sexta-feira, 30 de maio de 2014

BIOTÉRIOS DOMINGOS, de Larissa Mendes







O poeta é um cientista com preguiça.

(Michel Consolação)



O lar-laboratório, casulo e consolo. Morada biotéria.

O [tubo de] ensaio de um amor líquido-gasoso. De solidez, apenas nossa efêmera química. Sentimentos sublimados, condensados, vaporizados. Jamais pistilo e pipeta, cadinho e pompete. Instrumentos descabidos, codinomes impronunciáveis.

Eu, a ruiva-alva, de polipropileno coração, cobaia de uma experiência virtualmente planejada.

Ele, uma espécie de professor Pardal. O cientista maluco, de peito-autoclave.

Ironicamente a televisão aberta e suspensa da antessala anunciava uma matéria qualquer de um Domingo Espetacular. E de fato foram noites agradáveis do mais enfadonho dos dias da semana. Lembro de uma em particular, onde a chuva batia na janela e o vento dedilhava a persiana. Barulhinho bom.

– Preciso de uma bebida para relaxar. – Disse eu, ainda confusa.

– Se eu soubesse tinha trazido. Só tenho água para te oferecer.

Sua voz é marcante como brasa em pele. Tem um quê de rouquidão que se assemelha a um constante resmungo. Gosto de suas gírias desencontradas, que colocam na mesma frase, lado a lado, várias gerações. Os olhos são de um magnetismo que ocultam até mesmo sua cor. O bater de asas dos cílios longos e negros emana a liberdade de um pássaro selvagem. O cabelo e a barba escura contrastam com a lucidez de seus gestos. Corpo quente [e rijo como sua mente], personalidade polar. Mãos pequenas, ego inflado como um colchão de ar.

Não caberia [ou não saberia] classificar o que se sucedeu nas duas horas seguintes. Era um misto de paz e urgência, desejo e pânico, riso e lástima. Uma intimidade, ainda que artificial, pré-fabricada em minutos. Não lembro de ter me sentido tão à vontade com alguém tão distante. Mesmo opostos [ele médico, eu monstro; ele criador, eu criatura], uma empatia de angústias e pesares.

Não saberia [ou não caberia] explicar o que se sucedeu nas duas semanas seguintes. Tudo foi tomado pelo silêncio. Uma cidade vazia como nossos copos, nossos corpos.

Não mais bom dia.

– O que você vai fazer hoje?

– Nada. E você?

– Nada também.

– Vamos fazer nada juntos?

São diálogos bloqueados, desfeitos, deletados. Afetos liquefeitos. Experimentos previamente testados e engavetados. Arquivados nos labirintos da memória que insistimos em perder.

Às vezes pareço um rato correndo em círculos numa esteira invisível. Um animal de teste engaiolado. Manipulado e reprovado. Não mais monitorado. Pronto para ser substituído. Morto numa câmera de dióxido de carbono ou ingerindo uma carga enorme de anestésicos. Aliás, é assim que me sinto: entorpecida. Um ser apático, desprovido de razões e pretextos. Sequelada e incapaz de novas experiências. Incinerada junto ao lixo hospitalar.

Amores voláteis não resistem às segundas-feiras. Não merecem segunda chance.



(Ilustração: afresco de Pompeia)


terça-feira, 27 de maio de 2014

UM IMENSO TEATRO É ESTE MUNDO, de Gonçalves de Magalhães





ATO I
CENA I

Mariana e Lúcia

Vista de sala particular em casa de Mariana. De um lado uma cômoda, sobre a qual um oratório fechado [...] Do lado oposto uma mesa, e um candeeiro antigo. Mariana sentada, com um papel na mão, como que estuda sua parte teatral. Lúcia em pé, espevitando a luz.

Mariana

Deixa-me, Lúcia; deixa-me tranquila;
Vai-te, deixa-me só... Repousar quero
Esta cabeça de fadigas tantas.
De mim terias penas, se soubesses
Que turbilhão de foto me devora.
Sente tu mesma, toca. (Levando a mão de Lúcia à cabeça).

Lúcia

Oh, como queima!
Parece um forno!... Que terrível febre!
Senhora, quer que eu faça alguma cousa?
Quer que eu chame o doutor?

Mariana

Não, nada quero.
Somente que me deixes, eu to peço.

Lúcia

Como a posso deixar em tal estado?
Fora preciso um coração de pedra.
Não... agora me lembro... vou fazer-lhe
Um remédio caseiro, espere, eu volto. (Sai)


CENA II

Mariana

(Só) Pobre Lúcia, que amor tu me consagras...
És quase mãe, fiel, sincera amiga.
Quantas obrigações eu te não devo...
Oh! que aguda pontada!...

