terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O SEIO ESQUERDO, de Lilian Maial






Aconteceu.

Ninguém espera

E, na primavera,

Foi-se o seio esquerdo.




Foi-se o toque,

Ficou a sensação fantasma

Foi-se o alimento,

Ficou o vazio no peito.




Como ser mulher, sem o seio esquerdo?

Como ser mãe, sem a mama esquerda?

Como ser profissional, sem o outro par?

Como se olhar no espelho nua?




O seio direito, encabulado,

Só e pendurado,

Emoldurando o luto

Do parceiro canhoto.




Está faltando o outro.

São dois.

Originalmente dois.

Há que ser dois.




Nunca mais seus dedos

Apertando a carne macia e rosada

Nunca mais sua boca

A brincar de trincar e arrepiar

Nunca mais a dança sensual

Dos pares no banho

E entre lençóis de cetim.




Há um imenso vazio

Bem maior que a mama

Que atinge camadas profundas

Da própria natureza fêmea.




Há a ausência constante

Lembrada todo o tempo

Pelo traço da cicatriz

Dessa ferida que não fecha.




Há a dor, os ductos, os lutos

Mágoa infiltrante, ingrata, infeliz.

Dias vividos sem perceber…

E para quê viver?




Olhos que nunca repararam,

Agora se recusam a olhar.

Não tem remédio.

Não tem escolha.




Tem alopécia, náusea e dor,

Tem quimioterapia.

Tem agonia,

Solidão de espinho e flor.




Tão falso o enchimento,

Disfarça a roupa,

Como peruca da alma,

Que dribla olhares piedosos

De mulher barbada de circo

Que extirpa seus próprios caroços.




Os dias arrastados, as horas contadas…

Quando volta ao normal?

Quando se acorda do pesadelo?

Ou tentar esquecê-lo?




É tão desigual, tão caolha!

Fica sem sentido, tão velha!

Um robusto, imponente, desejável,

Outro, um traço doente, indelével, lamentável.




Luta diária e desanimada

Para sobreviver.

Corpo sem jeito,

Mulher sem peito, que cala o grito

Tempo finito, seio bonito

Que se foi.




(Ilustração: Catherine Abel)






sábado, 27 de dezembro de 2014

DIÁRIO DE UMA FAVELADA, de Carolina Maria de Jesus(*)




  


22 de julho de 1955


[...] Eu gosto de ficar dentro de casa, com as portas fechadas. Não gosto de ficar nas esquinas conversando. Gosto de ficar sozinha e lendo. Ou escrevendo! Virei na rua Frei Antonio Galvão. Quase não tinha papel.(...) Enchi dois sacos na rua Alfredo Maia. Levei um até ao ponto e depois voltei para levar outro. Percorri outras ruas. Conversei um pouco com o senhor João Pedro. Fui na casa de uma preta levar umas latas que ela tinha pedido. Latas grandes para plantar flores. Fiquei conhecendo uma pretinha muito limpinha que falava muito bem. Disse ser costureira, mas não gostava da profissõ. E que admirava-me. Catar papel e cantar.

Eu sou muito alegre. Todas as manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre. A primeira coisa que faço é abrir a janela e contemplar o espaço.


7 de junho de 1958


Os meninos tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres porque hoje teve café. Só quem passa fome é que dá valor a comida.

Eu e Vera fomos catar papel. Passei no Frigorifico para pegar lingüiça. Contei 9 mulheres na fila. Eu tenho mania de observar tudo, contar tudo, marcar os fatos.

Encontrei muito papel nas ruas. Ganhei 20 cruzeiros. Fui no bar tomar uma média. Uma para mim e outra para a Vera. Gastei 11 cruzeiros. Fiquei catando papel até as 11 e meia. Ganhei 50 cruzeiros.

... Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da patria. Então eu dizia para a minha mãe:

- Porque a senhora não faz eu virar homem?

Ela dizia:

- Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem.

Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os politicos distantes do povo. Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para a mamãe:

- O arco-iris foge de mim.

... Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituiram os corvos. (...)


9 de junho de 1958


... Eu já estava deitada quando ouvi as vozes das crianças anunciando que estavam passando cinema na rua. Não acreditei no que ouvia. Resolvi ir ver. Era a Secretaria da Saude. Veio passar um filme para os favelados ver como é que o caramujo transmite a doença anêmica. Para não usar as aguas do rio. Que as larvas desenvolve-se nas aguas(...) Até a agua... que em vez de nos auxiliar, nos contamina. Nem o ar que respiramos, não é puro, porque jogam lixo aqui na favela.


Mandaram os favelados fazer mictorios.



11 de junho de 1958


... Já faz seis meses que eu não pago a agua. 25 cruzeiros por mês. E por falar na agua, o que eu não gosto e tenho pavor é de ir buscar agua. Quando as mulheres aglomeram na torneira, enquanto esperam a sua vez para encher a lata vai falando de tudo e de todos. (...) Fiz o café e fui carregar agua. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama. As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginarios (...).



