quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O BICHO DA ESCRITA, de Rui Zink

     



Todos os meus amigos escrevem. Excelente. Todos os meus amigos gostam de escrever. Formidável. Eu próprio não desgosto de escrever, embora já não o faça. Escrever é bom. Escrever as palavras. Escrever as coisas. Escrever o mundo. O mundo dentro de nós. E o mundo fora de nós. Todos os meus amigos escrevem. Todos os meus amigos são escritores. Todos os meus amigos fazem livros.

E o pior é que não são só os meus amigos. As outras pessoas também. Os meus vizinhos escrevem - poemas. O senhor que entregava as cartas também escreve - livros de viagens, acho. A empregada do café escreve romances policiais, o funcionário do banco escreve novelas de amor, o dono da mercearia escreve - romances históricos. A minha mãe escreve ficção científica, os meus irmãos escrevem banda desenhada, até os nossos primos mais afastados escrevem - acho que best-sellers, mas não tenho a certeza, podem ser apenas ensaios de hermenêutica neo-visigótica.

Só o meu pai não escreve, porque já morreu. Se estivesse vivo escrevia de certeza, e até sei o quê - novelas picarescas. No hospital, todos os doentes escrevem e os médicos que lhes prescrevem as receitas também escrevem. Da literatura inclusa à literatura médica, nem mesmos os enfermeiros, os maqueiros, os polícias de piquete ou os funcionários do balcão de atendimento deixam de escrever.

Esta situação é preocupante. O governo já anunciou que irá tomar medidas. Não é de excluir, admitiu o porta-voz do governo, que seja declarado o estado de emergência. O porta-voz do governo já não fala - ele próprio foi atingido pela doença. Eu por acaso li o que escreveu, mas não sei se ele estava a falar a sério - a escrever a sério - ou se era apenas mais um capítulo da sua nova (e interessantíssima) ficção política. Aliás, devo ter sido o único que o leu ou, vá lá, um dos poucos. Porque deve haver mais como eu, quero dizer, tenho de partir desse princípio, não? Convém não confundir o facto de não conhecer mais ninguém como eu com a assunção, quiçá precipitada, de não haver mais ninguém como eu.

A doença é altamente contagiante. Faz o Ebola parecer um vírus de brinquedo, tal a velocidade a que se reproduz e transmite. O período de incubação dura entre três a seis horas, findo o qual a vítima, até então uma pessoa normal, se torna abruptamente num escritor. Os hospitais estão a rebentar pelas costuras, a abarrotar de gente obcecada pela sua dose de papel e caneta. E cada vez têm de escrever mais, de aumentar a dose, porque cada vez têm mais e mais ideias, mais e mais amor à literatura, às belas palavras, à poesia secreta que se esconde por trás das belas palavras - mesmo das feias, dizem os casos terminais.

Os cientistas ainda não conseguiram isolar o vírus, ou encontrar um antídoto, ou mesmo simplesmente identificar a origem da doença, ou explicar-lhe a natureza, porque… pois, isso mesmo, estão todos ocupados a escrever. Há pessoas que já definharam e se consumiram por inanição. Nada de espantar, é até bastante lógico, embora escabroso: escrevem, não comem, morrem.

Acidentes ocorrem em massa. Os despistes são mais que muitos. Por toda a cidade se ouvem explosões. Os taxistas vão muito bem a meter a terceira, lembram-se de uma frase, põem-se a escrever, largam o volante e… É terrível.

Até as crianças se põem a escrever. As que ainda não sabem o alfabeto inventam um, ou garatujam bonecos simbólicos, e inventam histórias, histórias, histórias. Bebés de um ano, que digo?, de meses, pegam numa caneta, num lápis, e mexem as mãozitas fechadas para a frente e para trás, com uma habilidade inaudita. Claro que acabam por rasgar o papel e rabiscar o chão todo para além das esparsas fronteiras da folha branca, mas não se importam com isso, continuam sem parar a escrever os símbolos do mundo. E os pais também não ligam, porque eles próprios estão ocupados a escrever, e o que é um chão todo rabiscado em comparação com um brilhante conto infantil onde uma princesa ajuda um cavaleiro a não se perder na floresta negra onde vai combater um dragão maligno com a simples dádiva de um dos seus belos cabelos louros? Hum?

Nunca se viu nada assim. A situação é grave, toma proporções calamitosas e não há sinais de se vir a atenuar. Gostaria de o dizer de outra maneira, mas não há outra maneira de o dizer: o mundo corre o risco de sucumbir ao peso de tantos romances, contos, ensaios, novelas, poemas. Os poemas, esses então, são mais que as mães. Odes, elegias, éclogas, adágios, quadras, redondilhas, dísticos, ditirambos, alexandrinos, pastorais, quintanilhas, décimas, duodécimas, litotes, sonetos, sonetinos, sonatinas.

Não estou a ser alarmista. A Terra já saiu ligeiramente da órbita. E o número de escritores e poetas não pára de aumentar de dia para dia. E o número de palavras escritas. E de frases inovadoras: curtas, longas, frases de uma só palavra ("Ele. Disse. Para. Ela."), frases sem vírgulas durante duzentas páginas ("Não vale a pena dar aqui um exemplo teria de ocupar duzentas páginas mas esta pequena amostra talvez já sirva para dar uma ideia ou então o melhor ainda é pelo menos gastar mais meia linha com esta frase idiota de modo a que a ideia que estava a tentar ser dada seja mais clara e convincente e acho que agora já chega o exemplo já está dado acho"), torniquetes e arrebiotes de sintaxe que uma pessoa não julgaria possíveis ou razoáveis.

Uma pessoa pergunta-se sempre: "Que mais irão eles inventar?". Ou "Será que ainda há algo para inventar?" Pelo menos era o que me perguntava antes - antes da epidemia. Pois se há coisa que a doença veio provar é que as possibilidades de invenção - e as capacidades humanas de inventar - são inesgotáveis. É triste, mas é a dura realidade: a imaginação humana está em contínua expansão, como o universo. A imaginação humana é como um buraco negro, tudo consome, tudo devora. E a humanidade corre o risco de se extinguir por causa disso. Por excesso de imaginação, por excesso de talento, por excesso de criatividade.

Com franqueza, há um limite para tanta produção artística e cultural. Ou devia haver, porque, pelos vistos, não há.

Ainda por cima de qualidade. Sim, porque, quem sou eu para o negar?, as pessoas não só escrevem como ainda por cima o que escrevem é bom, é interessante, é válido, merece ser lido, tem estilo pessoal, vem ocupar um espaço no espaço da literatura que estava por ocupar porque não sabia, antes de ser ocupado, que esse espaço existia e era ocupável. Cada pessoa cria o seu nicho com a mesma avidez e a mesma precisão milimétrica com que a andorinha constrói o seu ninho. E, se é certo que uma andorinha não faz a primavera nem um escritor chega para fazer a literatura, muitas andorinhas juntas, milhares, milhões, biliões de andorinhas juntas chegam e sobram para fazer à vontade uma caterva inteira de primaveras: sobretudo daquelas que trazem como brinde gratuito uma senhora porção de verões, outonos e, claro, invernos. Esse é que é o busílis.