CENA III

Lúcia

(Voltando com um copo na mão). Aqui lhe trago.
Um remédio bem simples, mas que cura;
É um pouquinho d'água com vinagre.
Molha-se o lenço... assim... É cousa santa;
Não tenha medo; aplique-o sobre as fontes.
Ensinou-mo... quem mesmo?... nem me lembro.

Mariana

Oh, que dor! fez-me mal a frialdade.

Lúcia

É sempre assim; daqui a pouco passa.
Mas tenha paciência.

Mariana

Estou mais calma;
O calor se dissipa, e a dor abranda. (Pega no papel para ler.)

Lúcia

Deixe, senhora, esse papel maldito.
Que praga! Forte teima de leitura!
Continuamente a ler!... Nunca descansa!
Eis aí por que sofre... não se queixe.
O mesmo ferro, quando muito o malham,
E a pedra quando a batem, ferem fogo,
Quanto mais a cabeça que é sensível!
Isso é mania!

Mariana

(Levantando-se.) Vê como é difícil
O trabalho da mente, o quanto custa
Ter um nome no mundo! Enquanto dormes
No teu leito tranquila, eu velo, eu luto.
A noite para ti traz o repouso,
E se o dia ao trabalho te convida,
Com a paz no coração deixas o leito.
Teu diurno trabalho te não cansa;
Com a paz no coração ao leito voltas.
Mas eu, quando repouso? Ante um espelho,
Estudando paixões, compondo o corpo,
Mil expressões numa hora procurando,
Meus dias passo; e tu douda me julgas
Quando me vês gritar, lutar, ferir-me,
E às vezes investir-te, delirante!
Durante a noite minha fronte escaldo
Junto desta candeia, que me aclara,
Sua negra fumaça respirando,
Ou medindo o salão de um lado a outro
Sempre com o meu papel diante os olhos,
Como um espectro do sepulcro erguido,
Em desalinho, pálida: e cem vezes
Primeiro a luz se apaga, que eu me deite.
Se busco o leito, então, oh, que tormento!
Da cabeça inflamada o sono foge;
Nova cena a meus olhos se apresenta.
No teatro me cuido; escuto a orquestra,
Vejo a plateia, e os camarotes cheios,
Ouço os aplausos, bravos que me animam.
E com esta ilusão a vida cobro.
Mas eis que durmo, sonho, e de repente
Ao som da pateada aflita acordo.
É manhã; e outra vez começa a lida.
Oh, vida! oh, ilusão! oh, meu martírio!

Lúcia

Oh! certamente que me causa pena.
Tanto eu não poderia: antes quisera
Uma esmola pedir de porta em porta,
Do que seguir tal gênero de vida.
E então por que ralar sua existência?!
A rir, ou a chorar, como uma douda!

Mariana

Que dizes tu? Coitada! o teu discurso
Bem mostra que da glória o amor não sentes.

Lúcia

Não sinto, e queira o céu que eu nunca o sinta:
Que se da glória o amor é que lhe causa
Tantas inquietações, tantas vigílias,
Desprezo tal amor. Eu de contínuo
Nas minhas orações me recomendo,
Quando me deito, ao grande Santo Antônio,
E ao meu anjo da guarda que me ajudem,
E de vis malefícios me preservem.
Só quero amar a Deus... Diga, senhora,
Porventura Camões amava a glória?

Mariana

Oh, se a amava!... E que luso depois dele
Tanto amou-a?

Lúcia

Pois bem, sempre foi pobre;
Na miséria viveu, pedindo esmolas,
E morreu no hospital. Senhor Antônio
Que lhe diga o que ganha com as comédias
Que ele compõe, para agradar o povo.

Mariana

Ganha a reputação de Plauto luso,
De um ilustre escritor, de um grande homem.

Lúcia

(Com ar de compaixão.) Melhor fora dizer - de um pobre homem.

Mariana

E o que tem a pobreza com o talento?

