quarta-feira, 30 de abril de 2014

UM CREDOR DA FAZENDA NACIONAL, de Qorpo Santo





PERSONAGENS:


Credor


Porteiro


Um Major


Um Contínuo


Empregados da repartição


Outro credor


Leopoldino, Contador


Chefe de secção


Sr. Barbosa


ATO PRIMEIRO


UM CREDOR – (entrando em uma repartição pública; para o Porteiro) – Está o Sr. Inspetor?


PORTEIRO – Está; mas não se lhe pode agora falar.


CREDOR – Por quê?


PORTEIRO – Está muito ocupado!


CREDOR – Em quê?


PORTEIRO – Tem gente aí com ele.


CREDOR – Quem é?


PORTEIRO – Um Major!


CREDOR – Demorar-se-á muito?


PORTEIRO – Ignoro.


CREDOR – Pois diga-lhe que lhe quero falar!


PORTEIRO – Não posso ir lá agora.


CREDOR – Quantas horas estarei eu aqui à espera que o Sr. Major saia para que eu entre! 



(Passeia). (O MAJOR, saindo e encontrando-se com o Credor.) 



CREDOR (para o MAJOR) – Oh! O Sr. por aqui! Julgava-o quem sabe onde! Disseram-me que tinha ido para Rio Pardo há dias!


MAJOR – Tenho tido aqui numerosos afazeres, por isso não sei quando irei.


CREDOR – Fique certo que sinto o mais vivo prazer em vê-lo no gozo da mais perfeita saúde.


MAJOR – Onde é aqui a tesouraria?


CREDOR – Na Tesouraria estamos; mas o Tesoureiro está lá embaixo.


PORTEIRO – Lá, não; lá está o pagador!


CREDOR – Ah! Então é cá em cima; porém nos fundos; creio que na última sala.


MAJOR – Então para lá vou. (Segue.)


CREDOR – Agora entro eu. (Dirigindo-se à repartição.)


PORTEIRO – Está lá o Sr. Leopoldino Contador!


CREDOR – Ë célebre! Então vou à secção respectiva saber se foi informado o meu requerimento! (Caminha, e entra.)


PORTEIRO – Que diabo de homem este! Tem vindo mais de um cento de vezes à repartição... se há de...


CONTÍNUO – Faz ele muito bem [em] vir cá ! Deve-se-lhe, por que não se lhe há de pagar?


CONTÍNUO – Homem; isso é verdade! Qual a razão por que esta repartição há de paliar meses e anos!?


PORTEIRO – Custa a crer a retardação de pagamento ou a preguinha, segundo dizem alguns empregados!


CONTÍNUO – O caso é que ele tem procedido sempre com a maior prudência!


PORTEIRO – Isso é verdade. Mas quantos terão sofrido pela falta de cumprimento de deveres de alguns funcionários públicos?


CONTÍNUO – Ë verdade! Tem havido tantos males, que enumerá-los talvez fosse impossível.


PORTEIRO – Mas tu sabes o que os empregados querem? Talvez não saibas. Pois eu te digo: 


1º – Acabar com a Monarquia Constitucional e Representativa!


2º - Pôr termo às repartições públicas; isto é, acabarem com todas estas imposturas!


3º - Mudar a forma de governo para República.


4º - Fazerem uma liga entre todos que...


CONTÍNUO – (pondo as mãos na cabeça e puxando as orelhas) – Estás louco! Homem! D’onde vieram-te esses pensamentos!? Se não mudas de modo de pensar, vais parar à Caridade. 


PORTEIRO – Ah! Tu não ouves! És surdo! Não vês. Tens olhos e não enxergas! 


Ouvidos, e não ouves! Só falas! Tu verás a revolução que em breve se há de operar! Olha; eu estou vendo o dia em que entra por aqui uma força armada; vai aos cofres, papéis. E rouba quanto neles se acha. Acende um facho, e laça fogo em tudo quanto é papéis.


CONTÍNUO – (a correr) – Ih! Ih! Ih! Parece que já estou ouvindo o tinir das espadas! A voz do canhão troar. Deus meu! Acudi-me! Ai! Que eu morro! (Cai sentado.)Ai! Ai! Estou cansado! Fadigado! Quase... Meu Deus! Quantas mortes vos aprazerá ainda fazer!? Quando vos compadecereis de vossos entes ainda que maus!? Quando se aplacará a vossa ira!? Quando se saciará a vossa vingança! Céus! Que vejo! (Como amparado com as mãos; pondo o corpo de lado; ao ouvir o som da trovoada que em cima se faz.) Ah!...


PORTEIRO - (querendo acudi-lo) – Não é nada, companheiro e amigo! São os primeiros preparativos para a estralada que logo mais terá de ver e ouvir. Tranquiliza o teu coração. Ainda não desceram raios, fogo, e tudo o mais que se há preparado para grande revolução! Começará de cima; e descerá à terra, como a saraiva em certos dias chuvosos. (Ouve-se nova trovoada; relâmpagos.)


CONTÍNUO – (melhorando pouco; e levantado-se)- Acho-me um pouco mais animado? Parece-me que isto não é comigo. Que dizes? Hem? (batendo no ombro do porteiro.) Que diabo, pois eu nada fiz, o que devo temer!? Sou muito pusilânime.


PORTEIRO – Tu sempre foste um poltrão. De tudo te assustas; de tudo tens medo! Diabo! (Empurra-o) Toma juízo! Deixa-te de...