(*) Manteve-se ortografia original.




(Quarto de despejo – diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 1993) 




(Ilustração: Botero - dores da Colômbia)


quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

CONVERSA SOBRE POESIA COM O FISCAL DE RENDAS, de Vladimir Maiakóvski









Cidadão fiscal de rendas!

Desculpe a liberdade.



Obrigado...

Não se incomode...

Estou à vontade.

A matéria

que me traz

é algo extraordinária:

o lugar do

poeta

na sociedade proletária.

Ao lado

dos donos

de terras e vendas

estou também

citado

por débitos fiscais.

Você me exige

500 rublos

por 6 meses e mais

25 por falta

de declaração de rendas.

O meu trabalho

a todo

outro trabalho

é igual.

Veja só

quantas perdas de vulto,

que despesas

requerem

meus produtos

e quantos gastos

com material.

Você conhece

por certo

o fenômeno "rima":

suponha

que uma linha

finde na palavra "pai"

e que ao fim da

outra linha,

menos uma,

imprima

por exemplo

a palavra

"lampaipapai".

Em linguagem de fisco

a rima

é uma letra a termo fixo

para desconto

ao fim da linha

sem mais prazos.

E sai-se à caça

da minúcia

de flexão ou sufixo

na caixa escassa

das conjugações

e casos.

Tenta-se por

essa palavra

numa linha

mas ela não cabe,

força-se

e ela se esfarinha.

Cidadão fiscal de rendas,

eu lhe juro,

as palavras custam

ao poeta

um duro juro.

Para nós,

a rima

é um barril.

Barril de dinamite.

O verso, um estopim.

A linha se incendeia

e quando chega ao fim

explode

e a cidade em estrofe

voa em mil.

Onde encontrar

e a que tarifa

uma rima que mire

e mate de uma vez? Dela

talvez

ainda sobrevivam

cinco exemplares

nos confins

da Venezuela.

E tenho que enfrentar

pólos e saaras,

e me lanço

entre dívidas

e vales dividido.

Cidadão,

condescenda,

as passagens são caras!

A poesia

- toda -

é uma viagem ao desconhecido.

A poesia

é como a lavra

do rádio,

um ano para cada grama.

Para extrair

uma palavra,

milhões de toneladas de palavras-prima.

Porém

que flama

de uma tal palavra emana

perto

das brasas

da palavra-bruta.

Essas palavras

põem em luta

milhões de corações

por milhares de anos.

Por certo

há poetas

de diversas classes.

Quantos vates

têm dedos ágeis!

Vertem versos

da boca

como mágicos,

tanto deles

como dos clássicos.

E que dizer

dos líricos castrados?!

Furtam

linhas alheias

e se fartam -

tipo

de peculato

dos mais alastrados

neste país, entre outros peculatos.

Esses

versos e odes

que os simplórios

aplaudem hoje

com soluços e confetes

passarão

à história

como os gastos acessórios

da obra

que fizemos,

dois ou três poetas.

Come,

como se diz,

quilos de sal,

maços

e maços

de cigarros consome

para extrair

a palavra essencial

das profundezas

artesianas do homem.

E de repente

o imposto

já não é tão caro.

Tire

a roda de um zero

do total!

Um rublo e noventa

custam os cigarros,

Um e sessenta,

o quilo de sal.

No questionário

há um monte de quesitos:

"O Sr. fez viagens?

Sim ou não?"

Mas como,

se eu fiz voos infinitos

em dezenas de pégasos

nestes 15 anos?!

E agora

- ponha-se no meu lugar -

nesta coluna

há algo

sobre criados

e fortuna.

Mas como,

se sou dirigente

e servidor

também

de toda a gente?

A classe

fala

pelas nossas palavras.

Nós somos

proletários

e motores da pena.

A máquina

da alma

com os anos se trava,

e dizem:

- Ao arquivo!

Acabou-se.

Um de menos!

Menos amor,

cada vez menos ações,

e o tempo

na corrida

minhas têmporas esmaga.

E vem

a mais terrível

das amortizações.

a de almas e corações

- última paga.

E quando

este sol

cevado como um porco

se erguer

sobre um porvir

sem mutilados nem mendigos



estarei

podre e morto,

de borco,

junto

de uma dezena

de colegas.

Façam

o meu balanço

a posteriori!

Mas eu afirmo

(e sei

que meu verso não mente):

no meio

dos atuais

traficantes e finórios

eu estarei

- sozinho! -

devedor insolvente.

A nossa dívida

é uivar

com o verso,

entre a névoa burguesa,

boca brônzea de sirene.

O poeta

é o eterno

devedor do universo

e paga

em dor

porcentagens

de pena.





Eu

estou em dívida

com os lampiões da Broadway,

com o Exército Vermelho,

com vocês,

céus de Bagdádi [1],

as cerejeiras do Japão

e toda a infinidade

a que eu não pude dar

a sobra de uma ode.

Mas para que

afinal

estas molduras são?