Lúcia

Muito; que em Portugal andam casados.
E se o senhor Antônio continua,
Já  lhe prevejo um fim bem miserando.
Eu só ouço dizer que ele é jocoso,
Que faz as pedras rir: eis por que o amam.
E se não fosse a banca, e os demandistas
Que lhe dão de comer, creio decerto
Que ele morto estaria há muito tempo.
Ou pelas portas pediria esmola
Como o pobre Camões... Camões!... coitado!
Quando da sua sorte me recordo,
Em lágrimas meus olhos se convertem.
Pobre homem!... Tão moço!... Cavalheiro,
Que pudera ter sido alguma cousa,
Dar em poeta!... Andar fazendo versos!
Errando pelo mundo; naufragando;
Vir a Lisboa, e aqui pedir esmolas;
Comer o pão com lágrimas molhado; (Com tom de piedade e de compaixão.)
Morrer num hospital! Eu creio vê-lo (Limpando as lágrimas.)
Envolto num lençol, no adro da igreja,
Sobre a pedra estendido, ali, exposto,
Movendo a piedade de quem passa,
Que lhe atira um real pra sua cova!...
Oh, meu Deus, que castigo!... Eu tenho um filho,
Um filho que também erra no mundo;
Faze que ele da glória o amor não sinta;
Que não tenha talento, e sobretudo
Que não seja poeta, por que possa
Ser feliz sobre a terra.

Mariana

O teu discurso.
Malgrado meu, o coração me toca.
Confesso que não falas sem motivo.
Mil vezes refletindo sobre a sorte.
Vendo a miséria perseguir o gênio,
A ingratidão dos homens, a injustiça,
A infâmia que sobre ele a inveja lança,
E o desprezo da vil mediocridade,
Que no lodo se arrasta como o verme,
E outro Deus não conhece mais que o ouro,
Discorro como tu; e só desejo...
Nem sei o que... morrer... deixar o mundo.
Confesso que abraçara o teu conselho,
Se não fosse ser eu já conhecida,
E não poder arrepiar caminho.
Sobre mim julga o povo ter direito.
Amanhã se eu disser: adeus, teatro!
Todos se julgarão autorizados
A me vir indagar qual o motivo.
Que não diria o povo? e que calúnias,
Que infâmias sobre mim não lançaria?
Quase que sou escrava. No que dizes,
Acho muita razão.

Lúcia

Mas não a segue.

Mariana

Nem posso.

Lúcia

Então por quê?

Mariana

É impossível!

Lúcia

Impossível!

Mariana

Sim, Lúcia.

Lúcia

Quem a impede
De seguir meu conselho?

Mariana

A minha sorte.
Cada qual tem a sua; a minha é esta.

Lúcia

Mas a sorte se muda; mude a sua.

Mariana

E tu por que não mudas tua sorte?

Lúcia

A minha é outro caso; e só Deus sabe
Se lhe peço que a mude; mas debalde.

Mariana

Ah! tu cuidas que é Deus quem te embaraça
De mudar tua sorte?

Lúcia

Oh, certamente!
Não tenho vocação de andar servindo,
Nem faço gosto nisso.

Mariana

Pobre Lúcia,
Dás armas contra ti; sem gosto serves,
E cuidas não poder mudar de vida,
A culpa pondo em Deus, e tu me acusas?
Queres sem mais razão que eu mude a minha,
Quando por vocação me dou à cena?
Tenho razão demais para segui-la.

Lúcia

Lá, senhora Mariana, em argumentos
Não me quero meter com a senhora;
Não tiro conclusões, nem tenho estudos;
Mas enfim a razão está dizendo,
E dizer tenho ouvido a muita gente,
Que é melhor e mais nobre ser criada,
Que ser comediante.

Mariana

Lúcia, é muito!
Nunca pensei que a tanto te atrevesses.
Se não fora o ter dó do teu estado,
Hoje mesmo...

Lúcia

Senhora, não se ofenda;
Disse isto por dizer; sou uma tonta;
Desculpe esta ousadia.

Mariana

Eu te perdoo;
Tu pensas como o vulgo.

Lúcia

Eu me retiro.

Mariana

Vai-te, vai-te deitar.

Lúcia

Se necessita
De mim alguma cousa...

Mariana

Nada quero.

Lúcia

Boa noite, senhora.

Mariana

Deus te ajude.