E esse é também o génio do vírus. Põe as pessoas a escrever - e a escrever bem. Se lhes desse a vontade, mas não o talento, ainda era como o outro. Um médico que descobre, ao fim de centenas de páginas, que se limitou a parodiar Fernando Namora, pode ainda voltar a exercer medicina, a fazer aquilo para que tem realmente jeito. Uma advogada que se dê conta de que nem todas podemos ser Agatha Christie ainda pode ser útil aos seus clientes. Mas que fazer com um obstetra que faz páginas belíssimas? E com uma causídica que nos faz ficar na dúvida sobre quem é o criminoso até ao derradeiro parágrafo? Hum? É triste. É trágico. É insuportável. Histórias bem arquitectadas, com indiscutível mestria, personagens credíveis, textos que compreendem a essência da coisa literária: que não é nas palavras, mas para além das palavras, que se encontra a beleza do texto.

*

A princípio até houve uma euforia colectiva, os jornais falavam de um "novo nascimento", os críticos de um "momento ímpar" da nossa literatura, os poderes públicos da pujança de uma "nova geração de criadores". Só depois começaram os pequenos indícios de que poderia haver algo de errado neste surto de talento, mas ninguém conseguiu - ou quis - ver o que estava a acontecer. E, verdade seja dita, por essa altura também já muita gente estava contaminada e começara a escrever, primeiro com alguma hesitação e sentido de responsabilidade, depois cada vez mais furiosamente - até ao romance final.

Agora?Agora o mundo é um lugar lúgubre, são tempos enegrecidos, estes. E o pior é quando chegar o inverno. No verão ninguém dá por falta das formigas, apenas das cigarras. Mas quando chega o inverno… Os mercados estão vazios, a distribuição de pão e outros alimentos básicos não é feita, o próprio pão não é feito. As lojas estão vazias, abertas, escancaradas para a rua, mas vazias. Sem ninguém a guardá-las, sem ninguém nas caixas, sem ninguém para acender ou apagar as luzes. Nos hipermercados, uma pessoa pode levar para casa tudo o que quiser nos carrinhos metálicos. Mas, se não tiver uma moeda, não pode levar nem um carrinho porque não há onde trocar a moeda.

Há, claro, coisa boas. As televisões deixaram de funcionar. Acabaram-se as telenovelas, as "novelas da vida real", e a ironia é que se acabaram precisamente na altura em que se multiplicou por mil o número de autores de telenovelas. Só que já não há ninguém para as filmar: actores, operadores de câmara, maquilhadoras, realizadores, produtoras, assistentes de realização, equipas de luminotecnia, guarda-roupa, pós-produção e montagem, estão todos cada um para seu lado a escrever o livro das suas vidas. Também, seria preciso dizê-lo?, já não há boletim meteorológico. Receio que aconteça o pior se os barcos forem para o mar sem saber que mau tempo os espera. Mas imediatamente me dou conta da parvoíce que acabo de dizer. Já não há niguém para se fazer ao mar, os pescadores abandonaram as redes, os arpões, os convés, os iscos, e estão todos de papel e caneta a descrever relatos de naufrágios, aventuras com peixes de nome impronunciáveis, palimpsestos de Moby Dick, versões melhoradas e adaptadas aos tempos modernos da noveleta de Hemingway, O Velho e o Mar.

Há bocado disse que eu devia ser o único a ter lido o último comunicado do governo. Depois corrigi e disse que não, talvez não seja o único. Talvez não seja, de facto, mas até agora não sei onde estarão os outros, esses outros que ainda não foram atingidos por esta loucura colectiva, nem se serão como eu ou se terão eles mesmos sofrido alguma mutação. Não sei por que motivo fiquei imune ao vírus. Terá a ver com o meu AND, o meu código genético, com o meu tipo de sangue, com a insuficiência (ou o excesso) de melanina nos meus poros? Faltam-me os conhecimentos científicos para o poder dizer sem correr o risco, impróprio sobretudo nesta ocasião, de cair na ficção científica ou no delirio fantasista disfarçado de saber objectivado.

Se não sou a única pessoa no mundo que, neste momento, neste talvez derradeiro momento da humanidade, lê o que os outros escrevem, onde estão os meus camaradas de armas? Será possível reunirmo-nos e criar um bastião de resistência, uma organização underground que lute contra a epidemia e, através do estudo, da leitura, da experimentação teórico-prática, encontre uma solução para devolver a saúde aos homens e pôr de novo o mundo a funcionar? Não sei. Confesso que não tenho muita esperança.

Eu sou um leitor. Sei o que sou: leio o que outros escrevem. Faço-o até compulsivamente. De manhã, ao pequeno-almoço, mesmo que não tenha um jornal pela frente, as páginas com a tinta ainda fresca aflorando a chávena de café, os meus olhos percorrem instintivamente a mesa, à procura de palavras, letras, frases para ler: "Corn Flakes", "rico em vitaminas e minerais", "Loja 18 - Rua Camilo Castelo Branco, 15-A", "Planta - margarina vegetal, 250 gramas"… Depois, à medida que o dia avança, vou lendo tudo: todos os jornais, todos os anúncios, todos os números de todas as portas, todos os nomes de todos os médicos na placa da policlínica que fica na rua pela qual perpasso todos os dias. Leio todos os romances que me passam pela frente, leio todos os ensaios que consigo ler, todos os poemas que me passam para a mão quando, à hora do almoço, vou comer um mini-prato ao balcão da pastelaria do bairro onde fica o meu emprego, no qual tenho por função ler todos os documentos que colocam em cima da minha secretária para esse mesmo devido efeito, que é eu lê-los.

É verdade, não sei por que milagre fiquei imune ao vírus. E o engraçado é que nem sempre fui assim. Em jovem, eu próprio tentei escrever. Pode-se lá viver sem ter tentado escrever! Embora nessa altura, devo dizê-lo, houvesse muito menos gente a escrever. Eram outros tempos, havia muito analfabetismo, era uma vida de trabalho. Depois, descobri que preferia ler. Mas antes, confesso, eu próprio tinha a mania de escrever. Nada especial, acho: uns poemetos, um ou outro conto, dois ou três esboços de diálogos para teatro. Mas não vale a pena escondê-lo, eu tinha a mania de que sabia escrever.

Talvez por isso eu tenha ficado imune, se calhar o meu pecadilho de juventude - queria ser escritor! - funcionou como vacina. Isso protegeu-me, até à data, admito, mas não sei até que ponto isto é uma bênção ou uma maldição. Sou um leitor num mundo de escritores, e isso faz-me sentir muito sozinho. Porque todos escrevem - mas ninguém lê o que os outros escrevem. Ninguém senão eu. Não têm tempo. Estão tão absortos a contar a sua história, a conceber o seu monumento de imaginação e arte, que não têm tempo para ler. Nem é uma questão de ter tempo, é que, simplesmente, já não conseguem. Não conseguem ler. E, qualquer dia, já não sabem ler. As línguas assim vão acabar, ainda antes mesmo do mundo, porque cada um vai cada vez mais e mais escrever na sua própria língua, no seu código muito pessoal, esquecendo-se de que a comunicação tem dois sentidos e que, para se ser compreendido, é preciso partilhar os elementos para essa compreensão. Não lêem. Só escrevem. Morrem. Tal é a potência, a perversão demente do vírus.

