sol, ou seja, o grande astro cara a cara com a grande personalidade do poeta. Ele torna a reclamar do excesso de trabalho para a “ROSTA que me devora” (“что-де заела Роста”). A resposta do sol, por sua vez, dá mais uma volta no parafuso de surpresas que é a narrativa do poema: o sol pergunta se Maiakóvski acredita ser fácil brilhar. E para provar que não é, desafia o poeta a fazê-lo:


Disso, daquilo, falo eu,

de como a ROSTA me comeu a mordidas

e o sol: ‘Bem, não te aflijas,

olha para as coisas simplesmente!

Ou pensas que é fácil para mim brilhar? Vamos, experimenta!

E aí vais – é preciso ir,

vais e brilhas, ao mesmo tempo!’



I spoke of this and spoke of that,

about the beastly ROSTA

‘There, there’, he said, ‘don’t sulk, my lad,

there’s things worse than a poster.

You s’pose it’s easier to shine all day up there? Just try!

But since the job’s been earmarked mine

my motto’s do or die!’


E o poeta o faz. É de surpreender sua franqueza e sua falta de romantismo revolucionário ao se referir ao trabalho de propaganda em prol da Revolução. Mas isso se mostra inevitável numa leitura mais aprofundada. Apenas o mais cego dos intérpretes acreditaria que cartazes feitos de afogadilho para camponeses poderiam criar a oportunidade para um grande artista produzir o melhor de si. Trata-se do contrário: o trabalho para a Revolução cerceia o grande poeta, quase o impede de “brilhar” em seus versos.


‘Vamos, poeta,

vamos raiar, vamos cantar

no mundo de trastes cinzentos.

Eu, sol, verterei o que é meu,

e tu, o que é teu, os versos’.

A parede das trevas,

a prisão da noite,

sob o sol caíram, ambas,

De versos e luzes uma profusão

brilhe a toda!



‘Come, poet, up!

Let’s sing and shine,

however dull the earth is.

I’ll pour the sunshine that is mine,

and you – your own, in verses!’

The walls of gloom, the jails of night

our double salvo crushed,

and helter-skelter, verse and light

in jolly tumult rushed.



“A parede das trevas,/a prisão da noite/ caíram”: elas podem, se se quiser, ser tomadas como metáforas da Revolução. Mas o poema, na verdade, não sustenta essa interpretação. Primeiro, porque, no caso do sol, não se trata de revolução, mas de luz física: “as paredes de trevas da prisão da noite” de fato sucumbem à sua luz. Segundo, porque no caso do poeta se trata de fazer brilharem seus versos apesar de tudo, por exemplo, tendo de criar cartazes “devoradores” para a ROSTA: “Vamos, poeta!”. Não se cogita, então, de fazer tais cartazes “brilharem”, terem grandeza etc., mas de conseguir manter a grandeza do poeta a despeito deles: “Vamos cantar e brilhar/ no mundo de trastes cinzentos”. O termo original, “хлам”, que também pode ser traduzido por lixo, permite uma versão ainda mais dura deste verso: “Mundo de lixo cinza” – no qual “Eu, o sol, verterei o que é meu, e tu, o que é teu, os versos”. Em suma: crie versos luminosos no mundo escuro. Porque, como aqui explicitado pelo sol e como reiterado pelo narrador ao final, é isso o que ambos devem simplesmente fazer (fica implícito que tal obrigação advém do fato de o sol ser o sol do mesmo modo que Maiakóvski deve ser, portanto, um poeta “iluminado”):



Светить всегда,

светить везде,

до дней последних донца,

светить -

и никаких гвоздей!

Вот лозунг мой и солнца! [4]



Numa tradução bastante literal:



Brilhar sempre,

brilhar em toda parte,

até secar o último dos dias,

brilhar –

e sem desculpa!

Esse é o meu lema e do sol!



Em outras três diferentes traduções:



Brilhar sempre,

brilhar em todo lugar

até os últimos dias do guerreiro

brilhar –

e sem desculpa nenhuma!