CENA IV

Mariana

(). Entretanto ela pensa como o mundo,
Que nos vê com desprezo, e que nos trata
Como uma classe vil e desgraçada.
Sem  honra e sem pudor; que ousa mostrar-se
Em público debaixo de mil formas,
Só por amor do ganho; hoje trajada
Com as vestes reais de soberana,
Amanhã com os andrajos da pobreza...
Para rir, e passar alegre uma hora,
Não para corrigir seus ruins costumes,
O teatro procuram: nós lhes damos
Envolto em mel um salutar remédio;
Com seus próprios defeitos e seus erros
Excitamos o riso; e outras vezes
Com o quadro da desgraça e da virtude
N'alma nobres paixões lhes acendemos.
Mostramos a inocência perseguida,
Um pai sem coração, um filho ingrato,
Uma esposa infiel, um rei tirano,
Um magistrado que a justiça vende.
Interpretando a história, e dando vida
Às sublimes lições da poesia,
Lhes mostramos os rápidos contrastes
Do nada e da grandeza: eles nos ouvem,
Eles nos veem com lágrimas nos olhos;
E quando nós lhes embebemos n'alma
A dor, a compaixão, o amor, e a ira
Como nós da paixão só possuídos,
Esquecidos mil vezes, nos transportes,
Que dos quadros que veem, eles são normas,
Que de crimes iguais são réus às vezes,
Cheios de entusiasmo nos aplaudem,
Choram mesmo conosco, e se envergonham
Ao aspecto do quadro, que desperta
Como um remorso vivo a consciência
De seus crimes; porém a noite passa,
E amanhã o desprezo é nosso prêmio!...
Nós somos como a flor, que, enquanto fresca
Seu cheiro exala, a guardam cuidadosos;
Mas logo que exalou o aroma todo,
Logo que murcha, para o canto a atiram.
Assim pratica o povo, ingrato sempre!
Eu sei que isto é assim; porém que importa!
Não posso resistir ao meu instinto...
Um imenso teatro é este mundo;
Um papel aqui todos representam;
Eu represento dois, de dia e noite.
Eis meu único crime. [...]


(O Teatro de Inspiração Romântica: Antônio José, ou O poeta e a Inquisição; organização de Flávio Aguiar)


(Ilustração:  Erich von Gotha)




sábado, 24 de maio de 2014

QUEM AMA INVENTA, de Mário Quintana





Quem ama inventa as coisas a que ama...
Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava...
E era um revoo sobre a ruinaria,
No ar atônito bimbalhavam sinos,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreições...
Um ritmo divino? Oh! Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente,
Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
Ó! meu pobre, meu grande amor distante,
Nem sabes tu o bem que faz à gente
Haver sonhado... e ter vivido o sonho!



(Ilustração: Bryce Cameron Liston - solitude's echo)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

INTIMIDADE, de Edla van Steen









Para mim esta é a melhor hora do dia — Ema disse, voltando do quarto dos meninos. — Com as crianças na cama, a casa fica tão sossegada.

— Só que já é noite — a amiga corrigiu, sem tirar os olhos da revista.

Ema agachou-se para recolher o quebra-cabeça esparramado pelo chão.

— É força de expressão, sua boba. O dia acaba quando eu vou dormir, isto é, o dia tem vinte e quatro horas e a semana tem sete dias, não está certo? — descobriu um sapato sob a poltrona. Pegou-o e, quase deitada no tapete, procurou o par embaixo dos outros móveis. — Não sei por que a empregada não reúne essas coisas antes de ir se deitar — empilhou os objetos no degrau da escada. — Afinal, é paga para isso, não acha?

— Às vezes é útil a gente fechar os olhos e fingir que não está notando os defeitos. Ela é boa babá, o que é mais importante.

Ema concordou. Era bom ter uma amiga tão experiente. Nem precisa ser da mesma idade — deixou-se cair no sofá — Bárbara, muito mais sábia. Examinou-a a ler: uma linha de luz dourada valorizava o perfil privilegiado. As duas eram tão inseparáveis quanto seus maridos, colegas de escritório. Até ter filhos juntas conseguiram, acreditasse quem quisesse. Tão gostoso, ambas no hospital. A semelhança física teria contribuído para o perfeito entendimento? "Imaginava que fossem irmãs", muitos diziam, o que sempre causava satisfação.

— O que está se passando nessa cabecinha? — Bárbara estranhou a amiga, só doente pararia quieta. Admirou-a: os cabelos soltos, caídos no rosto, escondiam os olhos cinza, azuis ou verdes, conforme o reflexo da roupa. De que cor estariam hoje? — inclinou-se — estão cinza.

Ema aprumou o corpo.

— Pensava que se nós morássemos numa casa grande, vocês e nós... Bárbara sorriu. Também ela uma vez tivera a idéia — pegou o isqueiro e acendeu dois cigarros, dando um a Ema, que agradeceu com o gesto habitual: aproximou o dedo indicador dos lábios e soltou um beijo no ar.

— As crianças brigariam o tempo todo.