*

E você? Não sei se existe, caro/a colega de sobrevivência neste mundo em colapso. Se ler isto, é porque ainda existe, e então fica a saber que, algures no planeta, talvez mesmo na sua cidade, há alguém que partilha os seus medos, angústias, mas também as suas esperanças. E talvez possamos encontrar-nos, era mesmo bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, para unir esforços, e procurar outros como nós: leitores imunes ao bicho da escrita. Bem sei que a sua primeira reacção talvez seja pensar: "Este tipo está a tentar enrolar-me. Ele próprio é um escritor, não um leitor de verdade. Ele próprio foi contaminado e está a tentar fazer-me crer que não, provavelmente com algum fim pouco honesto."

Está no seu inteiro direito de pensar isso, eu também o pensaria se me aparecesse pela frente uma história assim. Nós não somos desconfiados por natureza, mas por cultura - e nunca ninguém perdeu em desconfiar do vizinho. Razão tinha Kissinger, quando dizia que até os paranóicos têm inimigos. Peço-lhe apenas o benefício da dúvida. Peço-lhe? Imploro-lhe. Aqui onde me vê, estou de joelhos, implorando-lhe que acredite em mim. Isto não é uma história, isto não é ficção. Estou apenas, genuinamente, a tentar estabelecer contacto com alguém que exista do outro lado da página.

Estou a estender-lhe a mão. Por favor, considere a possibilidade de me estender a sua.

Só mais uma palavra. Não escreva a responder. Bem sei que se calhar está imune, mas nunca se sabe. Apareça, apenas. Eu saberei reconhecê-lo/a, e você também me reconhecerá com facilidade. Seremos os únicos - na praça, no jardim, na rua, no café, onde quer que nos encontremos - sentados pacatamente, com um sorriso nos lábios e um livro, aberto, na mão.



(Ilustração: Robert Delaunay - nude woman reading)



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

EXPLICAÇÃO DA ETERNIDADE, de José Luís Peixoto



    






devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.




(A Casa, A Escuridão)





(Ilustração: Siegfried Zademack)




quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

VAMOS SER VISITADOS POR SERES SAÍDOS DO CÉU, de Lídia Jorge







Macário fazia agradecimento, deixando a vizinhança entoar sozinha. E virava o alto da cabeça nos joelhos. Os cabelos soltos como erva escura por segar. Quando Jesuína Palha disse. O que vejo, meu deus? Vem aí um carro. Um carro celestial. Celestial. Olhem todos. Traz os anjos e os arcanjos. Oh gente. E São Vicente por piloto. Disse Jesuína Palha que voltava da ceifa, ainda com o avental e o lenço repletos de praganas. Todos olharam. Na verdade surgia na curva da estrada, pelo lado poente, qualquer coisa de tão extravagante que todos os que conseguiam enxergar a mancha de cores, virando as cabeças julgaram ir cair de borco sobre o chão da rua. Embora a mancha já volumosa, avançasse lentamente. Ocupando no espaço as três dimensões duma coisa visível, sólida e palpável. Mas os homens, pondo a mão, e fazendo muito esforço para verem claro o que avançava com tanta majestade, disseram. Menos rápidos e mais lúcidos. Vamos. Vamos ser visitados por seres saídos do céu, e vindos de outras esferas. Onde os séculos têm outra idade. Afastem-se, vizinhos, que esta visão costuma fulminar. As crianças correram estrada fora, comandadas pela coragem. Sentiam que o mar ia chegar atrás dum barco de velas alvadias e soltas, desfraldadas à levíssima brisa da tarde. E também começaram a esbracejar, esboçando gestos de natação. Mas Macário. Tendo sido o último a enxergar, teve a visão exacta. No momento da surpresa ainda tinha os olhos fechados de repetir pela última vez. À espera de ocasião. À espera de ocasião.

- Isto é um carro de combate. Oh vizinhos.

Na verdade, a pleno meio da estrada avançava um carro singular, porque vinha pejado de soldados garbosos e épicos, penetrando já pelo centro de Vilamaninhos com bandeiras e flores. E cantavam por um altifalante como se viessem munidos de uma poderosa orquestra. Agora já o espectáculo era tão real e tão bonito que todos. Esquecidos desses primeiros segundos de pasmo e confusão. Sentiram estar suspenso o toque, o canto e a audição desde há pouco. Para só ouvirem - e verem aquilo que chegava em cima do carro aberto e blindado. Todos tinham a certeza que desde tempo dos reis nunca mais se vira de igual. Ah maravilha. Então o carro parou em frente do grupo, e fez-se um momento de silêncio tão solene que as pessoas pensaram ir morrer. Mas um soldado. Particularmente bem feito, tendo sem dúvida nascido numa terra muito diferente. Começou a falar de cima do carro, agora parado no largo. Dizia coisas. Que tinha feito uma re vo lu ção, e que era preciso animar os espíritos. Porque tudo. Tudo. E abria uns braços de salvador. Tudo iria ser modificado. Falava tão bem, que todos se encontravam encantados no timbre daquela voz. E nas maneiras másculas, sendo contudo delicadas, como se não sentisse o soldado o peso do corpo. Na farda, no cabelo levemente encaracolado. E ninguém era capaz de dizer fosse o que fosse, presos, todos da surpresa e da maravilha. Nem Macário. Nem Manuel Gertrudes. Os outros soldados sentindo sem dúvida a perturbação que invadia os naturais de Vilamaninhos, levantaram então os braços e disseram o que os ouvintes porventura queriam dizer. Mas falaram os soldados em conjunto. Tão alto e tão vibrante. Que os vilamaninhenses só compreenderam que uma grande coisa eles haviam dito, e maiores ainda teriam a dizer no futuro. Quando acabaram o largo estava cheio de gente que escutava. Nem se sentia o vazio dos ausentes. E Macário, receando que os habitantes de Vilamaninhos estivessem a desempenhar o papel de bêbados na perfeição, e animado, porque antes da chegada, acabara de ouvir da boca do seu vizinho, que o seu lugar não deveria, ser ali. Sentindo-se patrício desses forasteiros. Disse.

- Nós aqui soubemos logo, dois dias depois, que vocês tinham feito a re vo lu ção. Mas nunca pensámos que chegássemos a ver os heróis.

O soldado que havia falado agradeceu com a mão. Todos os outros tinham um ar solene e marcial, não duvidando ninguém que tais homens venceriam as maiores batalhas. Disse também o soldado formosíssimo, com flores a desfolharem-se nas abotoadeiras. Que era preciso que aquela terra se capacitasse que o tempo da li ber da de tinha chegado. As mulheres menos ociosas, e as moças, que haviam sido as últimas a descer, mas que mais próximas se encontravam agora do carro de guerra, começaram a sentir que não poderiam reprimir por mais tempo os sentimentos espontâneos, e porque o espectáculo era o mais arrebatador das suas vidas puseram-se a gritar todas as palavras de entusiasmo que souberam. Disseram vivas. Amigos, amores, irmãos. Seres divinos. Libertadores da fome e da inveja. Disseram anjos, coisas formosas, filhos do ventre e visitantes. E havia quem chorasse e cruzasse os braços sobre os seios como se abraçasse os soldados que permaneciam heroicos e fardados sobre o carro verde, da cor do rinchão. Singularmente aberto e blindado.