Para que fazer

da rima, mira

e do ritmo, chibata?

A palavra do poeta

é a tua ressurreição,

a tua imortalidade,

cidadão burocrata.

Daqui a séculos,

do papel mudo

toma um verso

e o tempo ressuscita.

E volverá

este dia,

seus fiscais de tributos,

a miragem dos mitos

e a catinga de tinta.

Convicto vivente contemporâneo,

compra

no Comissariado

uma passagem para a imortalidade

e, computados,

os efeitos do verso,

reparte,

o meu salário

por trezentos anos!

Mas a força do poeta

não se reduz só

a que te lembrem

no futuro

entre soluços.

Não!

Hoje também

a rima do poeta

é carícia

slogan

açoite

baioneta.

Cidadão fiscal de rendas,

eu encerro.

Pago os 5

e risco

todos os zeros.

Tudo

o que quero

é um palmo de terra

ao lado

dos mais pobres

camponeses e obreiros.

Porém

se vocês pensam

que se trata apenas

de copiar

palavras a esmo,

eis aqui, camaradas,

minha pena,

podem

escrever

vocês mesmos!





[1] Cidade em que nasceu o poeta


(Tradução de Augusto Campos)



(Ilustração: Dave Whitlam - the inspiration cycle)


quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

101 / POEMA 101, de Emily Dickinson


     





Will there really be a "morning"?

Is there such a thing as "Day"?

Could I see it from the mountains

If I were as tall as they?




Has it feet like Water lilies?

Has it feathers like a Bird?

Is it brought from famous countries

Of which I have never heard?




Oh some Scholar! Oh some Sailor!

Oh some Wise Man from the skies!

Please to tell a little Pilgrim

Where the place called "morning" lies!




Tradução de Wagner Mourão Brasil:


Haverá de fato uma "manhã"?

Existe uma tal coisa como "Dia"?

Poderia avistá-la das montanhas

Fosse eu tão alta quanto gostaria?




Como as Vitórias-régias ela tem pés?

Tem penas tal qual uma Ave?

Foi trazida de países invulgares?

Dos quais eu nunca ouvi?




Oh qualquer Erudito! Oh qualquer Marujo!

Oh qualquer Sábio nos céus instruído!

Por favor diga a uma pequena Peregrina

Onde o lugar chamado "manhã" fica escondido!





(Ilustração: Cezanne)




segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O PANÓPTICO, AGORA DIGITAL, de Paulo Brito





 

(...) O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor do que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha. (FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.)

Os dispositivos eletrônicos de telecomunicação distribuídos na sociedade do século XXI, tais como telefones celulares e pagers bidirecionais, são extremidades de grandes sistemas interconectados que estão capturando, processando e transmitindo voz, dados pessoais, comerciais, bancários, corporais e de outras espécies num grau que, ao mesmo tempo em que é extremamente alto, já se tornou cotidiano, habitual e pouco a pouco vai se tornando natural, tendendo a ser imperceptível pela onipresença. A combinação do barateamento e disseminação desses dispositivos com a disseminação das redes de telecomunicações está inevitavelmente reunindo de modo perverso uma gigantesca variedade de recursos de monitoramento dos cidadãos, e que passam a estar disponíveis para governos, empresas, instituições ou para o crime organizado. Pelas mais variadas razões, o controle desses recursos torna-se estratégico para a sobrevivência de grupos, organizações, processos ou Estados. O atentado de 11 de setembro contra as duas torres do World Trade Center consolidou definitivamente essa necessidade: de agora em diante, a privacidade é apenas um conceito bipolar: lícito para o Estado, suspeito para o cidadão.



(Ilustração: Eastern State Penitentiary, aerial crop)






sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

MAY I FEEL SAID HE / POSSO SENTIR, DISSE ELE, de e e cummings




    





may i feel said he

(i'll squeal said she

just once said he)

it's fun said she




(may i touch said he

how much said she

a lot said he)

why not said she




(let's go said he

not too far said she

what's too far said he

where you are said she)




may i stay said he

(which way said she

like this said he

if you kiss said she




may i move said he

is it love said she)

if you're willing said he

(but you're killing said she




but it's life said he

but your wife said she

now said he)

ow said she




(tiptop said he

don't stop said she

oh no said he)

go slow said she




(cccome?said he

ummm said she)

you're divine!said he



(you are Mine said she)




Tradução de Wagner Mourão Brasil:



posso sentir disse ele

(vou bramir disse ela

só uma vez disse ele)

é diversão disse ela



(posso tocar disse ele

vai durar disse ela

um tanto disse ele)

por que não disse ela



(vamos disse ele

não tão longe disse ela

o que é longe disse ele

onde estás disse ela)



posso ficar disse ele

(em que lugar disse ela

assim disse ele

se beijares disse ela



por favor disse ele

isto é amor disse ela)

se desejas disse ele

(mas estás matando disse ela



mas isto é viver disse ele

mas sua mulher disse ela

agora disse ele)