CONTÍNUO – Ora, ora! E não entendo o que é ter juízo, pelo que vejo, e pelo que ouço. Vivo em minha casa. Trabalho incessantemente em proveito meu, e da minha família. Não ofendo a pessoa alguma! Sucede-me isto! Dizei-me: - O que é ter juízo?


PORTEIRO – Ter juízo é cometer... e... ai!ai! (pondo as mãos no rosto) que também estou ficando doente!


CREDOR (voltando) – Ainda hoje não recebo dinheiro! Prometeu-me um Empregado, e a mais um indivíduo que espera... Como de... (Sai.) Veremos se se pode receber segunda-feira!


UM DOS EMPREGADOS – Por que razão não se há de pagar a este homem!?


OUTRO – Eu sei disso!?


CREDOR –(voltando) – Não tenho melhor resolução a tomar, que a de sentar-me em uma das cadeiras desta repartição e nela esperar até que se me pague.


CERTO INDIVÍDUO – Então, por quê?


CREDOR - Ora, porque!? Porque não dou um passo que não encontre um que não me peça o aluguel da casa. Outro, que não me peça... que não me fale!...


O INDIVÍDUO – Tudo isso é bom!


CREDOR – É ; é; para certos indivíduos; para mim é péssimo! Nunca gostei de ser atacado em casa, quanto mais pelas ruas da cidade! Todos os que compelem a honra, ou aos que desejam viver com seriedade, - a essas cenas, - deveriam em minha opinião ficar condenados a idênticos; ou a outros procederes piores, contrários à sua vontade, ou desejos.


O INDIVÍDUO - (com a mão querendo fazer uma cruz) – Resquié d’impace! Resquié d’impassere; Amem! Amem! N’amem! N’amem! (Saindo). E vou m’embora (Sai)



ATO SEGUNDO



Salão em que trabalham diversas secções


CREDOR (entrando) – É a vigésima... não me lembro se quinta ou sétima vez que venho a esta casa haver aluguéis de casa! E talvez ainda hoje saia sem dinheiro! (À parte: ) Mas eles hão de se arranjar! (A um dos empregados, o Contador: ) Vossa Senhoria faz-me o obséquio de dizer se está despachando o conteúdo, ou quer que seja, quando a um requerimento que aqui tenho?


CONTADOR – Será... (lendo) Castro... Car... Cirilo, Dilermando!?


CREDOR – Não! É um requerimento meu, assinado – José Joaqim de Qampos Leão, Qorpo-Santo.


CONTADOR – Ah! Esse está no chefe da quarta secção.


CREDOR – Bem, então lá irei.(Dirigindo-se ao chefe: )Faz-me o obséquio de dizer se já está despachado um requerimento que aqui tenho?


CHEFE (apontando) – Fale ali com o Sr. Barbosa.


CREDOR (dirigindo-se a este) – Ainda não encontrou o que procurava a meu respeito?


BARBOSA – Ainda não! Há aqui tantos papéis!


CREDOR – Ora, com efeito! Pois tanto custa ver um ofício da Presidência, ou ver o assentamento que em virtude desse ofício deve existir no livro competente? Isto é, no mesmo em que se acham debitados tais aluguéis!? (Senta-se.)


CHEFE – V. Exa. Não adianta nada em esperar aqui! Antes atrasa o serviço para conseguir o que quer; deixe estar que está se trabalhando!


CREDOR – Eu, nem venho interromper, nem venho adiantar! Mas apenas saber! Parece-me cousa tão simples; tão fácil...


BARBOSA – São três ofícios da Presidência que o Sr. Inspetor quer ver! Não é um só.


CREDOR – Srs., eu já sei o que hei de fazer, o que os Srs. querem! Voltarei em tempo! 


(Ao sair, encontra-se com outro.) 


O OUTRO – Então, não!? (Dá-lhe uma caixa de fósforos.)


CREDOR – Estou doente; e assim fico todas as vezes que venho a esta casa, e dela saio sem dinheiro!


O OUTRO – Então fico eu pelo Sr.! (O Credor sai; e o Outro entra.)


O OUTRO – Muito custa esta casa pagar a quem deve! Faz-se uma dúzia de requerimentos para se obter um despacho! Cada requerimento leva outra dúzia de informações! O despacho definitivo obtém-se por milagre! E a paga ou dinheiro que a alguém se deve – quase à força, ou pela força!


UM DOS EMPREGADOS – (para esse Indivíduo) – Com efeito! O Sr. é audaz de mais!


O OUTRO – Não! Não é por audácia! É apenas referir o que se passa... o que é verídico!


EMPREGADO – Sim; mas nós não temos culpa!


O OUTRO- Nem eu inculpo a alguém! Mas receio, Srs., que os numerosos incômodos que tenho sofrimento, pelo procedimento que esta repartição para comigo – vai tendo; os vexames; as faltas; as privações; e até as enfermidades que tem me causado e numerosos outros transtornos, farão de repente com que se espalhe fogo nestes papéis – e tudo se incendie (Toca uma caixa de fósforos numa mesa; esta incendeia-se; ele a atira para as mesas de um dos lados; faz o mesmo à outra, e atira para outro lado; enquanto os empregados trabalham para apagar o fogo em alguns papéis que começam a incendiar-se, ele sai.)


(Já se vê que há descompostura; repreensões; atropelamento, carreiras em busca d’ água; ligeireza para se apagar; aparecimento de alguns outros empregados, ao ouvirem o grito de fogo, etc. Pode acabar assim; ou com a cena da entrada do Inspector, repreendendo a todos pelo mal que cumprem seus deveres; e terminando por atirarem com livros e penas; atracações e descomposturas etc.)