(O dia dos prodígios)


(Ilustração: Jacek Yerka)


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

CAÍRAM FOLHAS BRANCAS NESTA CASA, de Gastão Cruz






Caíram folhas brancas nesta casa
o soalho de chumbo e gasolina
mais envelhece a perguntar o dia
caíram no soalho bombas rápidas

Ergo nos dedos ossos esmagados
e fica o pó das folhas nas retinas
mais velha faz-se a casa na planície
despenharam-se nela aviões ávidos

A pergunta da noite sobre os mortos
vem das aves caídas e da terra
passou o outono já a guerra é morta

e desloca-se o vento para o norte
a resposta da morte envolve a terra
devolve ao chão as folhas e os ossos



(Poesia 1961-1981)




(Ilustração: Goya)




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

DEZ LIVROS PARA CONHECER O BRASIL, de Antonio Cândido






Quando nos pedem para indicar um número muito limitado de livros importantes para conhecer o Brasil, oscilamos entre dois extremos possíveis: de um lado, tentar uma lista dos melhores, os que no consenso geral se situam acima dos demais; de outro lado, indicar os que nos agradam e, por isso, dependem sobretudo do nosso arbítrio e das nossas limitações. Ficarei mais perto da segunda hipótese.

Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo no que se refere à simples informação, depende de muita coisa além do valor que ele possa ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso conhecimento, da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e pouco sabe, um compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para quem sabe muito, um livro importante não passa de chuva no molhado. Além disso, há as afinidades profundas, que nos fazem afinar com certo autor (e portanto aproveitá-lo ao máximo) e não com outro, independente da valia de ambos. Por isso, é sempre complicado propor listas reduzidas de leituras fundamentais. Na elaboração da que vou sugerir (a pedido) adotei um critério simples: já que é impossível enumerar todos os livros importantes no caso, e já que as avaliações variam muito, indicarei alguns que abordam pontos a meu ver fundamentais, segundo o meu limitado ângulo de visão. Imagino que esses pontos fundamentais correspondem à curiosidade de um jovem que pretende adquirir boa informação a fim de poder fazer reflexões pertinentes, mas sabendo que se trata de amostra e que, portanto, muita coisa boa fica de fora. 

São fundamentais tópicos como os seguintes: os europeus que fundaram o Brasil; os povos que encontraram aqui; os escravos importados sobre os quais recaiu o peso maior do trabalho; o tipo de sociedade que se organizou nos séculos de formação; a natureza da independência que nos separou da metrópole; o funcionamento do regime estabelecido pela independência; o isolamento de muitas populações, geralmente mestiças; o funcionamento da oligarquia republicana; a natureza da burguesia que domina o país. É claro que estes tópicos não esgotam a matéria, e basta enunciar um deles para ver surgirem ao seu lado muitos outros. Mas penso que, tomados no conjunto, servem para dar uma ideia básica.

Entre parênteses: desobedeço o limite de dez obras que me foi proposto para incluir de contrabando mais uma, porque acho indispensável uma introdução geral, que não se concentre em nenhum dos tópicos enumerados acima, mas abranja em síntese todos eles, ou quase. E como introdução geral não vejo nenhum melhor do que O povo brasileiro (1995), de Darcy Ribeiro, livro trepidante, cheio de ideias originais, que esclarece num estilo movimentado e atraente o objetivo expresso no subtítulo: “A formação e o sentido do Brasil”.

Quanto à caracterização do português, parece-me adequado o clássico Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, análise inspirada e profunda do que se poderia chamar a natureza do brasileiro e da sociedade brasileira a partir da herança portuguesa, indo desde o traçado das cidades e a atitude em face do trabalho até a organização política e o modo de ser. Nele, temos um estudo de transfusão social e cultural, mostrando como o colonizador esteve presente em nosso destino e não esquecendo a transformação que fez do Brasil contemporâneo uma realidade não mais luso-brasileira, mas, como diz ele, “americana”. 

Em relação às populações autóctones, ponho de lado qualquer clássico para indicar uma obra recente que me parece exemplar como concepção e execução: História dos índios do Brasil (1992), organizada por Manuela Carneiro da Cunha e redigida por numerosos especialistas, que nos iniciam no passado remoto por meio da arqueologia, discriminam os grupos linguísticos, mostram o índio ao longo da sua história e em nossos dias, resultando uma introdução sólida e abrangente.

Seria bom se houvesse obra semelhante sobre o negro, e espero que ela apareça quanto antes. Os estudos específicos sobre ele começaram pela etnografia e o folclore, o que é importante, mas limitado. Surgiram depois estudos de valor sobre a escravidão e seus vários aspectos, e só mais recentemente se vem destacando algo essencial: o estudo do negro como agente ativo do processo histórico, inclusive do ângulo da resistência e da rebeldia, ignorado quase sempre pela historiografia tradicional. Nesse tópico resisto à tentação de indicar o clássico O abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, e deixo de lado alguns estudos contemporâneos, para ficar com a síntese penetrante e clara de Kátia de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil (1982), publicado originariamente em francês. Feito para público estrangeiro, é uma excelente visão geral desprovida de aparato erudito, que começa pela raiz africana, passa à escravização e ao tráfico para terminar pelas reações do escravo, desde as tentativas de alforria até a fuga e a rebelião. Naturalmente valeria a pena acrescentar estudos mais especializados, como A escravidão africana no Brasil (1949), de Maurício Goulart ou A integração do negro na sociedade de classes (1964), de Florestan Fernandes, que estuda em profundidade a exclusão social e econômica do antigo escravo depois da Abolição, o que constitui um dos maiores dramas da história brasileira e um fator permanente de desequilíbrio em nossa sociedade.

Esses três elementos formadores (português, índio, negro) aparecem inter-relacionados em obras que abordam o tópico seguinte, isto é, quais foram as características da sociedade que eles constituíram no Brasil, sob a liderança absoluta do português. A primeira que indicarei é Casa grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre. O tempo passou (quase setenta anos), as críticas se acumularam, as pesquisas se renovaram e este livro continua vivíssimo, com os seus golpes de gênio e a sua escrita admirável – livre, sem vínculos acadêmicos, inspirada como a de um romance de alto voo. Verdadeiro acontecimento na história da cultura brasileira, ele veio revolucionar a visão predominante, completando a noção de raça (que vinha norteando até então os estudos sobre a nossa sociedade) pela de cultura; mostrando o papel do negro no tecido mais íntimo da vida familiar e do caráter do brasileiro; dissecando o relacionamento das três raças e dando ao fato da mestiçagem uma significação inédita. Cheio de pontos de vista originais, sugeriu entre outras coisas que o Brasil é uma espécie de prefiguração do mundo futuro, que será marcado pela fusão inevitável de raças e culturas.

Sobre o mesmo tópico (a sociedade colonial fundadora) é preciso ler também Formação do Brasil contemporâneo, Colônia (1942), de Caio Prado Júnior, que focaliza a realidade de um ângulo mais econômico do que cultural. É admirável, neste outro clássico, o estudo da expansão demográfica que foi configurando o perfil do território – estudo feito com percepção de geógrafo, que serve de base física para a análise das atividades econômicas (regidas pelo fornecimento de gêneros requeridos pela Europa), sobre as quais Caio Prado Júnior engasta a organização política e social, com articulação muito coerente, que privilegia a dimensão material. 