ó disse ela



odara disse ele

não para disse ela

oh não disse ele)

devagar disse ela



(ccclimax? disse ele

hummm disse ela)

és divina disse ele

(sou tua Dona disse ela)





(Ilustração: Samantha Magowan - the pool boy)






terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O DISCURSO DE LENTZ, de Philip Roth







“Será que alguém aqui”, começou o presidente Lentz, “sabe por acaso o que aconteceu na Coreia no dia em que todos vocês machões decidiram aviltar e enxovalhar o nome de uma ilustre instituição de ensino superior cujas origens remontam à Igreja Batista? Naquele dia, os negociadores das Nações Unidas e do lado comunista firmaram um acordo provisório com respeito a uma linha de trégua na frente oriental daquele país em guerra. Suponho que vocês saibam o que significa “provisório”. Significa que um combate tão bárbaro quanto os temos visto na Coreia – tão bárbaro quanto qualquer força norte-americana enfrentou em qualquer guerra em qualquer momento de nossa história –, esse mesmo tipo de combate pode eclodir a qualquer hora do dia ou da noite e roubar a vida de muitos outros milhares de jovens norte-americanos. Será que algum de vocês sabe o que ocorreu na Coreia algumas semanas atrás, entre o sábado 13 de outubro e a sexta-feira 19 de outubro? Sei que vocês sabem o que aconteceu aqui nesses dias. No sábado, dia 13, nosso time de futebol deu uma surra em nosso rival tradicional, a Bowling Green, por 41 a 14. No sábado seguinte, dia 20, ganhamos de surpresa da universidade onde me formei, a West Virginia, numa partida emocionante, que nos levou, apesar de grandes azarões, a uma vitória de 21 a 20. Que partida jogou a Winesburg! Mas vocês sabem o que aconteceu na Coreia naquela mesma semana? A Primeira Divisão de Cavalaria, a Terceira Divisão de Infantaria e a minha velha unidade na Primeira Guerra, a Vigésima Quinta Divisão de Infantaria, juntamente com nossos aliados britânicos e da República da Coreia, fizeram um pequeno avanço na área Old Baldy. Um pequeno avanço que teve o custo de quatro mil baixas. Quatro mil jovens como vocês, mortos, mutilados e feridos entre a hora em que derrotamos a Bowling Green e a hora em que surpreendemos a UWV. Vocês têm alguma ideia de quão afortunados, quão privilegiados e quão sortudos vocês são por estarem aqui vendo jogos de futebol aos sábados e não lá, sendo alvo de tiros nos sábados, e depois nas segundas, nas terças, nas quartas, nas quintas, nas sextas e até nos domingos? Quando comparados os sacrifícios que estão sendo feitos nesta guerra brutal por jovens norte-americanos da idade de vocês em resposta à agressão das forças comunistas norte-coreanas e chinesas – quando comparado a isso, vocês têm ideia de quão juvenil, estúpido e idiota o comportamento de vocês parece aos cidadãos de Winesburg, aos cidadãos de Ohio e aos cidadãos dos Estados Unidos da América, que tomaram conhecimento através dos jornais e da televisão dos eventos vergonhosos da noite de sexta-feira? Digam-me, vocês pensam que estavam sendo guerreiros heroicos ao invadir os dormitórios de nossas alunas e quase as matarem de medo? Pensam que estavam sendo guerreiros heroicos ao violar a privacidade dos quartos delas e meterem as mãos em seus objetos pessoais? Pensam que estavam sendo guerreiros heroicos ao tomar e destruir bens que não eram seus? E aqueles de vocês que os incentivaram, que não levantaram um dedo para impedi-los, que exultaram com a coragem máscula deles, o que dizer da coragem máscula de vocês? Como ele vai lhes servir quando mil soldados chineses os atacarem em suas trincheiras aos berros, em enxames, se essas negociações na Coreia fracassarem? Como eles o farão, posso lhes garantir, com as cornetas soando e as baionetas desembainhadas! O que devo fazer com meninos como vocês? Onde estão os adultos entre vocês? Será que nem um único de vocês pensou em defender as moradoras do Dowland, do Koons e do Fleming? Eu teria esperado que cem de vocês, duzentos de vocês, trezentos de vocês abafassem aquela insurreição infantil! Por que não o fizeram? Respondam-me! Onde está a coragem de vocês? Onde está a honra de vocês? Nem um só de vocês exibiu uma pitada de honra! Nem um único! Vou lhes dizer uma coisa agora que nunca pensei que fosse ter de dizer: eu hoje tenho