(A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro: http://www.bibvirt.futuro.usp.br)



(Ilustração: Francis Bacon)






segunda-feira, 28 de abril de 2014

TRÍPTICO, de Amélia Pais





           (à maneira popular...)

I

desamada
desarmada
vem o vento
vai-se o tempo
nem o tempo
nem o vento
dá o tempo
de sarar
de repente
vem o dia
chega a hora
borda fora
a acostar

volta atrás ó cavaleiro
volta atrás se quer's teu bem
tua amada
tua armada
com o tempo
desarmada
traz também


II

o que se sente
entre o que se pensa e diz .
o que se pensa
entre o que se sente e cala
o que se cala
entre o sentir e o ser
o que se diz
entre o que se ama e sonha

nós
no mais fundo de nós
nós perdidos
nós vazios
nós à margem


III

Quem vai responder
o que não tem resposta
Quem vai falar
o que não tem palavra
Quem vai achar
o que em nós esquece
Quem vai roer
o que em nós sufoca

Vem noite ou pranto ou dia ou vento
Quem quer que sejas que seja o novo
Abrindo o canto na carne clara




(Ao longe os barcos de flores)




(Ilustração: Christine Rosamond)








quinta-feira, 24 de abril de 2014

CONVERSINHA MINEIRA, de Fernando Sabino

   






- É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?

- Sei dizer não senhor: não tomo café.

- Você é o dono do café, não sabe dizer?

- Ninguém tem reclamado dele não senhor.

- Então me dá café com leite, pão e manteiga.

- Café com leite só se for sem leite.

- Não tem leite?

- Hoje, não senhor.

- Por que hoje não?

- Porque hoje o leiteiro não veio.

- Ontem ele veio?

- Ontem não.

- Quando é que ele vem?

- Não tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir, não vem.

- Mas ali fora está escrito "Leiteria"!

- Ah, isto está, sim senhor.

- Quando é que tem leite?

- Quando o leiteiro vem.

- Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?

- O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?

- Está bem, você ganhou: me traz um café com leite sem leite. Escuta uma coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade?

- Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.

- E há quanto tempo você mora aqui?

- Vai para uns quinze anos. Isto, não posso agarantir com certeza: um pouco mais, um pouco menos.

- Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?

- Ah, o senhor fala a situação? Dizem que vai bem.

- Para que Partido?

- Para todos os Partidos, parece.

- Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.

- Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que é outro. Nessa mexida...

- E o Prefeito? Que tal é o Prefeito?

- O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.

- Que é que falam dele?

- Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.

- Você, certamente, já tem candidato.

- Quem, eu? Estou esperando as plataformas.

- Mas tem ali o retrato de um candidato pendurado na parede.

- Aonde, ali? Ué, gente: penduraram isso aí...



(Ilustração: Aldemir Martins - carro de bois)



segunda-feira, 21 de abril de 2014

LOVE IS NOT ALL / O AMOR NÃO É TUDO, de Edna St. Vincent Millay










Love is not all: it is not meat nor drink
Nor slumber nor a roof against the rain;
Nor yet a floating spar to men that sink
And rise and sink and rise and sink again;
Love can not fill the thickened lung with breath,
Nor clean the blood, nor set the fractured bone;
Yet many a man is making friends with death
Even as I speak, for lack of love alone.
It well may be that in a difficult hour,
Pinned down by pain and moaning for release,
Or nagged by want past resolution's power,
I might be driven to sell your love for peace,
Or trade the memory of this night for food.
It well may be. I do not think I would.



Tradução de Paulo Mendes Campos:



O amor não é tudo: nem carne nem
bebida, nem é sono, lar da gente,
nem a tábua lançada para quem
se afunda e volta e afunda novamente.

O amor não pode encher o pulmão forte,
pôr osso no lugar, tratar humores,
embora tantos dêem a mão à morte
(enquanto o digo) só por desamores.

Bem pode ser, na hora mais doída,
ou da minha franqueza arrependida,
buscando alívio à dor, seja capaz

de vender teu amor por minha paz
ou trocar-te a lembrança pelo pão.
Bem pode ser que o faça. Acho que não.






(Ilustração: Edward Hopper)





sexta-feira, 18 de abril de 2014

DIMENSÕES TEMPORAIS EM POESIA, de César Leal






 
Ao estudar poetas modernos para os quais o conceito de tempo constitui uma preocupação constante, verifiquei não coincidir entre eles as diferentes dimensões temporais. Até o século XVIII, era comum encontrar-se a noção de tempo relacionada apenas às clássicas divisões conhecidas: passado, presente e futuro. Essa acepção de tempo refletia o postulado de Heráclito de que ninguém tomaria banho duas vezes no mesmo rio, nem tocaria duas vezes uma substância mortal no mesmo estado. Essa concepção de tempo é a que denominamos de tempo empírico, medido pela clepsidra, pelo relógio de areia, o relógio do sol, o relógio mecânico ou o relógio digital. O dramatismo do tempo heraclitiano está no fato de que não podemos retornar ao passado, a não ser pela recordação.