Caracterizada a sociedade colonial, o tema imediato é a independência política, que leva a pensar em dois livros de Oliveira Lima: D. João VI no Brasil (1909) e O movimento da Independência (1922), sendo que o primeiro é das maiores obras da nossa historiografia. No entanto, prefiro indicar um outro, aparentemente fora do assunto: A América Latina, Males de origem (1905), de Manuel Bonfim. Nele a independência é de fato o eixo, porque, depois de analisar a brutalidade das classes dominantes, parasitas do trabalho escravo, mostra como elas promoveram a separação política para conservar as coisas como eram e prolongar o seu domínio. Daí (é a maior contribuição do livro) decorre o conservadorismo, marca da política e do pensamento brasileiro, que se multiplica insidiosamente de várias formas e impede a marcha da justiça social. Manuel Bonfim não tinha a envergadura de Oliveira Lima, monarquista e conservador, mas tinha pendores socialistas que lhe permitiram desmascarar o panorama da desigualdade e da opressão no Brasil (e em toda a América Latina).

Instalada a monarquia pelos conservadores, desdobra-se o período imperial, que faz pensar no grande clássico de Joaquim Nabuco: Um estadista do Império(1897). No entanto, este livro gira demais em torno de um só personagem, o pai do autor, de maneira que prefiro indicar outro que tem inclusive a vantagem de traçar o caminho que levou à mudança de regime: Do Império à República(1972), de Sérgio Buarque de Holanda, volume que faz parte da História geral da civilização brasileira, dirigida por ele. Abrangendo a fase 1868-1889, expõe o funcionamento da administração e da vida política, com os dilemas do poder e a natureza peculiar do parlamentarismo brasileiro, regido pela figura-chave de Pedro II. 

A seguir, abre-se ante o leitor o período republicano, que tem sido estudado sob diversos aspectos, tornando mais difícil a escolha restrita. Mas penso que três livros são importantes no caso, inclusive como ponto de partida para alargar as leituras. 

Um tópico de grande relevo é o isolamento geográfico e cultural que segregava boa parte das populações sertanejas, separando-as da civilização urbana ao ponto de se poder falar em “dois Brasis”, quase alheios um ao outro. As consequências podiam ser dramáticas, traduzindo-se em exclusão econômico-social, com agravamento da miséria, podendo gerar a violência e o conflito. O estudo dessa situação lamentável foi feito a propósito do extermínio do arraial de Canudos por Euclides da Cunha n’Os sertões (1902), livro que se impôs desde a publicação e revelou ao homem das cidades um Brasil desconhecido, que Euclides tornou presente à consciência do leitor graças à ênfase do seu estilo e à imaginação ardente com que acentuou os traços da realidade, lendo-a, por assim dizer, na craveira da tragédia. Misturando observação e indignação social, ele deu um exemplo duradouro de estudo que não evita as avaliações morais e abre caminho para as reivindicações políticas. 

Da Proclamação da República até 1930 nas zonas adiantadas, e praticamente até hoje em algumas mais distantes, reinou a oligarquia dos proprietários rurais, assentada sobre a manipulação da política municipal de acordo com as diretrizes de um governo feito para atender aos seus interesses. A velha hipertrofia da ordem privada, de origem colonial, pesava sobre a esfera do interesse coletivo, definindo uma sociedade de privilégio e favor que tinha expressão nítida na atuação dos chefes políticos locais, os “coronéis”. Um livro que se recomenda por estudar esse estado de coisas (inclusive analisando o lado positivo da atuação dos líderes municipais, à luz do que era possível no estado do país) éCoronelismo, enxada e voto (1949), de Vitor Nunes Leal, análise e interpretação muito segura dos mecanismos políticos da chamada República Velha (1889-1930). 

O último tópico é decisivo para nós, hoje em dia, porque se refere à modernização do Brasil, mediante a transferência de liderança da oligarquia de base rural para a burguesia de base industrial, o que corresponde à industrialização e tem como eixo a Revolução de 1930. A partir desta viu-se o operariado assumir a iniciativa política em ritmo cada vez mais intenso (embora tutelado em grande parte pelo governo) e o empresário vir a primeiro plano, mas de modo especial, porque a sua ação se misturou à mentalidade e às práticas da oligarquia. A bibliografia a respeito é vasta e engloba o problema do populismo como mecanismo de ajustamento entre arcaísmo e modernidade. Mas já que é preciso fazer uma escolha, opto pelo livro fundamental de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (1974). É uma obra de escrita densa e raciocínio cerrado, construída sobre o cruzamento da dimensão histórica com os tipos sociais, para caracterizar uma nova modalidade de liderança econômica e política. 

Chegando aqui, verifico que essas sugestões sofrem a limitação das minhas limitações. E verifico, sobretudo, a ausência grave de um tópico: o imigrante. De fato, dei atenção aos três elementos formadores (português, índio, negro), mas não mencionei esse grande elemento transformador, responsável em grande parte pela inflexão que Sérgio Buarque de Holanda denominou “americana” da nossa história contemporânea. Mas não conheço obra geral sobre o assunto, se é que existe, e não as há sobre todos os contingentes. Seria possível mencionar, quanto a dois deles, A aculturação dos alemães no Brasil (1946), de Emílio Willems; Italianos no Brasil (1959), de Franco Cenni, ou Do outro lado do Atlântico (1989), de Ângelo Trento – mas isso ultrapassaria o limite que me foi dado.

No fim de tudo, fica o remorso, não apenas por ter excluído entre os autores do passado Oliveira Viana, Alcântara Machado, Fernando de Azevedo, Nestor Duarte e outros, mas também por não ter podido mencionar gente mais nova, como Raimundo Faoro, Celso Furtado, Fernando Novais, José Murilo de Carvalho, Evaldo Cabral de Melo etc. etc. etc. etc. 



(Revista Teoria e Debate – de 30/09/2000)


(Ilustração: Victor Meireles - primeira missa)




terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

LUGARES COMUNS, de Ana Luísa Amaral









Entrei em Londres


num café manhoso (não é só entre nós


que há cafés manhosos, os ingleses também,


e eles até tiveram mais coisas, agora


é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas


ilhotazitas, mais adiante)






Entrei em Londres


num café manhoso, pior ainda que um nosso bar


de praia (isto é só para quem não sabe


fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era


mesmo muito manhoso,


não é que fosse mal intencionado, era manhoso


na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha


suja. Muito rasca.






Claro que os meus preconceitos todos


de mulher me vieram ao de cima, porque o café


só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate


(se fosse em Portugal era sandes de queijo),


mas pensei: Estou em Londres, estou


sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses


até nem se metem como os nossos,


e por aí fora...






E lá entrei no café manhoso, de árvore


de plástico ao canto.


Foi só depois de entrar que vi uma mulher


sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me


mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.


Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e


depois eu






Lá pedi o café, que não era nada mau


para café manhoso como aquele e o homem


que me serviu disse: There you are, love.


Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou


Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois


pensei: Já lhes está tão entranhado


nas culturas e a intenção não era má, e também


vou-me embora daqui a pouco, tenho avião


quero lá saber






E paguei o café, que não era nada mau,


e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta


a ver a tribo toda a comer ovos e presunto


e depois vi as horas e pensei que o táxi


estava a chegar e eu tinha que sair.