Eis o meu lema –

e do sol. [5]




Brilhar sempre,

brilhar em toda a parte,

até ao dia em que a fonte da vida se esgote,

brilhar –

e é tudo!

É o nosso lema – meu

e do sol! [6]




Shine up on high,

shine down on earth,

till life’s own source runs dry –

shine on –

for all your blooming worth,

so say both sun and I! [7]



De todas as traduções consultadas, a de Augusto de Campos é a que menos dá a conhecer e a reconhecer o poema. Eu me deterei aqui em sua última e significativa estrofe, porque, neste caso, a parte fala pelo todo.



Brilhar pra sempre,

brilhar como um farol,

brilhar com brilho eterno,

gente é pra brilhar,

que tudo o mais vá pro inferno,

este é o meu slogan

e o do sol. [8]



Em primeiro lugar, Campos inclui no poema metáfora que um dos maiores metaforizadores da poesia moderna, o próprio Maiakóvski, nele não introduziu. Mesmo porque é banal: “brilhar como um farol”. Em russo, não há farol algum no texto. E “brilhar como um farol” representa equívoco semântico, pois implicaria diminuição do sol, justamente quando o poema afirma e reitera a ideia de brilhar acima e apesar de tudo. Além disso, Maiakóvski não se propõe a ser, nesse poema, “um farol da Revolução”, bem ao contrário. O “Farol da Revolução” seria, a partir de 1922 e, sobretudo, nos anos 1930, Stalin, que sequer é mencionado nesta peça. Em termos mais gerais, sua dicção não é pop, como aqui se leva a crer, entre outras coisas, pela irrupção de ninguém menos do que Roberto Carlos em plena estepe russa: “que tudo mais vá pro inferno” (Jovem Guarda, 1965). A começar do original.

A tradução é um diálogo e não um monólogo, o que não a limita ao campo da estética, mas a insere também no campo da ética. Desconsiderar a língua (ou o sentido) do original é tão questionável quanto desconsiderar sua linguagem (ou sua forma), embora esse equilíbrio ora proposto seja difícil de ser alcançado por qualquer tradutor, sempre em desvantagem. A desconsideração de Augusto de Campos, no caso desses versos, está na sequencia de frases banais, cuja “síntese” é nada menos do que esta: “gente é pra brilhar”. Ora, assim como não há nenhum “farol”, não há “gente” nenhuma no poema (o original traz, no último verso, o possessivo “мой”, meu, mas nenhum termo relativo a qualquer grupo ou coletivo). Trata-se de um “cara a cara” entre Maiakóvski e o sol. Trata-se da arte de um grande poeta, que ele, por sua própria grandeza, deve ter a capacidade de fazer “brilhar sempre”, ou seja, não importa em quais circunstâncias – por exemplo, fazendo cartazetes para a ROSTA.

Campos, por outro lado, aproxima-o, ainda, do jargão publicitário com a escolha equivocada da palavra slogan, quando o original fala em lema (mote, palavra de ordem), que não expressa mera propaganda, mas convicção (“лозунг”, traduzido na maioria das versões inglesas por motto). Slogan é uma frase publicitária, breve e incisiva, com fins persuasórios, exclusivamente comerciais. Por exemplo, “Coca-Cola é isso aí” ou “Se o bar é bom o chopp é Brahma”. Retomando: Maiakóvski está sendo irônico, pois lema é uma palavra do campo da política. E seu “lema” não poderia ser mais individualista: “brilhar sem desculpa”. Não importa nada, nem a ROSTA nem, no limite, a própria Revolução, pois o brilho, neste caso, é individual – como o do sol a brilhar solitário e indiferente a tudo. Brilhe e ponto.

