quarta-feira, 2 de setembro de 2015

BONJARDIM, de Inês Lourenço








1.



Uma janela de guilhotina

golfava na rua, vozes

de barítono rouco e contralto

agreste, num vibrato de raivas

do libreto diário, onde há muito

ou há pouco, se teriam amado.



2.



Ao entrar no quiosque

nesta tarde de névoa, para

comprar um jornal qualquer, uma criança

pediu algo que não entendi. Seria

uma moeda para um chiclet? Perguntei

ao homem sentado atrás das

revistas do coração e dos diários

da bola, de quem seria a criança, como

se pudesse ser de alguém, um ser

tão súbito, nascido da genealogia

indecifrável da tarde.



3.



Vindo do Marquês, o autocarro

chiava na curva estreita, soltando

os seus vapores de gasóleo, e

num portal surgia um gato pardo

para o qual me inclinei, sabendo

que fugiria ao contacto

da minha mão, ou apenas ao

esboço de carícia, como fazem

os gatos, tão fugidios na presença

de estranhos. Mas o animal no

instante do recuo, aceitou o

deslizar dos meus dedos,

em troca de amáveis energias. E

uma longa saudade subiu-me pelo

braço, no arquear festivo

daquele pequeno tigre.





(Ilustração: Johnny Palacios Hidalgo)


















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