E quando me ia levantar, a mulher sorriu


Como quem diz: That’s it






e olhou assim à sua volta para o presunto


e os ovos e os homens todos a comer


e eu senti-me mais forte, não sei porquê,


mas senti-me mais forte






e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,


que em toda a parte


as mesmas coisas são



(Coisas de Partir)



(Ilustração: Herbert Edward Badham - London pub 1955)






sábado, 8 de fevereiro de 2014

PENSAMENTO MEDIANO, de Jessé de Souza






A professora Marilena Chauí propõe uma discussão interessante e oportuna acerca da classe média brasileira. Seu julgamento indignado é certeiro, ainda que abstrato e indiferenciado. Mais interessante que o burburinho causado é perceber a "justificação" do privilégio dessa classe para que possamos compreendê-la. Antes de tudo, o que é "privilégio"? E como ele se reproduz? Em todas as sociedades modernas, como a brasileira, os privilégios que asseguram acesso diferencial aos bens ou recursos que todos desejamos, sejam materiais, como carro e casa, sejam imateriais, como o prestígio e o charme que asseguram a conquista de um parceiro erótico, por exemplo, são explicados a partir da apropriação diferencial de certos "capitais" - que vão pré-decidir toda a competição social por todos os bens escassos, materiais e imateriais, que todos desejamos as 24 horas do dia. Esses "capitais impessoais", antes de tudo o capital econômico e o capital cultural, são, portanto, o fundamento opaco e nunca assumido de toda a dominação social injusta. 

A regra básica da cegueira na qual todos vivemos é que percebemos o "capital econômico", mas nunca percebemos o "capital cultural". É que o capital cultural não são apenas os títulos escolares de prestígio que garantem à classe média seus empregos bem pagos e reconhecidos. Capital cultural é também e principalmente toda a herança imaterial e invisível, tanto emocional quanto cognitiva e moral, que recebemos desde tenra idade, sem esforço, no convívio familiar, como a habilidade para o pensamento abstrato, o estímulo à concentração - que falta às classes populares e a condenam ao fracasso escolar -, a capacidade de perceber o futuro como mais importante que o presente, etc. Isso tudo somado constrói o indivíduo das classes alta e média como "vencedor" na escola e depois no mercado de trabalho, não por seu "mérito individual", como os indivíduos dessas classes gostam de pensar, mas por uma "vantagem de sangue", familiar e de classe, como em qualquer outra sociedade tradicional do passado. 

Como a herança do capital cultural, enquanto pressuposto emocional, cognitivo e moral de todo privilégio, é invisível e opaca à consciência cotidiana, a falácia do "milagre" do mérito individual pode campear á vontade. Esse falso milagre é o fundamento que legitima todo tipo de apropriação injusta de privilégios permanentes, condenando os indivíduos que tiveram o azar de nascer na família e na classe errada à miséria e à humilhação, como se alguém pudesse "escolher" ser pobre e desprezado. A dominação social moderna é produzida por um engodo, uma fraude, uma mentira compartilhada por todos os privilegiados. Mas isso acontece exatamente do mesmo modo nas sociedades que admiramos e imitamos como França, Alemanha ou Estados Unidos. 

Mas o que há de especificamente perverso nas classes dominantes brasileiras que não existe nessas outras sociedades? É que no Brasil as classes média e alta não apenas repetem a distorção da realidade que permite perceber o privilégio herdado como se tivesse nascido do próprio esforço, mas também "tiram onda" de que são generosas e críticas. Essa é uma fraude que um republicano americano típico jamais faria. Como isso se tornou possível? Ainda que poucos percebam, o mundo social não é apenas dinheiro e o que o dinheiro compra. O mundo social é também construído por ideias que lhe dão compreensibilidade e orientam o comportamento prático das pessoas. O Brasil moderno tem como seu "mito fundador" - mito esse que coloniza todos os partidos políticos indistintamente - uma reformulação peculiar operada por Sérgio Buarque no "mito nacional" sintetizado por Gilberto Freyre. São de Sérgio Buarque as bases ideais do Brasil que se compreende como oposição entre um Estado ineficiente e corrupto e um mercado virtuoso, santo e eficiente. 

Essa ideia absurda - afinal não existe corrupção no Estado que não seja estimulada por interesses do mercado - é hoje uma espécie de segunda pele dos brasileiros, muito especialmente nas classes médias. Por quê? Porque ela confere algo indispensável ao privilegiado que é a necessária "boa consciência" que essas classes precisam ao localizar em um "outro", que ninguém define, uma "elite abstrata" que pode ser todos e ninguém, a fonte de todo mal nacional e se eximir de toda a responsabilidade. Afinal, se todo o mal está no Estado corrupto então se pode continuar, com boa consciência e se achando uma pessoa muito legal, a explorar cotidianamente o trabalho mal pago das classes baixas, que poupa o tempo da classe média para que essa possa se dedicar a incorporar ainda mais capital cultural para reproduzir, em escala ampliada, seus próprios privilégios de classe. O fundamento do privilégio da classe média é, antes de tudo, o "conhecimento" valorizado - que exige tempo para ser apropriado - indispensável à reprodução de mercado e Estado. Essa "luta de classes", invisível e cotidiana, tipicamente brasileira, ninguém vê porque nesse mundo absurdo da irresponsabilidade social também a desigualdade é culpa da corrupção e do patrimonialismo do Estado. 

A ideologia do patrimonialismo - leitura, aliás, superficial e distorcida de Max Weber compartilhada por Buarque e pela maioria dos intelectuais brasileiros de hoje - domina, com sua institucionalização partidária, escolar e midiática, toda a vida política do Brasil moderno, abrangendo, por exemplo, em igual medida, tanto o PSDB quanto o PT. Essa é a ideologia da "irresponsabilidade social praticada com boa consciência", que permite encobrir todos os conflitos verdadeiros ao criar falsas oposições e, assim, silenciar as dores e sofrimentos cotidianos de uma das sociedades mais injustas e desiguais do planeta. A nossa classe média é singularmente perversa e infantilizada, apenas por ser o suporte social mais típico de uma visão de mundo narcísica que transforma exploração em generosidade impedindo todo aprendizado possível e toda crítica. Mas a cegueira e o atraso da consciência moral comprometem a sociedade como um todo. 




(OESP/19.5.2013)



(Ilustração: Tarsila Amaral - operários)














quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A VIDA, de Nuno Júdice






A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.




(Teoria Geral do Sentimento)




(Ilustração: Wang Yi Guang)


domingo, 2 de fevereiro de 2014

VOCÊS NÃO SÃO DA NOSSA GERAÇÃO, de Ivan Turgueniev









A luta efetivamente teve lugar no mesmo dia, por ocasião do chá da tarde. Páviel Pietróvitch entrou na sala de visitas pronto para a batalha, mal humorado e resoluto. Esperava apenas um pretexto para atacar o inimigo.

O pretexto demorava muito. Bazárov falava muito pouco na presença dos "velhos Kirsánov" (assim chamava a ambos os irmãos). Naquela tarde sentia-se indisposto. Tomava seu chá aos copos, calado. Páviel Pietróvitch ardia todo de impaciência. Seus desejos afinal se realizaram.

A palestra girava em torno de um dos fazendeiros vizinhos. "Um aristocratoide crápula" - observou impassível Bazárov, que costumava encontrar a referida pessoa em São Petersburgo.

- Permita que eu lhe pergunte uma coisa - começou Páviel Pietróvitch, e seus lábios tremiam. - Segundo sua opinião, as palavras "crápula" e "aristocrata" significam a mesma coisa?

- Eu disse "aristocratoide" - respondeu Bazárov, tomando devagar mais um gole de chá.