Para evocar o famoso antagonismo Sartre-Camus, Maiakóvski é, neste caso, camusiano: “Entre minha mãe e a Revolução, fico com minha mãe”. Ou com minha poesia. O final do poema não é, portanto, – como Campos faz parecer – um arrazoado afetado de um “astro” pop alardeando brilhos fátuos para uma plateia espremida: “gente é pra brilhar”. O verso veio de uma letra de Caetano Veloso, mas de modo incompleto, truncado, o que o faz perder inclusive o sentido dado pelo tropicalista: “Gente é pra brilhar/ Não pra morrer de fome” (Bicho, 1977). O poema de Maiakóvski é – muito ao contrário do “monólogo” superficial augustiano – a afirmação corajosa de uma grande individualidade poética quando tudo isso, ou seja, ser afirmativo, corajoso e individualista, já se tornara francamente incômodo em um país comunista (além de incomodado por demandas como as da ROSTA) e começava a se tornar perigoso. [9]



Notas


[1] Agradeço a Luis Dolhnikoff as sugestões que fez ao texto e à interpretação do poema.
[2] Tradução de Aurora F. Bernardini.
[3] Tradução de Dorian Rottenberg.
[5] Aurora F. Bernardini.
[6] Manuel de Seabra.
[7] Dorian Rottenberg.
[8] Cem sóis de Maiakovski em um histórico verão russo.
[9] Augusto de Campos, em todo caso, ao que tudo indica, parece ter traduzido também a partir do inglês. Isto explicaria, ainda que jamais pudesse desculpar, o “tudo mais vá pro inferno” – que, se não existe no poema de Maiakóvski, encontra-se nesta tradução: “Always to shine, / to shine everywhere,  / to the very deeps of the last days,  / to shine – / and to hell with everything else! / That is my motto – / and the sun’s!” (Max Hayward e George Reavey).




(Ilustração: Ekaterina Petrova-Trotskaya - Leningrado)



domingo, 22 de fevereiro de 2015

A EXTRAORDINÁRIA AVENTURA VIVIDA POR VLADIMIR MAIAKOVSKI NO VERÃO NA DATCHA[1], de Maiakovski









(Púchkino, monte Akula, datcha de Rumiántzev, a 27 verstas[2] pela estrada de ferro de Iaroslávl)


A tarde ardia com cem sóis.

O verão rolava em julho.

O calor se enrolava

no ar e nos lençóis

da datcha onde eu estava.

Na colina de Púchkino, corcunda,

o monte Akula,

e ao pé do monte

a aldeia enruga

a casa dos telhados.

E atrás da aldeia,

um buraco

e no buraco, todo dia,

o mesmo ato:

o sol descia

lento e exato.

E de manhã

outra vez

por toda a parte

lá estava o sol

escarlate.

Dia após dia

isto

começou a irritar-me

terrivelmente.

Um dia me enfureço a tal ponto

que, de pavor, tudo empalidece.

E grito ao sol, de pronto:

“Desce!

Chega de vadiar nessa fornalha!”

E grito ao sol:

“Parasita!

Você, aí, a flanar pelos ares,

e eu, aqui, cheio de tinta,

com a cara nos cartazes!”

E grito ao sol:

“Espere!

Ouça, topete de ouro,

e se em lugar

desse ocaso

de paxá

você baixar em casa

para um chá?”

Que mosca me mordeu!

É o meu fim!

Para mim

sem perder tempo

o sol

alargando os raios-passos

avança pelo campo.

Não quero mostrar medo.

Recuo para o quarto.

Seus olhos brilham no jardim.

Avançam mais.

Pelas janelas,

pelas portas,

pelas frestas,

a massa

solar vem abaixo

e invade a minha casa.

Recobrando o fôlego,

me diz o sol com voz de baixo:

“Pela primeira vez recolho o fogo,

desde que o mundo foi criado.

Você me chamou?

Apanhe o chá,

pegue a compota, poeta!”

Lágrimas na ponta dos olhos

- o calor me fazia desvairar -

eu lhe mostro

o samovar:

“Pois bem,

sente-se, astro!”

Quem me mandou berrar ao sol

insolências sem conta?

Contrafeito

me sento numa ponta

do banco e espero a conta

com um frio no peito.

Mas uma estranha claridade

fluía sobre o quarto

e esquecendo os cuidados

começo

pouco a pouco

a palestrar com o astro.

Falo

disso e daquilo,

como me cansa a Rosta[3],

etc.