Mas ao considerar as dimensões do tempo na ciência é claro que não estou interessado em discutir as abstrações filosóficas: não me interessando, nem mesmo, as considerações sobre o tempo em Aristóteles, ou outros pensadores e poetas latinos: Santo Agostinho e Dracôncio, por exemplo. Enfim, a acusação de Bergson, em Duração e simultaneidade, a propósito da Teoria da Relatividade Geral de Einstein, também não entra no campo de meus interesses. O que pretendo é expor livremente o que venho pesquisando na poesia de autores deste século. E o que, surpreendentemente, encontro é um interesse maior dos poetas modernos pelas noções de tempo na física, na matemática, na biologia molecular. O que pretendo - como ensina o grande biólogo pernambucano Aluizio Bezerra Coutinho, em seu magnífico ensaio Da natureza da vida - é algo que me possibilite "abrir caminho para a compreensão do caráter explanatório unificador, as considerações ligadas ao conceito de autômato neumaniano e suas implicações fenomenológicas". O que Bezerra Coutinho afirma em relação ao objeto de seu estudo é justamente o que me preocupa em relação ao tempo: a uma fenomenologia de suas diferentes dimensões sejam de natureza filosófica ou simplesmente científica. A mim não importa dizer que para Heiddeger o tempo é o ser. Ou que "o tempo é o sentido do ser". O que Heiddeger afirma é muito importante para compreendermos a estrutura da história e, talvez, seria até útil aos políticos que contratam publicitários sem preparo filosófico para encherem os muros de "slogans" sem sentido sobre passado, presente e futuro, sem que saibam sequer definir o que é o tempo e a historicidade da existência do homem. "A medida científica do tempo, o conceito mesmo de eternidade, se referem todos ao tempo inautêntico, isto é, são determinações essencialmente vinculadas a existência que é lançada e imersa nas coisas do mundo". (Cf. Ser e Tempo, p. 427, nº 1).

Quando me referi à acusação de Bergson, foi ao fato dele dizer que sua teoria da "duração real" não está em conflito com a teoria de Einstein; o mal teria sido alguns desejarem transformar a teoria de Einstein em filosofia. Bergson em seus livros Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889) e Duração e simultaneidade (1922) procura mostrar que para a física e a matemática duração de um fenômeno é relativa já que se limitaria a um número determinado de unidades de tempo. Ou de simultaneidades que se apresentam como invariantes. Ou invariáveis. Acrescenta, ainda, um dado que pode ser contestado, ainda que não fosse quando expôs a sua teoria, sete anos após a formulação definitiva da Relatividade Geral de Einstein. Dizia ele que se todos os movimentos do universo se acelerassem de repente, inclusive os meios para a medida do tempo, nada mudaria em relação à ciência já que para a ciência há sempre o mesmo número de simultaneidades. Não ocorreria - segundo Bergson - o mesmo com a vida da consciência porque tal vida coincide com uma mudança real, uma vez que seus momentos não se justapõem um ao outro mas se fundem numa estrutura indissociável, uma espécie de enriquecimento unitário, perene, qualitativo, dentro de um processo contínuo: a "duração real", o que conduz a sucessão irreversível capaz de escapar a toda previsão. Será que a bem elaborada teoria de Bergson, feita para ajustar-se aos êxitos da teoria de Einstein ainda tem validade? Pior ainda depois do forte golpe desferido por Werner Heisenberg, em 1927, ao demonstrar que não existia uma medida para o tempo. Claro que Bergson ao falar em "meios para a medida do tempo" estava falando de algo inexistente. A não ser que estivesse a falar dos relógios... Mas é claro que Bergson não iria descer do alto de seu pensamento para tratar de coisas tão pouco filosóficas como os relógios, mesmo que estivesse a falar do relógio da existência!


(Diário de Pernambuco, 27.10.1997)


(Ilustração: Érica Cardoso - escarpas)


terça-feira, 15 de abril de 2014

O POEMA DAS CRIANÇAS TRAÍDAS, de Lindolf Bell










Eu vim da geração das crianças traídas

Eu vim de um montão de coisas destroçadas

Eu tentei unir células e nervos mas o rebanho morreu.

Eu fui à tarefa num tempo de drama.

Eu cerzi o tambor da ternura, quebrado.




Eu fui às cidades destruídas para viver os soldados mortos.

Eu caminhei no caos com uma mensagem.

Eu fui lírico de granadas presas à respiração.

Eu visualizei as perspectivas de cada catacumba.

Eu não levei serragem aos corações dos ditadores.

Eu recolhi as lágrimas de todas as mães numa bacia de sombra.

Eu tive a função de porta-estandarte nas revoluções.

Eu amei uma menina virgem.




Eu arranquei das pocilgas um brado.

Eu amei os amigos de pés no chão.

Eu fui a criança sem ciranda.

Eu acreditei numa igualdade total.

Eu não fui canção mas grito de dor.

Eu tive por linguagem materna, roçar de bombas, baionetas.

Eu fechei-me numa redoma para abrir meu coração triste.

Eu fui a metamorfose de Deus.




Eu vasculhei nos lixos para redescobrir a pureza.

Eu desci ao centro da terra para colher o girassol que morava no eixo.

Eu descobri que são incontáveis os grãos do fundo do mar

mas tão raros os que sabem o caminho da pérola.

Eu tentei persistir para além e para aquém do contexto humano,

o que foi errado.




Eu procurei um avião liquidado para fazer a casa.

Eu inventei um brinquedo das molas de um tanque enferrujado.

Eu construí uma flor de arame farpado para levar na solidão.

Eu desci um balde no poço para salvar o rosto do mundo.

Eu nasci conflito para ser amálgama.




II




Eu sou a geração das crianças traídas.

Eu tenho várias psicoses que não me invalidam.

Eu sou do automóvel a duzentos quilômetros por hora

com o vento a bater-me na cara

na disputa da última loucura que adolesceu.