- Assim o compreendo. Suponho que o senhor tem a mesma opinião dos aristocratas e dos aristocratoides. Devo declarar-lhe que não compartilho esse modo de pensar. Ouso dizer ainda que sou conhecido como homem liberal e progressista. Por isso mesmo respeito os verdadeiros aristocratas. Lembre-se, meu caro senhor (ao ouvir estas palavras Bazárov fixou seu olhar em Páviel Pietróvitch), lembre-se, meu caro senhor - repetiu irritado -, dos aristocratas ingleses. Eles não desistem do mínimo dos seus direitos e respeitam os alheios. Exigem que se cumpram suas obrigações. A aristocracia libertou a Inglaterra e defende sua liberdade.

- Já ouvimos essa cantiga muitas vezes - obtemperou Bazárov. - Que quer o senhor provar com isso?

- Com isso, meu caro senhor (Páviel Pietróvitch, quando se zangava, proferia a palavra "isso" contra todas as regras da gramática. Era uma reminiscência dos tempos do Czar Alexandre. Os nobre de então pronunciavam-na às vezes assim, variando um pouco a pronúncia, porque se consideravam russos legítimos, da nobreza tradicional e superiores às regras gramaticais escolares), com isso, caríssimo senhor, quero demonstrar que, sem a noção da sua própria dignidade, sem o respeito de si mesmo - num aristocrata estes sentimentos estão particularmente evoluído -, não existe nenhuma base sólida do bien public ou do edifício social. O mais importante, caro senhor, é a personalidade. A personalidade humana dever ser resistente como rochedo, porque sobre ela tudo se constrói. Sei perfeitamente, por exemplo, que o senhor julga ridículos ou contraproducentes os meus hábitos, meu vestuário e minha decência, afinal. Tudo decorre dos sentimentos de respeito próprio, do sentimento do dever, sim, do dever. Vivo no campo, no sertão, mas não me abastardo. Respeito em mim um homem.

- Perdoe-me, Páviel Pietróvitch - disse Bazárov. - O senhor respeita a sua personalidade e está aqui sem fazer coisa alguma. Que utilidade advém para o bien public? Seria melhor que não se respeitasse e fizesse alguma coisa de proveitoso.

Páviel Pietróvitch empalideceu.

- Trata-se de um outro assunto. Não lhe devo dar satisfação neste momento sobre o porquê da minha inatividade, como o senhor acaba de defini-la. Quero dizer apenas que a aristocracia é um principio. Sem princípios, na nossa época, só podem viver homens amorais ou nulos. Já o disse a Arcádio no dia seguinte à sua chegada e repito-lhe agora. Não é assim, Nicolau?

Nicolau Pietróvitch meneou afirmativamente a cabeça.

- O aristocratismo, o liberalismo, o progresso, os princípios! - disse Bazárov. - quantas palavras estranhas e inúteis! O russo não precisa delas.

- De que precisa o russo? Se dermos crédito às suas palavras, estamos deslocados da humanidade e fora das suas leis. Perdoe-me, mas a lógica da História exige...

- De que nos serve essa lógica? Passamos muito bem sem ela.

- Como?

- Facilmente. Acho que o senhor não precisa de lógica para pôr um pedaço de pão na boca, quanto tem fome. De que nos servem essas dilações?

Páviel Pietróvitch deu de ombros.

- Não o compreendo. O senhor ofende o povo russo. Não sei como é possível negar os princípios, as normas. Em que se baseia o senhor para se expressar assim?

_ Já lhe disse, meu tio, que nós não reconhecemos autoridades - interveio Arcádio.

- Nós agimos baseado na força do reconhecemos como útil - disse Bazárov.

- Na época atual o mais útil é negar. Por isso negamos. 

- Tudo?

- Tudo.

- Como? Não só a arte, a poesia... mas... é pavoroso dizê-lo...

- Tudo - com estupenda calma, repetiu Bazárov. 

Páviel Pietróvitch examinou-o fixamente. Nunca esperara semelhante conclusão. Por sua vez, Arcádio até corou de prazer.

- Vamos devagar - Nicolau Pietróvitch. - Vocês negam tudo, ou, por outra, destroem tudo... É necessário também construir.

- Não nos compete. Primeiramente é preciso desimpedir o lugar.

- A situação atual do povo assim o exige - acrescentou com importância Arcádio. - Devemos atender a essas exigências. Não temos o direito de satisfazer apenas o nosso egoísmo pessoal.

Estas últimas palavras visivelmente não agradaram a Bazárov. Encerravam um quê de filosofia, isto, de romantismo, porque Bazárov considerava a própria filosofia como uma simples digressão romântica. Não julgou, entretanto, necessário contradizer seu jovem discípulo.

- Não e não! - exclamou com repentina energia Páviel Pietróvitch. - Não quero crer que os senhores conheçam a fundo o povo russo e sejam representantes das suas necessidade e tendências! Não. O nosso povo é diverso do que os senhores imaginam. Guarda e respeita escrupulosamente suas tradições. É patriarcal e não pode viver sem fé...

- Não quero discutir esse ponto - interrompeu Bazárov. - Estou até pronto a afirmar que nisso o senhor tem toda a razão...

- Se tenho razão...

- Assim mesmo nada prova. 

- Efetivamente nada prova - repetiu Arcádio com a convicção de um experimentado jogador de xadrez que prevê um lance arriscado do seu adversário e não se atrapalha.

- Como nada prova? - exclamou admirado Páviel Pietróvitch. - Suponho que pretendem lutar contra o seu próprio povo?

- Se for preciso... - redarguiu Bazárov. - O povo, quando ouve a trovoada, julga que o profeta Elias está passeando pelo céu no seu carro de foto. Devo, neste caso, concordar com o povo? Além disso, estamos falando do povo russo, e, porventura, não sou russo?

- Não. Deixa de ser russo depois do que acabou de dizer! Não posso reconhecê-lo como meu compatriota.

- Meu avô cultivava a terra - disse com orgulho Bazárov. - Pergunte a qualquer de seus mujiques: em quem, de nós dois, ele reconhece seu compatriota? Ele tem uma extraordinária capacidade de discernimento. O senhor nem sabe falar com ele.

- O senhor fala com o mujique e despreza-o ao mesmo tempo.

- E se merece o desprezo? Acusa o meu modo de ver e julgar o assunto. Quem lhe disse que este ponto de vista não casual em mim e que não é suscitado pelo próprio espírito do povo, em nome de que está pontificando?

- Naturalmente! Os niilistas são muito necessários!

- Não nos cabe sabê-lo. O senhor também se julga um homem útil.

- Meus senhores, evitemos por favor questões pessoais! - exclamou, erguendo-se Nicolau Pietróvitch.

Páviel Pietróvitch sorriu e, pondo a mão no ombro do seu irmão, fê-lo sentar-se novamente.

- Não se impressione - disse. - Nãome excederei em consequência exatamente daquele sentimento de dignidade tão criticado por este senhor... Senhor doutor: permita-me perguntar-lhe - continua, dirigindo-se de novo a Bazárov - se por acaso supõe que a sua doutrina é nova? Pura imaginação. O materialismo que prega já é velho e sempre pecou por falta de base...

- Mais uma palavra estranha! - interrompeu Bazárov, que começava a exasperar-se. Sua face tornara-se rude e cor de cobre. - Em primeiro lugar, não pregamos coisa alguma. Não é o nosso hábito...

- Que fazem então?

- Vou dizer-lhe o que fazemos. Antes, ainda há pouco, dizíamos que os nossos funcionários públicos recebiam gorjetas, não tínhamos nem estradas, nem comércio, nem um júri decente...

- Compreendo. Os senhores são caluniadores, e assim posso expressar-me. Com algumas das suas acusações concordo, mas...