E o sol:

“Está certo,

mas não se desgoste,

não pinte as coisas tão pretas.

E eu? Você pensa

que brilhar

é fácil?

Prove, pra ver!

Mas quando se começa

é preciso prosseguir

e a gente vai e brilha pra valer!”

Conversamos até a noite

ou até o que, antes, eram trevas.

Como falar, ali, de sombras?

Ficamos íntimos,

os dois.

Logo,

com desassombro,

estou batendo no seu ombro.

E o sol, por fim:

“Somos amigos

pra sempre, eu de você,

você de mim.

Vamos poeta,

cantar,

luzir

no lixo cinza do universo.

Eu verterei o meu sol

e você o seu

com seus versos.”

O muro das sombras,

prisão das trevas,

desaba sob o obus

dos nossos sóis de duas bocas.

Confusão de poesia e luz,

chamas por toda a parte.

Se o sol se cansa

e a noite lenta

quer ir pra cama,

marmota sonolenta,

eu, de repente,

inflamo a minha flama

e o dia fulge novamente.

Brilhar pra sempre,

brilhar como um farol,

brilhar com brilho eterno,

gente é pra brilhar,

que tudo mais vá pro inferno,

este é o meu slogan

e o do sol.






(Maiakóvski; tradução de Augusto de Campos)





Notas:


1. Datcha – casa de veraneio.

2. Versta – medida itinerária equivalente a 1,067m.

3. Rosta – A Agência Telegráfica Russa, para a qual Maiakovski executou cartazes satíricos de notícias – as “janelas” Rosta -, de 1919 a 1922.)




(Ilustração: Natalia Gontcharova - os pescadores, 1909)



quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

GENTE É PRA BRILHAR, NÃO PRA MORRER DE FOME, de Jean Wyllys





A fome é uma desgraça social. Não me refiro àquela vontade de comer que nos assalta em intervalos entre refeições diárias garantidas. A fome que é uma desgraça social é aquela experimentada por quem não tem perspectiva de saciá-la em momento algum do dia; pelos que não têm garantido alimento algum hoje, amanhã nem depois de amanhã; e por quem não tem os recursos mínimos para assegurar, a si e aos seus, o sal da vida. A fome que é uma desgraça social é esta que tira a dignidade de qualquer ser humano. Quem nunca olhou nos olhos de um faminto - grandes e paradoxalmente sem luz, a suplicar ajuda sem palavras - não faz ideia do que estou falando.

Essa fome que é uma desgraça social já me fez sofrer. Por causa do alcoolismo, meu pai passou a ter dificuldades em achar trabalho, formal e informal; vivia desempregado. Minha mãe se virava como lavadeira e doméstica, mas o pouco que ganhava não garantia comida todos os dias em casa (e quando garantia, era quase sempre o velho café com farinha - meu irmão George Matos não consegue se esquecer do gosto dessa mistura nem eu). Por isso, passávamos muita fome. Dependíamos da bondade dos outros (tias, tios, esposas de tios e conhecidos) para comer. Sou grato demais a quem nos estendeu um prato de comida (embora minha mãe, temendo a humilhação, preferisse que não falássemos da fome que passávamos para os outros), mas a bondade não era freqüente nem solucionava definitivamente o problema.

Não foram poucas as vezes em que fomos à escola famintos, pois, tínhamos a certeza de que só a escola nos daria a chance de vencer a própria fome (e não estou me referindo à merenda escolar, que, naquela ocasião, era intermitente). Foi também o desejo de vencer a fome que nos levou - a mim e a meus irmãos, com exceção dos dois mais novos - ao trabalho tão cedo, sacrificando parte de nossa infância e adolescência.

Até aqui este relato não se refere a uma exceção, mas a quase uma regra. Ainda há, no Brasil, milhões de pessoas castigadas pela fome apesar dos programas sociais e de transferência de renda da era Lula, que, infelizmente, ainda não alcançam a totalidade dos famintos, sejam os do campo ou das cidades grandes.