Eu sou o anti-mundo à medida que se procura o não-existir.

Eu faço de tudo a fonte para alimentar a não-limitação.

Eu sei que não posso afastar o corpo que não transcende

mas sei que posso fazer dele a catapulta para sublimar-me.




Meu coração é um prisma.

Eu sou o que constrói porque é mais difícil.

Eu sou o que não é contra mas o que impõe.

Eu sou o que quando destrói, destrói com ternura

e quando arranca, arranca até a raiz

e põe a semente no lugar.




Eu sou o grande delta dos antros

Os amigos mais autênticos são as águas que me acorrem.




Eu sou o que está com você, solitário.

Quando evito a entrega, restrinjo-me.

Quando laboro a superfície é para exaurir-me.

Quando exploro o profundo é para encontrar-me.

Quando estribo braços e pernas na praça sobre o não alterável

É para andar a galope sobre a não-liberdade.




III




Sem bandeira que indique morte qualquer,

avanço das caliças.

Sem porto fixo à espera, nem lar de maternas mãos

ou rua de reencontro.

Ostento meus adeuses.

Sem credo a não ser à humanidade dos que me amam e desamam,

anuncio a catarse numa sintaxe de construção.




Eu escreverei para um universo de concessões.

Eu saberei que a morte não é esterco,

mas infinda capacidade de colher no chão menor adubado,

que poderei sorvê-la como à laranja que esqueceu de madurar,

que serei alimento para o verme primeiro da madrugada,

que a vida é a faca que se incorpora em forma de espasmo,

que tudo será diferente, que tudo será diferente, tão diferente...




Eu quero um plano de vida para conviver.

Eu ostentarei minha loucura erudita.

Eu manterei meu ódio a todos os cetros, cifras, tiranos e exércitos.

Eu manterei meu ódio à toda arrogante mediocridade dos covardes.

Eu manterei meu ódio à hecatombe de pseudo-amor entre os homens.

Eu manterei meu ódio aos fabricantes das neuroses de paz.

Eu direi coisas sem nexo em cada crepúsculo de lua nova.

Eu denunciarei todas as fraudes de nossa sobrevivência.




Eu estarei na vanguarda para conferir esplendores.

Eu me abastardarei da espécie humana.

Eu farei exceções a todos os que souberam amar.




(Os Ciclos, 1964)




(Ilustração: Monica Majoli - Rubberman Bound, 2007)







sábado, 12 de abril de 2014

CONFERENCIA DEL CACIQUE GUAICAIPURO CUATEMOC ANTE LA REUNIÓN DE LOS JEFES DE ESTADO DE LA COMUNIDAD EUROPEA/CONFERÊNCIA DO CACIQUE GUAICAÍPURO CUATÉMOC NA REUNIÃO DOS CHEFES DE ESTADO DA COMUNIDADE EUROPEIA, de Luis Britto García

   




Aquí pues yo, Guaicaipuro Cuatémoc, he venido a encontrar a los que celebran el encuentro.

Aquí pues yo, descendiente de los que poblaron la América hace cuarenta mil años, he venido a encontrar a los que se encontraron hace quinientos años.

Aquí pues nos encontramos todos. Sabemos lo que somos, y es bastante. Nunca tendremos otra cosa.

El hermano aduanero europeo me pide papel escrito con visa para poder escubrir a los que me descubrieron. El hermano usurero europeo me pide pago de una deuda contraída por Judas, a quien nunca autoricé a venderme. El hermano leguleyo europeo me explica que toda deuda se paga com intereses, aunque sea vendiendo seres humanos y países enteros, sin pedirles consentimiento. Yo los voy descubriendo.

También yo puedo reclamar pagos, también puedo reclamar intereses. Consta en el Archivo de Indias. Papel sobre papel, recibo sobre recibo, firma sobre firma, que solamente entre el año 1503 y 1660 llegaron a Sanlúcar de Barrameda 185 mil Kg de oro y 16 millones Kg de plata provenientes de América. ¿Saqueo? ¡No lo creyera yo! Porque sería pensar que los hermanos cristianos faltaron al Séptimo Mandamiento. ¿Expoliación? ¡Guárdeme Tanatzin de figurarme que los europeos, como Caín, matan y niegan la sangre del hermano! ¿Genocidio? ¡Eso sería dar crédito a calumniadores como Bartolomé de las Casas, que califican al encuentro de 'destrucción de las Indias', o a ultrosos como Arturo Uslar Pietri, que afirma que el arranque del capitalismo y la actual civilización europea se deben a la inundación de metales preciosos. ¡No! Esos 185 mil Kg de oro y 16 millones Kg de plata deben ser considerados como el primero de muchos préstamos amigables de América destinados al desarrollo de Europa. Lo contrario sería presumir la existencia de crímenes de guerra, lo que daría derecho no sólo a exigir su devolución inmediata, sino la indemnización por daños y perjuicios. Yo, Guaicaipuro Cuatémoc, prefiero creer en la menos ofensiva de las hipótesis.

Tan fabulosas exportaciones de capital no fueron más que el inicio de un plan Marshall-tezuma, para garantizar la reconstrucción de la bárbara Europa, arruinada por sus deplorables guerras contra los cultos musulmanes, creadores del álgebra, la poligamia, el baño cotidiano y otros logros superiores de la civilización. Por eso, al celebrar el Quinto Centenario del Empréstito, podremos preguntarnos: ¿Han hecho los hermanos europeos un uso racional, responsable o, por lo menos, productivo de los recursos tan generosamente adelantados por el Fondo Indoamericano Internacional? 