vergonha de ser presidente desta universidade. Estou envergonhado, estou enojado, estou enraivecido. Não quero que paire a menor dúvida sobre a minha raiva. E não vou parar de sentir raiva por muito tempo, isso eu posso lhes assegurar. Fui informado que quarenta e oito de nossas alunas – o que significa quase dez por cento do total –, quarenta e oito já deixaram o campus na companhia de seus pais, profundamente chocados e abalados, e não sei ainda se elas voltarão. O que depreendo das chamadas telefônicas que venho recebendo de outras famílias preocupadas – e os telefones em meu escritório e em minha casa não pararam de tocar desde a meia-noite de sexta-feira – é que um número muito maior de nossas estudantes está considerando a hipótese de ficar fora da universidade durante o resto do ano ou se transferir definitivamente da Winesburg. Não posso dizer que as culpo por isso. Não posso dizer que esperaria que uma filha minha permanecesse leal a uma instituição de ensino onde foi exposta não apenas a indignidades, humilhação e medo, mas a uma ameaça de dano físico por um exército de vagabundos que aparentemente acreditavam estar se emancipando. Porque isso é tudo o que vocês são a meu juízo, tanto aqueles que participaram como os que nada fizeram para contê-lo – um bando ingrato, irresponsável e infantil de vagabundo vis e covardes. Uma turba de crianças desobedientes. Bebezinhos de fraldas descontrolados. Ah, e uma última coisa. Será que algum de vocês sabe por acaso quantas bombas atômicas os soviéticos explodiram agora no ano de 1951? A resposta é duas. Isso perfaz um total de três bombas atômicas testadas com êxito por nossos inimigos comunistas na União Soviética desde que descobriram o segredo de produzir uma explosão atômica. Nós, como nação, estamos confrontados com a distinta possibilidade de uma impensável guerra atômica com a União Soviética, enquanto os machões da Universidade Winesburg conduzem bravos ataques contra as gavetas de suas jovens e inocentes colegas. Mais além de seus domínios há um mundo pegando fogo e vocês se aquecem com roupas de baixo. Mais além de suas fraternidades a História se desenrola a cada dia – guerras, bombardeios, carnificinas em massa, e vocês desconhecem tudo isso. Bem, não desconhecerão por muito tempo! Vocês podem ser tão ignorantes quanto queiram, poderiam até fazer demonstrações, como fizeram aqui na noite de sexta-feira, de um desejo apaixonado de serem ignorantes, mas a História vai apanhá-los no final. Porque a História não é o pano de fundo – a História é o palco! E vocês estão no palco! Ah, como é asquerosa a ignorância que vocês têm de seu próprio tempo! E o mais repugnante de tudo é que vocês estão aqui justamente para superar essa ignorância. Afinal de contas, a que tipo de tempo histórico vocês pensam que pertencem? Vocês podem responder? Vocês sabem responder? Tenho uma longa trajetória profissional na guerra da política, um republicano centrista lutando contra fanáticos da esquerda e fanáticos da direita. Mas para mim, na noite de hoje, esses fanáticos nada são quando comparados a vocês na sua busca bestial de uma diversão insensata. “Vamos endoidar, vamos nos divertir! Que tal o canibalismo na próxima?!” Bem, não aqui, senhores, não será dentro destas paredes cobertas de hera que as delícias do mau comportamento intencional passarão despercebidas por aqueles que têm a responsabilidade, perante esta instituição, de sustentar os ideais e os valores que vocês conspurcaram. Não se pode permitir que isso ocorra, e não se permitirá que ocorra! A conduta humana pode ser regulada, e será regulada! A insurreição acabou. A rebelião foi dominada. A partir desta noite, tudo e todos serão repostos em seus devidos lugares e a ordem restaurada na Winesburg. E a decência restabelecida. E agora vocês machões desinibidos podem se levantar e sumir da minha frente. E, se algum de vocês decidir que quer sair de vez, se algum de vocês decidir que o código de conduta humana e as regras da contenção civilizada que esta administração pretende aplicar com rigor a fim de manter a Winesburg íntegra não servem para machões como vocês – vou achar isso ótimo! Tratem de ir embora! Saiam! As ordens foram dadas! Empacotem sua insolência rebelde e deem o fora de Winesburg esta noite!”