Os anos se passaram e meus irmãos e eu vencemos a fome (e a miséria que a gerava) graças à educação e ao trabalho. Porém, recém-chegado a Salvador, vindo do colégio interno da Fundação José Carvalho, e dividindo um apartamento de dois quartos no Cabula, periferia da cidade, com duas amigas e colegas de internato - uma deles é a hoje atriz e professora Adriana Drica Amorim e a outra é a hoje defensora pública Firmiane Venâncio - a fome quis me assombrar de novo. De nós três, o único com emprego fixo era eu. As meninas batalhavam por emprego enquanto estudavam. Suas famílias mandavam alguma ajuda, mas elas não abusavam desta porque sabiam que era limitada e fruto de muito esforço. Eu segurava a onda da casa, mas o que eu ganhava não garantia tudo, já que havia também o aluguel e o condomínio.

Então, houve uma semana em que não tínhamos nada - nada mesmo - para comer. Eu tinha vale-transportes, mas estes eram o que asseguraria minha ida ao trabalho. O ano era o de 1994 e, se não me falha a memória, estávamos já em clima de Copa do Mundo. Acordamos no domingo e olhamos uns para os outros sem perspectiva de como resolver aquela situação. Passaríamos o dia com fome (e talvez o restante da semana seguinte caso eu não conseguisse algum empréstimo no trabalho). Mas eis que, do nada (Terá sido mesmo do nada? Eu acredito nos mistérios da vida!), aparece, para nos visitar, um colega da Fundação chamado Jailton. Contamos sobre nossa situação e ele nos levou ao mercado mais próximo, onde compramos comida para o dia e para o resto da semana.

Preparamos uma macarronada com frango e sentamos à mesa, acompanhados de uma coca-cola litro. Ligamos o rádio para ouvirmos música enquanto comíamos, afinal estávamos tão felizes com aquele acontecido... Mal demos as primeiras garfadas e a Globo FM começou a tocar "Gente", de Caetano Veloso. Ao ouvirmos o verso "Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome", silenciamos e nos emocionamos. Era um sinal: não, não morreríamos de fome! E o que fizéssemos na vida seria, dentro dos limites da atividade, dedicado a impedir que gente morra de fome e a ajudar gente a brilhar.

Talvez tudo isso justifique o que fiz e faço hoje da minha vida, mas, com certeza, explica o fato de, anos depois, eu ter tatuado, em meu peito, essa frase de Maiakovski, citada por Caetano em sua canção: Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome!




(Ilustração: Paula Rego - pietà)






segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

PIANO, de D. H. Lawrence








Softly, in the dusk, a woman is singing to me;

Taking me back down the vista of years, till I see

A child sitting under the piano, in the boom of the tingling strings

And pressing the small, poised feet of a mother who smiles as she sings.



In spite of myself, the insidious mastery of song

Betrays me back, till the heart of me weeps to belong

To the old Sunday evenings at home, with winter outside

And hymns in the cosy parlour, the tinkling piano our guide.



So now it is vain for the singer to burst into clamour

With the great black piano appassionato. The glamour

Of childish days is upon me, my manhood is cast

Down in the flood of remembrance, I weep like a child for the past.




Tradução de Cecília Rego Pinheiro:




Suavemente, na penumbra, uma mulher canta para mim;

Fazendo-me voltar e descer o panorama dos anos, até que vejo

Uma criança sentada debaixo do piano, na explosão do prurido das cordas

E pressionando os pequenos, suspensos pés de uma mãe que sorri enquanto ela canta.




Apesar de mim, a insidiosa mestria da canção

Atraiçoa-me fazendo-me voltar, até que o meu coração chora para pertencer

Ao antigo entardecer dos domingos em casa, com o inverno lá fora

E hinos na aconchegada sala de visitas, o tinido do piano o nosso guia.




Por isso agora é em vão que a cantora irrompe em clamor

Com o appassionato do grandioso piano negro. A magia

Dos dias infantis está em mim, a minha masculinidade

É desencorajada no fluxo da lembrança, choro como uma criança pelo passado.




(Ilustração: Ceri Richard - la pianiste)