Deploramos decir que no.

En lo estratégico, lo dilapidaron en las "batallas de Lepanto", en "armadas invencibles", en "terceros reichs" y otras formas de exterminio mutuo, sin otro destino que terminar ocupados por las tropas gringas de la

OTAN, como Panamá pero sin canal.

En lo financiero, han sido incapaces, después de una moratoria de 500 años, tanto de cancelar el capital y sus intereses cuanto de independizarse de las rentas líquidas, las materias primas y la energía barata que les exporta el Tercer Mundo. Este deplorable cuadro corrobora la afirmación de Milton Friedman, conforme a la cual una economía subsidiada jamás puede funcionar. Y nos obliga a reclamarles, por su propio bien, el pago del capital y los intereses que, tan generosamente, hemos demorado todos estos siglos.

Al decir esto aclaramos que no nos rebajaremos a cobrarles a los hermanos europeos las viles y sanguinarias tasas flotantes de 20%, y hasta 30%, que los hermanos europeos le cobran a los pueblos del Tercer Mundo. Nos limitaremos a exigir la devolución de los metales preciosos adelantados, más el módico interés fijo de 10% anual, acumulado sólo durante los últimos 300 años.

Sobre esta base, y aplicando la fórmula europea del interés compuesto, informamos a los descubridores que nos deben, como primer pago de su deuda, una masa de 180 mil Kg de oro y 16 millones Kg de plata, ambas elevadas a la potencia de 300. Es decir, un número para cuya expresión total, serían necesarias más de 300 cifras, y que supera ampliamente el peso total de la Tierra. ¡Muy pesadas son esas moles de oro y plata! ¿Cuánto pesarían, calculadas en sangre? 

Aducir que Europa, en medio milenio, no ha podido generar riquezas suficientes para cancelar ese módico interés, sería tanto como admitir su absoluto fracaso financiero y/o la demencial irracionalidad de los supuestos del capitalismo.

Tales cuestiones metafísicas, desde luego, no nos inquietan a los indoamericanos.

Pero sí exigimos en forma inmediata la firma de una "carta de intención" que discipline a los pueblos deudores del Viejo Continente; y que los obligue a cumplir su compromiso mediante una pronta privatización o reconversión de Europa, que les permita entregárnosla entera, como primer pago de la deuda histórica.

Dicen los pesimistas del Viejo Mundo que su civilización está en una bancarrota tal que les impide cumplir con sus compromisos financieros o morales.

En tal caso, nos contentaríamos con que nos pagaran entregándonos la bala con la que mataron al Poeta.

Pero no podrán.

Porque esa bala es el corazón de Europa.



Tradução de Isaias Edson Sidney:



Aqui estou eu, Guaicaípuro Cuatémoc, para encontrar os que celebram o encontro.

Aqui, portanto, eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos, venho encontrar os que a encontraram há 500 anos. 

Aqui, portanto, estamos todos. Sabemos o que somos, e é o suficiente. Nunca fomos outra coisa.

O irmão europeu da aduana me pediu um papel escrito, um visto, para poder descobrir os que me descobriram. O irmão financista europeu me pede o pagamento de uma dívida contraída por um Judas, a quem nunca autorizei que me vendesse. O irmão rábula europeu me explica que toda dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros, sem pedir-lhes permissão. E eu vos vou descobrindo.

Também eu posso reclamar pagamento, também posso reclamar juros. Consta no Arquivo das Índias. Papel sobre papel, recibo sobre recibo, assinatura sobre assinatura, que somente entre os anos 1503 e 1660 chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América. Um saque? Eu não acredito! Porque seria imaginar que os irmãos cristãos descumpriram o Sétimo Mandamento! Expoliação?Livre-me Tanatzin de acreditar que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão! Genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas que qualificam o encontro de "destruição da Índias", ou Arturo Uslar Pietri, que afirma que o desenvolvimento do capitalismo e a atual civilização europeia se devem à inundação de metais preciosos! Não! Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser considerados como o primeiro de muitos empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução imediata, mas também a indenização por perdas e danos. Eu, Guaicaípuro Cuatémoc, prefiro pensar na hipótese menos abusiva. 

Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano "Marshall-tezuma", para garantir a reconstrução da bárbara Europa, arruinada por suas guerras deploráveis contra os cultos muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho diário e outras conquistas superiores da civilização. Por isso, ao celebrarmos o Quinto Centenário desse Empréstimo, poderemos nos perguntar: Os irmãos europeus fizeram uso racional, responsável ou, pelo menos, produtivo dos recursos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indoamericano Internacional? 

Lamentamos dizer que não.

No aspecto estratégico, dilapidaram-no nas "batalhas de Lepanto", em "armadas invencíveis", em "terceiros reichs" e outras formas de extermínio mútuo, sem um outro objetivo que não fosse terminarem ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como o Panamá, mas sem o canal.

No aspecto financeiro, foram incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de amortizar o capital e os juros, quanto se tornarem independentes das rendas liquidas, das matérias primas e da energia barata que lhes envia o Terceiro Mundo. Esse quadro deplorável corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar. E nos obriga a reclamar-lhes, para o seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente, temos demorado todos estes séculos para cobrar. 

Ao dizer isso, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e até 30% de juros que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo. Nós nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos emprestados, acrescidos de módicos juros fixos de 10% ao ano, acumulados apenas durante os últimos 300 anos.