(Indignação, tradução de Jorio Dauster)



(Ilustração: Jean-Baptiste Greuze - malediction paternelle)



sábado, 6 de dezembro de 2014

TAORMINA, de Giselda Penteado Di Guglielmo










A beleza

entra pelos poros

e eu me sinto atriz

no teatro grego.




Suas escadarias

me levam

ao passado,

mas encontro

em seu topo

respostas indesejadas,

realidades ocultas

e vozes sombrias.




Onde os atores

as luzes, as ricas roupagens,

onde as belas palavras

e o público atento?

Onde o perfil grego

e as bocas sicilianas?




Acendo velas do silêncio

em homenagem

aos deuses da cena,

beijo o chão de Taormina

e sinto

que as lavas do Etna

penetraram em minhas veias

insidiosamente.






(A mulher e o espelho)





(Ilustração: Thomas Cole - Mount Aetna from Taormina -1844)














quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

O DIA 16 DE NOVEMBRO, de Elvira Vigna




  


No dia 16 de novembro, Paulo abriu os olhos e voltou-se para a nesga de luz que passava pelas duas cortinas — a mais pesada, de um plástico cinza, e a mais leve, de um tecido branco transparente que ficava por cima da outra. Permaneceu assim por alguns momentos, antes de iniciar o preparo para que o resto todo de seu corpo pudesse acompanhar os olhos e sair do quarto escuro, pequeno e já cheio de ruídos: alguém que ligava a televisão no quarto ao lado; o carrinho da arrumadeira, ameaçador, no hall; o tlim do elevador. Primeiro, fez uma inspeção mental básica no estômago e na boca. Não, nenhum vestígio do mal-estar da noite anterior, em que, depois de comer um x-tudo no bar da esquina, vomitou e cagou a alma. E, ao falar para si mesmo essa frase, poderia ter achado engraçado: a alma. Seria oportuno, rá, rá, se livrar da alma na véspera. Mas Paulo não era uma pessoa de muitas reflexões. Isso normalmente. Naquela hora, então, é que não havia de fato lugar para elas. Depois do estômago foi a vez do joelho, e, nesse, a inspeção não poderia ser apenas mental. Então Paulo esticou a perna, dobrou e tornou a esticar. Nada de muito ruim. A dor nas costas, com a hérnia de disco, estava como sempre quando ele acordava: existente. Mas, no decorrer do dia, com os movimentos, tendia a se estabilizar. E, depois disso, como se já se sentisse cansado — e o motivo do cansaço seria, então, o simples fato de ter joelhos, estômago e costas —, ele ainda ficou, os olhos agora mirando a escuridão, a ouvir o tique-taque do relógio grande, feio, da mesinha de cabeceira. Ficou ouvindo o tique e o taque e o tique e o taque, em sua previsibilidade, enquanto dava um tempo para que a arritmia se manifestasse. Esse era o único sintoma de sua cardiopatia, para a qual tomava quilos de remédios cotidianamente.

O dia começava.

Depois, já andando na praia em direção ao Posto Seis, seu corpo e seus mais de sessenta anos ficaram esquecidos. Andar sozinho por cidades desconhecidas era sempre um imenso prazer. Andar de ônibus ou de carro por estradas que o levassem a lugares desconhecidos, mais ainda. O Rio de Janeiro não era desconhecido até bem pouco tempo. Tinha ficado. Paulo saíra de lá, com toda a família, não fazia um mês. Mas, se a cidade continuava a mesma, ele já era outro. E, entre seus pés e as calçadas, agora surgia uma distância alegre de quem não tem mais nada a ver com aquilo.

Ia, devagar porque tinha tempo, para a casa de um ex-colega de um de seus inúmeros trabalhos. Melhor dizendo, profissões. Não que tivesse buscado isso. Não que em algum momento de sua infância tivesse se dito Vou ser o que pintar, fazer o que me der na telha. Simplesmente aconteceu assim. A vida volta e meia o tirando de uma trilha e o pondo em outra. Nesse caso, a trilha, ou, melhor dizendo, a avenida Atlântica, o levava para a casa de um cara chamado Pedro Correa, mais conhecido por Pecê, seu fornecedor de maconha. Entre o Pedro e o Correa, e mesmo depois do Correa, havia mais nomes. Mas Pecê era uma palavra engraçada de ser dita nas salas de mobiliário com design ergonômico e tapetes grossos da empresa de marketing onde ambos trabalhavam. E Pecê ficou. Era um sujeito baixo e gordinho, que morava num grande apartamento de frente para o mar, com a mulher e, de vez em quando, com um de seus filhos já adultos e independentes mas que, por um motivo ou outro, pernoitavam com frequência na casa do pai. Era ele o correspondente atual e possível das figuras da juventude de Paulo, todas muito mais fascinantes e românticas, com uma maconha também muito mais divertida e grupal. E, se Paulo fosse dado a pensamentos, aqui também haveria um. Pois o pc, Partido Comunista, no qual Paulo militara em sua juventude, se via assim transformado num aposentado rico, que curtia maconha menos do que dizia curtir, e que o fazia porque sentar-se na sala com um ou outro filho e oferecer um cigarrinho era sua maior possibilidade de se sentir próximo. 

Não havia muito papo entre Paulo e esse seu ex-colega. Tinham trabalhado juntos — não há muito que falar sobre isso, além de um Você tem visto o fulano? Você soube que o sicrano. Quem? O sicrano, aquele do departamento tal. Ah. Pois ele, não sei se você soube. O que tem duração pequena por mais que se esprema. Até que Pecê se levante do sofá, diga o aguardado Vou pegar, e volte logo depois com um pacotinho e um cigarro já preparado na mão, para que fumem um pouco, os dois, conformados ambos com o fato de que a proximidade geográfica e aleatória é tudo o que há. Ficarão por um tempo encostados no peitoril da janela enorme, vendo o horizonte, ali, imutável, do jeito mesmo que era quando ambos, ainda jovens, levavam, lá embaixo, na calçada, vidas muito diferentes uma da outra. E, diante desse horizonte imutável, ambos fumarão essa maconha esforçando-se para que ela também fosse imutável. Mais do que o horizonte, a maconha ajudava-os a pensar que o tempo não havia passado e ainda havia muita vida pela frente. 