- E, em seguida, percebemos que não vale a pena tocar somente nas nossas chagas. Seria uma vulgaridade doutrinismo. Vimos que os nossos intelectuais ou os homens da vanguarda, acusadores ou caluniadores, não servem para coisa alguma, que nos ocupamos de parvoíces, discutimos sobre uma certa arte, a criação inconsciente, o parlamentarismo, a justiça e tanta coisa inútil, quando o problema consiste no pão de cada dia, quando uma superstição brutal nos sufoca, quando todas as nossas sociedades comerciais ou industriais por ações rebentam, porque faltam homens honestos, quando a própria liberdade, que tanto preocupa o governo, dificilmente nos será proveitosa, porque o nosso mujique é capaz de roubar a si mesmo, só para se embriagar na taberna.

- Bem - interrompeu Páviel Pietróvitch -, concordo provisoriamente. Convenceu-se de tudo isso e resolveu não se ocupar seriamente de coisa alguma.

- Resolvemos realmente não nos preocupar com coisa alguma - repetiu em tom lúgubre Bazárov. Invadia-o uma raiva de si mesmo pelo falto de ter-se expandido tanto com aquele aristocrata.

- E somente ofender a tudo e a todos? - continuou o aristocrata.

- Ofender também.

- É o niilismo?

- É o niilismo - repetiu Bazárov com ar de desafio.

Páviel Pietróvitch fechou de leve seus olhos.

- Agora compreendo! - Disse com voz esquisitamente calma. - O niilismo deve auxiliar-nos em todas as desgraças. Os senhores são nossos salvadores e heróis. Sim. Porque nesse caso acusam os próprios acusadores. Não vivem de palavras vãs como os demais.

- Podemos ter outros pecados, menos esse - disse Bazárov.

- Como? Os senhores agem. Pretendem agir?

Bazárov nada respondeu; Páviel Pietróvitch teve um estremecimento e logo reconquistou o domínio de si mesmo.

- Sim... agir, destruir - continuou. - Destroem sem saber para quê?

- Destruímos, porque somos uma força - explicou Arcádio.

Páviel Pietróvitch olhou para seu sobrinho e sorriu.

- Sim, somos uma força que age livremente - insistiu Arcádio com veemência.

- Desgraçados! - gritou Páviel Pietróvitch. Perdeu definitivamente o controle de si mesmo. - Se ao menos pensasse no que, na Rússia, você está defendendo com essa vulgaridade! Não. Tudo isso é de fazer perder a paciência a um anjo! Força! Num selvagem, num mongol também existe força. De que nos serve ela? É-nos cara a civilização. São-nos caros os seus frutos. Não me diga que os frutos da civilização nada valem. O último dos indecentes, um barbouilleur*, um escamoteador de jogo que recebe cinco moedas por noite são mais úteis do que os senhores, porque representam a civilização e não a força brutal dos mongóis! Pensam os senhores que são homens da vanguarda. Estariam bem numa cabana de selvagens! Força! Lembrem-se, afinal, senhores da força, de que são apenas quatro pessoas e meia, e contra os senhores existem milhões que não lhes permitirão calcar os pés suas crenças sagradas. Esmagá-los-ão!

- Se esmagarem, assim é preciso - disse Bazárov. - Mas nãosomos tão poucos como o senhor supõe.

- Como? pretende chegar seriamente a um acordo com o todo o povo?

- Saiba o senhor que a cidade de Moscou já foi destruída pelo incêndio causado por uma uma vela de 1 copeque - respondeu Bazárov.

- Vejo primeiramente um orgulho quase satânico. Depois, sacrilégio. Aí está o que preocupa a mocidade! Aí está o que domina os corações inexperientes dos meninos de hoje! Olhe este aqui que está sentado a seu lado. Só falta rezar para o senhor (Arcádio fitou-o, sério). Esse mal já se espalhou demasiado, contaminando muitos . Disseram-me que em Roma os nossos artistas não visitam nunca o Vaticano, consideram idiota a Rafael, só porque ele é autoridade. Eles mesmos não têm talento. São verdadeiras nulidades. A sua fantasia ou imaginação não vai além da Jovem Fonte, quando chega para tal. O senhor conhece o valor artístico desse quadro, péssimo em todos os sentidos. Segundo sua opinião, será (essa atitude) um defeito ou ótima qualidade?

- Segundo minha opinião - respondeu Bazárov -, nem Rafael vale um ceitil, nem os nossos são melhores do que Rafael.

- Bravo! Ouça, Arcádio... Assim devem pensar os moços de hoje! Como, nesse caso, não hão de segui-los! Antigamente os moços eram obrigados a estudar: não queriam passar por imbecis e por isso trabalhavam. Agora basta que afirmem: "Tudo no mundo não tem valor!" E está bem. A juventude ficou satisfeita. Outrora os moços eram simples idiotas ou inúteis, hoje se tornaram de súbito niilistas.

- Traiu-o o seu sentimento, tão proclamado, da própria dignidade - observou fleumático Bazárov, enquanto Arcádio assumia um ar importante e seus olhos brilhavam. - A nossa discussão foi muito longe... É melhor terminá-la. Concordarei somente com o senhor - acrescentou, levantando-se - quando me indicar uma só instituição da nossa época, social ou familiar, que não seja passível de uma negação completa e irrefutável.

- Posso apresentar-lhe milhões de semelhantes instituições e princípios - exclamou Páviel Pietróvitch. - Milhões! A comunidade, por exemplo.

Um sorriso aflorou aos lábios de Bazárov. 

- Quanto à comuna camponesa - respondeu - é melhor que fale aqui com o seu irmão. Ele, parece-me, já experimentou na prática o que é comuna. Ônus comum, temperança e outras coisas mais.

- E, finalmente, a família, sim, a família tal como existe entre os nossos mujiques! - exclamou Páviel Pietróvitch.

- Também essa questão deve ser examinada melhor pelo senhor do que por ninguém. Já ouviu falar em casamenteiros? Ouça-me, Páviel Pietróvitch. Bastam dois dias de prazo e terá qualquer coisa. Examinem todas as nossas classes sociais e pensem bem em cada uma, enquanto nós, eu e Arcádio...

- Rir-se-ão de tudo e de todos - sugeriu Páviel Pietróvitch.

- Não. Iremos dissecar as rãs. Vamos, Arcádio. Até logo, senhores!

Ambos os amigos saíram. Os irmãos ficaram a sós. A princípio entreolharam-se.

- Aí está - disse afinal Páviel Pietróvitch. - É a mocidade de hoje! São os nossos herdeiros!

- Herdeiros - repetiu tristemente, com um suspiro, Nicolau Pietróvitch. Durante toda a discussão se sentia mal e só de soslaio contemplava Arcádio. - Sabe de que me lembrei, mano? Uma vez discuti com minha mãe. Ela, zangada, não me queria ouvir... Finalmente eu lhe disse que não podia compreender-me porque pertencíamos a gerações diversas. Ela sentiu-se profundamente ofendida, e eu pensei: "Que hei de fazer? A pílula é amarga, mas é necessário engoli-la". Chegou agora a nossa vez. Os nossos herdeiros ou descendentes podem declarar-nos: "Vocês não são da nossa geração".



* Tagarela, trapalhão.


(Pais e Filhos; tradução de Ivan Emilianovitch)


(Ilustração: Fleury François Richard - jeune fille à la fontaine)