Sobre essa base, e aplicando a fórmula européia de juros compostos, informamos aos descobridores que eles nos devem, como primeiro pagamento de sua dívida, 180 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, elevadas à potência de 300. Isto é, um número para cuja expressão total seriam necessários mais de 300 algarismos, e que supera amplamente o peso total da Terra. São pesadas essas toneladas de ouro e prata! Quanto custariam, se calculadas em sangue?

Acrescentar que a Europa, em meio milênio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para pagar esses módicos juros seria como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a louca irracionalidade dos pressupostos do capitalismo. 

Tais questões metafísicas, desde já, não nos afligem, aos indo americanos.

Porém, sim, exigimos a assinatura imediata de uma "carta de intenções" que oriente os povos devedores do Velho Continentes; e que os obrigue a cumprir seu compromisso com uma imediata privatização ou reorganização da Europa, que lhes permita entregá-la inteira a nós, como primeira prestação da dívida histórica.

Dizem os pessimistas do Velho Mundo que sua civilização está em tal grau de bancarrota, que isso os impede de cumprir com seus compromissos financeiros ou morais.

Nesse caso, contentar-nos-íamos com que nos paguem entregando-nos a bala com que mataram o Poeta.

Mas, não poderão fazê-lo.

Porque essa bala é o coração da Europa.





(Ilustração: Museu de Arte Pré-Colombiana, Santiago - Chile; foto de Fábio Pina)





quarta-feira, 9 de abril de 2014

A UM HOMEM , de Adalgisa Néri











Quando numa rocha porosa

Cansado te encostares

E dela vires surgir a umidade e depois a gota,

Pensa, amado meu, com carinho,

Que aí esta a minha boca.

Se teus olhos ficarem nas praias

E vires o mar ensalivando a areia

Com alegria pensa amado meu

Num corpo feliz

Porque é só teu.

Se descansares sob uma arvore frondosa

E além da sombra ela te envolver de ar resinoso

Lembra-te com entorpecência amado meu,

Da delicia do meu ventre amoroso.

Quando olhares o céu

E vires a andorinha tonta na amplidão

Pensa amado meu que assim sou eu

Perdida na infindável solidão.

À noite quando as trevas chegarem

E vires do firmamento

Uma estrela cair e se afundar

É sinal amado meu

Que o teu amor vai me abandonar.

Na morte, quando perderes o último sentido

E a tua própria voz

Em forma de pensamento

Te subir ao ouvido

Deixa escorrer a derradeira lagrima pelo teu rosto

Nascida do extremo alento do coração

E pensa então amado meu

Que ainda é um suave carinho da minha mão!






(Ilustração: Mara Sicca)


domingo, 6 de abril de 2014

DA LIBERDADE, de Mikhail Bakunin






Importa-me muito o que os outros homens são, porque por mais independente que me julgue ou que pareça pela minha posição social —mesmo que eu fosse papa, czar, imperador ou até primeiro ministro — não deixaria de ser o produto dos últimos entre eles; se eles são ignorantes, miseráveis, escravos, a minha existência é determinada pela sua ignorância, pela sua miséria e escravidão. Eu, por exemplo, sou um homem esclarecido pelas suas inteligências e sou um tolo pelas suas tolices; se iracundo, sou escravo da sua escravatura; se rico, tremo com a sua miséria; se privilegiado, empalideço diante da sua justiça. Mesmo que eu queira ser livre, não posso. Porque à minha volta ainda nenhum homem quer ser livre e não o querendo, eles transformam-se contra mim, em instrumentos de opressão.

Não é imaginação, é uma realidade da qual se tira uma triste experiência. Por que, depois de tantos esforços sobre-humanos, depois de tantas revoluções vitoriosas, depois de tantos sacrifícios dolorosos e tantos combates pela liberdade, a Europa continua escrava? Porque em todos os países da Europa há ainda uma massa, a massa dos camponeses, imóvel, pelo menos aparentemente, e que esteve até aqui inacessível à propaganda das ideias de emancipação, de humanidade e de justiça. É ela que constitui hoje a força, o último apoio e o último refúgio dos déspotas, uma autêntica maça nas suas mãos para nos esmagar, e enquanto nós não conseguirmos incutir-lhes as nossas aspirações, as nossas paixões, as nossas ideias, não deixaremos de ser escravos. Temos de emancipá-la, para nos emanciparmos.(…)

Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, forem igualmente livres, de modo que, quanto mais numerosos forem os homens livres que me rodeiam e quanto mais profunda e maior for a sua liberdade, tanto mais vasta, mais profunda e maior será a minha liberdade. Eu só posso considerar-me completamente livre quando a minha liberdade ou, o que é a mesma coisa quando a minha dignidade de homem, o meu direito humano refletidos pela consciência igualmente livre de todos, me forem confirmados pelo assentimento de todos. A minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de todos, estende-se até o infinito. (…)

A liberdade dos indivíduos não é um fato individual. É um fato, um produto coletivo. Nenhum homem conseguiria ser livre isolado e sem a contribuição de toda a sociedade humana. Os individualistas, os falsos amigos que combatemos em todos os congressos de trabalhadores, afirmaram, com os moralistas e os economistas burgueses, que o homem podia ser livre, que podia ser homem, afastado da sociedade, dizendo que a sociedade tinha sido fundada por um contrato de homens anteriormente livres.