Mas Paulo pousava o peso do corpo ora em uma perna ora em outra. Para obter a maconha de Pecê, ele precisava compartilhar o clima de Pecê — a janela, os móveis pesados, o apartamento antigo e caro —, e Paulo não era essa pessoa. 

(Muito do que aqui se está a falar é sobre que pessoa é Paulo.) 

Mas Paulo, indo de uma perna à outra sem sair do lugar, falou afinal o que ele tinha para falar, a frase-troféu, a apoteose, o segundo motivo de sua visita. 

“Tem uma mulher aí me enchendo o saco, querendo dar para mim.” 

Pecê foi mais bem-sucedido que Paulo no emprego que compartilharam por alguns anos na multinacional. Nela, qualquer que fosse o cargo, o importante era ostentar perfil adequado à venda. Marketing. Com seu anelão, conversa mole e profundamente mainstream, Pecê e, aliás, todos os seus colegas eram melhores no papo com os clientes, nas risadas e nos tapinhas nas costas do que Paulo jamais seria. 

Rá, rá, riu Pecê. E deu um tapinha nas costas de Paulo. 

E depois, sério: 

“Ah, quando elas se tornam muito insistentes, é muito chato mesmo.” 

Acabaram de fumar a maconha, agora Paulo se sentindo melhor, os cotovelos encontrando um nicho na madeira do peitoril, um pouco carcomida pela maresia. Paulo sempre tinha querido dizer o que acabara de dizer — e ele virava e revirava a frase na sua cabeça, gostosamente. Nos almoços das quintas-feiras que o grupo organizava no restaurante ali embaixo, havia sempre um ou outro colega que falava de seus casos com mulheres. Rara a semana em que não havia casos novos a serem aludidos, e que eram comentados apenas com frases curtas, jamais perguntas, e sem detalhes concretos, substituídos por risadas, muxoxos e o alcear de sobrancelhas. Paulo nunca tinha tido amantes. Algumas garotas de programa sim, quando viajara, havia muito tempo, com esse mesmo grupo para outras cidades, Brasília, Recife e principalmente São Paulo. São Paulo, para onde agora tinha se mudado. Estar morando em São Paulo excluía até mesmo de sua imaginação — já que na prática garotas de programa não eram mais uma presença real em sua vida — o rico plantel de boates e putas da rua Augusta, a uma quadra de sua nova casa. Pois era importante para Paulo que seus escapes, como denominava trepadas ocasionais, se dessem em cidades diferentes daquela em que morava. Sentia-se mais seguro assim. Era mais fácil de compartimentar, de escondê-las até de si mesmo.

Amante, ia ser a primeira.

O mal-estar da noite anterior, inclusive (ele aventaria depois), bem poderia ter sido um ataque de pânico sem participação de um afinal inocente x-tudo. Pois na noite anterior, ao meter a chave na porta do quarto do hotel e se jogar na cama, enfim sozinho, ele já sabia que no dia seguinte iria trepar com N.

“Vamos almoçar juntos amanhã?” E os peitos, quase totalmente fora do decote, roçavam seu antebraço no quiosque deserto da praia. Os peitos sem ter nenhuma dúvida quanto à resposta.

“Vambora.”

“Onde você quer?” E os ouvidos de Paulo escutavam essa pergunta em outro contexto, onde ele ia querer? Ah, ele ia querer em tudo.

“No Mario’s?”

A mulher endureceu. Apagou o cigarro no cinzeiro da mesa, num gesto decidido. O Mario’s, ela explicou, era onde ela levava clientes da firma de importações-exportações que mantinha com o marido, para almoços de negócios.

“O nosso almoço vai ser de negócios?” E riu os dentinhos de rato.

Combinaram então o restaurante do Posto Seis, embaixo da casa do Pecê, que era o primeiro e urgente destino a ser alcançado, first thing in the morning. First thing in the morning porque Paulo pensava com palavras que eram as suas, uma mistura bem particular de inglês e português. Era a mistura que ele começara a incorporar desde a época em que cantava com voz nasalada e olhos fechados, dobrado em cima de seu violão, músicas de Bob Marley. E que continuaram, essas palavras misturadas, em suas várias vidas, sedimentando-se numa tonalidade diferente, tipo business, na sua estada na multinacional. No tempo presente, elas vinham com um tom irônico, pois Paulo, no momento, era tradutor.

Aguardando a futura amante no restaurante quase vazio, Paulo escolheu a mesa que costumava usar nas dezenas de vezes em que lá estivera com seus ex-colegas. Ouviu com prazer o barulho da cadeira de metal arrastando em cima das pedras portuguesas do chão. Pareceu‑lhe um olá de conhecidos. Sentou, disse ao garçom que esperava alguém, pôs a mochila com seu pacotinho de maconha na cadeira ao lado.