Novamente a amiga tinha razão. Os filhos não se suportavam, discutiam por qualquer motivo, ciúme doentio de tudo. O que sombreava o relacionamento dos casais.

— Pelo menos podíamos morar mais perto, então.

Ema terminava o cigarro, que preguiça. Se o marido estivesse em casa seria obrigada a assistir à televisão, porque ele mal chegava, ia ligando o aparelho, ainda que soubesse que ela detestava sentar que nem múmia diante do aparelho — levantou-se, repelindo a lembrança. Preparou uma jarra de limonada. Por que todo aquele interesse de Bárbara na revista? Reformulou a pergunta em voz alta.

— Nada em especial. Uma pesquisa sobre o comportamento das crianças na escola, de como se modificam as personalidades longe dos pais.

No momento em que Ema depositava o refresco na mesa, ouviu-se um estalo.

— Porcaria, meu sutiã arrebentou.

— A alça?

— Deve ter sido o fecho — ergueu a blusa — veja.

Bárbara fez várias tentativas para fechá-lo.

— Não dá, quebrou pra valer.

Ema serviu a limonada. Depois, passou a mão pelo busto.

— Você acha que eu tenho seio demais?

— Claro que não. Os meus são maiores...

— Está brincando — Ema sorriu e bebeu o suco em goles curtos, ininterruptos.

— Duvida? Pode medir...

— De sutiã não vale — argumentou. — Vamos lá em cima. A gente se despe e compara — aproveitou a subida para recolher a desordem empilhada. Fazia questão de manter a casa impecável. Bárbara pensou que a amiga talvez tivesse um pouco de neurose com arrumação.

Ema acendeu a luz do quarto.

— Comprou lençóis novos?

— Mamãe mandou de presente. Chegaram ontem. Esqueci de contar. Não são lindos?

— São.

— A velha tem gosto — Ema disse, enquanto se despia em frente ao espelho. Bárbara imitou-a.

É muito bonita — Ema reconheceu. Cintura fina, pele sedosa, busto rosado e um dorso infantil. Porém, ela não perdia em atributos, igualmente favorecida pela sorte. Louras e esguias, seriam modelos fotográficos, o que entendessem, em se tratando de usar o corpo — não é, Bárbara?

— Decididamente perdi o campeonato. Em matéria de tamanho os seus seios são maiores do que os meus — a outra admitiu, confrontando.

Carinhosa, Ema acariciou as costas da amiga, que sentiu um arrepio.

— O que não significa nada, de acordo? — deu-lhe um beijo.

— Credo, Ema, suas mãos estão geladas e com este calor...

— É má circulação.

— Coitadinha — Bárbara esfregou-as vigorosamente. — Você precisa fazer massagens e exercícios, assim — abria e fechava os dedos, esticando e contraindo na palma. — Experimente.

Eram tão raros os instantes de intimidade e tão bons. Conversaram sobre as crianças, os maridos, os filmes da semana. Davam-se maravilhosamente — Bárbara suspirou e se dirigiu à janela: viu telhados escuros e misteriosos. Ela adoraria ser invisível para entrar em todas as casas e devassar aquelas vidas estranhas. Costumava diminuir a marcha do carro nos pontos de ônibus e tentar adivinhar segredos nos rostos vagos das filas. Isso acontecia nos seus dias de tristeza. Alguma coisa em algum lugar, que ela nem suspeitava o que fosse, provocava nela uma sensação de tristeza inexplicável. Igual à que sente agora. Uma tristeza delicada, de quem está de luto. Por quê?

— Que horas são? — Ema escovava o cabelo.

— Imagine, onze horas. Tenho que sair correndo.

— Que pena. Não sei por que fui pensar em hora. Fique mais um pouco.

— É tarde, Ema. Tchau. Não precisa descer.

— Ora, Bárbara... deixa disso — levou a amiga até o portão.

— Boa noite, querida. Durma bem.

— Até amanhã.

Ema examinou atentamente a sala, a conferir, pela última vez, a arrumação geral. Reparou na bandeja esquecida sobre a mesa, mas não se incomodou. Queria um minutinho de... ela apreciava tanto a casa prestes a adormecer — apagou as luzes. A noite estava clara, cor de madrugada pensou, sentando no sofá. Um sentimento de liberdade interior brotava naquele silêncio. Um sentimento místico, meio alvoroçado, de alguém que, de repente, descobrisse que sabe voar. Por quê?


(O Prazer é Todo Meu — Contos Eróticos Femininos)



(Ilustração: xfig Damian Klaczkiewcz-part2-17)