Esta teoria — desenvolvida por Jean-Jacques Rousseau, o escritor mais nefasto do século XVIII, o sofista que inspirou todos os revolucionários burgueses —, denota uma ignorância completa tanto da natureza como da história… Imaginem o homem, dotado pela natureza com as faculdades mais geniais, afastado desde a tenra infância da sociedade humana, num deserto. Se ele não perecesse miseravelmente, o que seria o mais provável, ficaria um bruto, um macaco privado da palavra e do pensamento —, pois o pensamento é inseparável da palavra: ninguém consegue pensar sem linguagem. Mas o que é a palavra? É a comunicação, é a conversação entre indivíduos. O homem animal só se transforma em ser humano, isto é, pensante, por esta conversão, só pela conversação. A sua individualidade humana, a sua liberdade, é pois produto da coletividade.

O homem só se emancipa da pressão tirânica exercida sobre ela pela natureza exterior com o trabalho coletivo; pois o trabalho individual, impotente e estéril, nunca saberia vencer a natureza.(…)

Tudo que é humano no homem, e a liberdade mais do que qualquer outra coisa, é produto de um trabalho social, coletivo. Ser livre no isolamento absoluto é um absurdo inventado pelos teólogos e metafísicos.(…)

O homem só se torna verdadeiramente homem quando respeita e ama a humanidade e a liberdade de todos, e quando a sua humanidade e liberdade são respeitadas, amadas, suscitadas e criadas por todos. (…)

O homem não criou a sociedade, nasceu nela. Não nasceu livre, mas acorrentado, produto de um meio social particular criado por uma longa série de influências passadas, por desenvolvimentos e fatos históricos. Está marcado pela região, clima, o tipo étnico, a classe a que pertence, as condições econômicas e políticas da vida social e, finalmente, pelo local, cidade ou aldeia, pela casa, pela família e vizinhança em que nasceu.

Tudo isto determina o seu caráter e a sua natureza, dá-lhe uma linguagem definida e impõe-lhe, sem que ele possa resistir, um mundo constituído por ideias, costumes, sentimentos, perspectivas mentais, e o lugar, antes do despertar da sua consciência, numa relação rigorosamente determinada pelo parentesco com o meio social que o cerca. Torna-se organicamente membro de uma sociedade, acorrentado a ela interior e exteriormente, impregnado, até o fim dos seus dias, pelas suas crenças, juízos, paixões e costumes.

A pressão social sobre o indivíduo é imensa, e não há caráter tão forte, nem inteligência tão poderosa que esteja ao abrigo dos golpes desta influência tão despótica como irresistível.

Nada prova tanto o caráter social do homem como esta influência. Poder-se-ia dizer que a consciência coletiva de qualquer sociedade, encarnada tanto nas grandes instituições públicas como em todos os detalhes da vida privada e servindo de base a todas as suas teorias, forma uma espécie de meio ambiente, uma espécie de meio intelectual e moral, prejudicial mas necessário à existência de todos os seus membros. Ela domina-os e sustenta-os ao mesmo tempo, ligando-os pelos mesmos costumes que ela própria determina; inspirando a cada um segurança, confiança e constituindo para todos a condição suprema da existência do grande número, a banalidade, o vulgar, a rotina.

A maior parte dos homens, não só nas massas populares mas também nas classes privilegiadas e esclarecidas, tanto e até mais do que nas massas, só se sentem tranquilos e em paz consigo próprios quando, nos seus pensamentos e em todos os atos da sua vida, seguem, com fidelidade e cegueira, a tradição e a rotina. (…)

A maior parte dos indivíduos só quer e pensa o que as pessoas que os rodeia quer e pensa; eles acreditam, sem dúvida, querer e pensar por si próprios, mas só fazem reaparecer servilmente, rotineiramente, com modificações quase imperceptíveis ou nulas, os pensamentos e as vontades dos outros. Este servilismo, esta rotina, fontes inesgotáveis do indivíduo vulgar, esta ausência de revolta na vontade e de iniciativa no pensamento dos indivíduos são as principais causas da lentidão desoladora do desenvolvimento histórico da humanidade. Para nós, materialistas ou realistas que não acreditamos nem na imortalidade da alma nem no livre arbítrio, esta lentidão, por mais exasperante que seja, aparece-nos como um fato natural. Partindo do nível do gorila, o homem só com muita dificuldade atinge a consciência da sua humanidade e a realização da sua liberdade. De início, ele não pode ter nem esta consciência, nem esta liberdade; ele nasce um animal feroz e escravo e só se humaniza e emancipa progressivamente no seio de uma sociedade, que é necessariamente anterior ao nascimento do pensamento, da palavra e da vontade; e só o pode fazer por meio dos esforços coletivos de todos os membros, passados e presentes desta sociedade que é, por isso, a base e o ponto de partida natural da sua existência humana. Disto resulta que o homem só realiza a sua liberdade individual e a sua personalidade completando-se com indivíduos que o cercam, e só graças ao trabalho e à força coletiva da sociedade, a própria sociedade, longe de diminuir e de limitar, cria, pelo contrário, a liberdade dos indivíduos.(…)

Uma revolta radical contra a sociedade seria tão impossível para o homem como a revolta contra a natureza.

É-nos tão pouco possível interrogar se a sociedade é um bem ou um mal, como se a natureza, o ser universal, material, único, real, supremo, absoluto, é um bem ou um mal; é mais do que tudo isto; é um imenso fato positivo e primitivo, anterior a toda a apreciação intelectual e moral, é a própria base, é o mundo no qual, fatalmente e mais tarde, nós desenvolvemos o que chamamos o bem e o mal.



(Obras Completas, tradução de Jorge Dessa).




(Ilustração: Cosmo Clark - french people)