quarta-feira, 8 de abril de 2015

ENTRE MOSCAS, de Everardo Norões



  


A mosca cola-se ao vidro da janela. Ela é o alvo de meu olho, o objeto para onde converge minha atenção, embora além do vidro se estenda o verde da mata e, detrás dele, a casa no alto e outros elementos da paisagem: fios, cercas, monturos. E nos monturos, a lâmina das circunstâncias que corta nossas vidas: favela sem esgoto ou água encanada, barulho de martelo a pregar algum segredo ou o homenzinho apregoando macaxeira.

Mosca: ao mesmo tempo ponto de mira e inseto (insetalvo, alvinseto?) da espécie dos esquizóforos, assim denominados por terem um sulco frontal a dividir a cabeça em dois hemisférios. Ela mexe-se, inquieta, alvo móvel a dar voltas em torno de si mesma. Fosse gente, seria considerada alguém que dissocia ação e pensamento, no limiar da esquizofrenia. Mas age assim certamente por ter olhos múltiplos, omatídios, oitocentos grãos translúcidos, esferas cristalinas, como uma TV LCD. Levam luz ao cérebro minúsculo e agora permanecem encandeados pela superfície brilhante do vidro que a detém no interior do quarto onde procuro descobrir sua estratégia de livramento da prisão na qual a mantenho.

Ela, a mosca, terá uma duração de, no máximo, vinte e um dias, seu ciclo vital. Terminado o movimento dessa peregrinação que também pode ser subentendido como realidade subjetiva, ficarei sozinho, sem ter com quem partilhar o fastio, nem mesmo a restrita visão das gotas de chuva sobre as folhas das árvores próximas ou o reflexo do sol a esmorecer-se sobre o ocre dos telhados. Quando penso nessas sensações, não as considero mera percepção ótica de um mundo que nos estrangula, a mim e à mosca. É como se estivéssemos no interior de uma bolha invisível, onde contenho meu próprio espaço-tempo.

Quanto à mosca, faço de tudo para não assustá-la, embora às vezes a perca de vista. Procuro segui-la atentamente e durante a perseguição me vem sempre à cabeça o verso do poeta espanhol Antonio Machado:

“(...) vosotras, moscas vulgares/me evocáis todas las cosas”.

Penso, então, na mosca que pousava no olho do primeiro morto que vi. O cadáver, estendido no caixão, mãos postas, rosto escondido com um lenço que de vez em quando era erguido por um curioso ou um parente próximo. Quando o morto era descoberto, a mosca voava, voava, e regressava, com insistência quase raivosa, aos olhos do defunto. “Tão moço!”, repetiam todos a mesma frase ao afugentarem a mosca no voo que se limitava ao território de uma camisa de cambraia de linho branca.

Ao evocarem todas as coisas, lembro também a que me perseguiu na travessia de um trecho de deserto. Havia sido prevenido de que o instinto de sobrevivência levaria a mosca a se grudar em algum de nós e a seguir-nos até o fim da viagem. Instintivamente, ela sabia que, naquelas circunstâncias, abandonar o hospedeiro significaria a morte. Descuidei-me e tornei-me seu alvo. Feri-me, de leve, de tanto tentar livrar-me do assédio e acabei por guardar uma pequena mancha vermelha, que ainda trago no rosto.

Encontrei-a de novo, a minha mosca. Começou a saltitar sobre o livro aberto ao lado, em cima de um pedaço de frase: “to drive home the finality of death”.

Caminha com passadas microscópicas, ultrapassa o trecho “by the monotonous buzzing of the flies?” e depois de roçar meu braço esquerdo aterrissa finalmente na pequena porção de comida, de cerca de 3 gramas, que depositei sobre a folha de papel branco, tamanho A4. Assim, estará abastecida durante a rápida trajetória sobre o nosso reino particular de cinco metros quadrados: mesa, computador, pequena estante com cerca de vinte livros e metade de uma resma de papel reciclável.

Sobre o fundo branco acompanho seus pequenos gestos nervosos, seus rodopios, riscos no papel. Mexe as patas, esfrega no pouco de comida o que se poderia chamar de focinho, mas cujo termo correto é probóscide. Não pode ingerir sólidos, por isso deposita uma mistura de saliva e suco gástrico, um ínfimo vômito, naqueles minúsculos resíduos. Uma digestão externa, que não consigo observar, nem mesmo com óculos. Se conseguisse examinar melhor, diria o quanto de asco poderia causar-me. Mas por ser um ato tão microscópico, como tudo o que não se vê, não me dá nojo. Imagino que assim deve pensar Deus – se é que Ele existe – sobre todos nós humanos, pequenos insetos nervosos a se mexerem, sem objetivo nenhum no nosso pequeno bólido perdido no universo. Deixo-a mais calma, a digerir sua refeição de final de tarde. Levanto da cadeira, onde fico o dia quase todo a ler e a buscar entender os teoremas da incompletude de Gödel. Olho-a como para me despedir e penso de novo:

“(...) vosotras, moscas vulgares/me evocáis todas las cosas”.

Nenhum poema sobre moscas igual a esse de Antonio Machado. Nada de “mosca azul, asas de ouro e granada” daqueles versos do outro Machado, que certamente detestava negros, complexado, submetido a ataques epilépticos, orgulhoso de sua farda de academia, dólmã de antigas turquias. Quanto a mim, prefiro a mosca de verdade: preta, sem metáforas. A que reina sobre nossa podridão, faz brilhar a ferida. Como a mosca-varejeira: pequenos ovos-luz, larvas esbranquiçadas sobre a úlcera na perna do cego da feira, que nos obrigava a correr para fugir de sua companhia.

Ei-la sobre o papel imaculado: simples ponto escuro sobre o branco, que tudo pode significar: sinal enigmático do texto, buraco negro das origens, fuligem final dos grandes incêndios, caractere original de alguma tradução de Camilo Pessanha. Aquele de barba toda moscas, tuberculose e concubinas, no sujo chão da China.

Desligo o ar-condicionado. Levanto da cadeira, com comichões na perna direita. Fecho a porta com cuidado. Giro a chave, para que ela não fuja durante a noite e eu não perca sua companhia, pelo menos durante os presumíveis 21 dias que ainda lhe restam.

E de repente a escuto, numa espécie de murmúrio.

Ligo a grande mosca, a que não se mexe, não volteia no ar. A que mede trinta e seis polegadas, milhares de grãos translúcidos, esferas cristalinas de alta definição, que levam a escuridão ao nosso cérebro minúsculo. E agora encandeiam a noite, na qual, sozinho, confundo-me com ela...



(Entre Moscas)




(Ilustração: Kazuya Akimoto - the fly head)










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