Depois mudou a mochila. Era melhor deixá‑la na cadeira na sua frente, para que a cadeira ao lado ficasse vaga.

N. saltou do táxi com suas coxas roliças e caminhou até ele. Essa caminhada, passo por passo, não era uma caminhada. Era a implementação de uma imagem. Era uma ação estudada, matemática, calculada. A imagem que N. estabelecia com essas suas saídas de dentro de táxis era a de uma mulher segura, que sabe o que está fazendo. Nesse caso, N. o sabia duplamente. Ela era uma mulher que sabia estar indo ao encontro daquele que ela havia escolhido para amante e ela era uma mulher que sabia que andar com a aparência de segurança era excitante. Paulo hesitou e se levantou para beijá-la.

Pediram frango à passarinho e cerveja.

Ficaram em amassos entre um alho e outro.

Mais amassos.

Num amasso, Paulo, desajeitado, derrubou cerveja. Riram. Enxugaram-se com guardanapinhos de papel que grudavam não só na cerveja como no suor que estava por baixo da cerveja. Pois suavam. Paulo riu mais, mais do que gostaria.

Não é fácil o caminho até o sexo.

Principalmente quando se imagina um sexo desavergonhado, bruto, sem prolegômenos, e o que se tem em frente é a cara bem conhecida de uma velha amiga e colega de profissão. Pois Paulo e N. se conheciam havia cinco anos.

Não é fácil. A que horas daria para dizer Agora vira e abre bem as pernas. A que horas daria para dizer Então vamos.

“Então vamos.”

E a realidade nunca está à altura.

Depois do Então vamos — que deveria encerrar uma cena e, corte, ação, grudar em outra, eles já nus, gritos, pernas abertas —, ainda houve todo o intermediário, o mingau que a tudo arrefece. Pois não foi possível levantar e sair aos pulos de canguru até o horizonte, logo ali.

Não.

Foi preciso esperar garçom, conta, maquininha de cartão de crédito e recibo de cartão de crédito.

Mas foram.

No táxi, a ordem saiu automaticamente, afinal era o único motel que Paulo conhecia.

“Vamos para o Sândalo, na São Clemente.”

Desses momentos — há um motorista de táxi esperando para saber aonde ir — de definição impostergável sobre quem é o macho, quem é a fêmea. Era Paulo quem tinha de dizer para qual motel iriam. Uma pergunta do tipo Você conhece aí um motel legal, benhê?, e nem seria o caso de continuar o caminho. Esse era um motel velho conhecido de Paulo, o único conhecido.

Foram.

Treparam.

N. com mais desenvoltura que Paulo. Luz acesa, cortina semiaberta, uma nudez sem problemas, peitos, bunda, boceta, ali, às claras. Prometia. Mas Paulo iniciava com beijinhos, carinhos, palavras de afeto. Odiando-se por isso, sem saber como sair disso. N. também maneirava nesse primeiro dia, sem querer parecer puta, sempre um risco em situações como a sua.

Fizeram um papai e mamãe e depois ficaram por ali, nus, fumando o mesmo cigarro, retomando as conversas que tinham havia tanto tempo, nos almoços e cafés marcados, sempre a sós, quando falavam sobre programas de tradução, tradutores amigos, novos clientes etc.

Ficaram trepando, sempre numa tentativa de sair de um limite que, justamente por existir, era o que criara o encontro.

E depois foram embora, pedindo dois táxis. N. foi para a casa dela, Paulo para o hotel.

No hotel, o telefonema habitual, feito sempre, em todas as viagens, desde que o mundo é mundo:

“Oi, querida, tudo bem por aí?”

E que ele ainda ia sair para comer alguma coisa e depois ia dormir cedo porque estava cansado.

Foi esse o dia 16 de novembro.

O dia 16 de novembro, na verdade, havia começado no dia 15. Que foi quando Paulo chegou à rodoviária do Rio e encontrou N. lá para buscá‑lo. N. o beijou e disse que só ele mesmo para fazê-la ir a um lugar tão brega quanto uma rodoviária. Paulo não explicou como era bom estar numa janela que lhe mostrava, por cinco horas, coisas que ficavam para trás. Entraram no carro caro dela, e de lá foram ao hotel de Paulo, largar a mala. Naquele fim de dia andaram pelo calçadão, num preparo desajeitado, de esbarrões, olhares significativos, apertos de braço, chupões em quiosques vazios, mãos chegando perto de peitos e pau, num cerca-lourenço para o que só iria acontecer no dia seguinte.

Então, quando Paulo disse no telefone que ia dormir cedo porque estava cansado, ele se referia ao cansaço da passagem, entre sua vida anterior e a nova, e que era uma passagem que tinha durado dois dias.

E o Vou dormir cedo tinha outra utilidade, além de denotar essa passagem. Queria dizer Não me ligue de volta.


Bobagem. Mesmo sem isso não haveria ligações de volta. Nunca havia.




(Nada a dizer)



(Ilustração: Lynn Randolph)