domingo, 21 de setembro de 2014

CARTA PARA VERA BRANT, de Maura Lopes Cançado





Recebi as roupas. Gostei muito. É um grande alívio a gente poder sair sem, antes, ter passado quase toda a noite em claro se indagando: “Como vai ser? Eu não tenho um trapo”. Os seus vestidos serviram-me, perfeitamente. Os sapatos, também. Pode mandar quantos você queira que me farão muito feliz. Quanto ao costume que a sua amiga mandou, é lindo. Adorei-o. Principalmente a cor. A saia está muito larga, terei de procurar uma costureira bem micha, que não se ofenda em fazer consertos, para apertá-la. O pior, o mais trágico, mais dramático, é que ninguém se considera micha. Nem ao menos pouco brilhante. Todo mundo é sublime. As costureiras, ainda as que apenas sabem movimentar a máquina com certa precisão julgam-se rivais fortíssimas de Mary Quant e Pacco Rabanne. Isto me faz lembrar Fernando Pessoa: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo”. 

Arre, estou farta de semideuses!

Onde é que existe gente no mundo? 

Mas a moça foi muito gentil. Dê-lhe um abraço por mim. Esta gentileza, entretanto, não impediu de nascer em minha angustiada pessoa um terrível drama de consciência: olho o costume a todo o instante, quero, devo vesti-lo mas, como? – se a saia cabe duas Mauras? E me considero a última das criaturas. Nunca serei capaz de ajudar nem a mim mesma. Sou um zero. Qualquer criadinha já teria desfilado com o costume. Ela saberia o que e como fazer. Eu, não. Principalmente minhas mãos, parecem de todo inúteis. 

Mas a propósito de consertos de roupas, já estou quase me habituando a esta situação aflitiva, como um modus vivendi: tenho mais alguns vestidos, dados por uma namorada de um médico, meu amigo. Que catástrofe! A moça é enorme, o dobro de mim. Os vestidos estão aqui há um mês (não são grandes coisas, mas servem), e só serviram, até hoje, para me atormentar, criando-me os maiores complexos de inferioridade. Eu, além de não ser alta como desejava, sou incapaz de reparar qualquer coisa. Não sei se por masoquismo (ou acreditando num milagre qualquer), tirei-os do armário e deixei-os expostos sobre uma mala. A cada instante contemplo o pequeno monte, instrumento de suplício, mais sério do que na “Colonial Penal”, de Kafka, eu acho. A mala fica em frente à minha cama, é a primeira coisa que vejo, ao despertar. Por aí você pode fazer uma ideia. A este monte, que fala mais alto à minha covarde e escura consciência do que todos os analistas juntos, juntei o belo costume que sua amiga me mandou. E entrei num estado total de depressão. Para sair dele eu teria, talvez, de aprender a costurar. Mas como me deixei afundar, sem nenhuma esperança, não poderia sequer pagar as aulas de costura.

Você julga que estou brincando? Juro ser tudo verdade, Vera. Antes de deixar a análise, a doutora Kate (aquela gringa), ouvindo-me falar do que me desagradava, quase me levando ao suicídio, mas que eu não tinha iniciativa nem coragem para deixar, o hospício, por exemplo, disse-me:

“Vi um quadro num museu da Europa que mostrava um grande escritor trabalhando. Ele estava deitado em seu leito, coberto até o pescoço por vários cobertores, um chapéu enfiado até os olhos e um guarda-chuva aberto sobre si, enquanto escrevia”. Por quê? - perguntei, me divertindo.

“Porque chovia dentro de sua casa. Dizem que ele deixou uma obra, foi um grande escritor. Esqueci seu nome, mas é muito famoso”. 

Tive um ataque de riso. Ela falava tão sério! Perguntei-lhe: “Por que ele não se mudava?”. “Porque não tinha dinheiro”, respondeu. “Por que não consertava o teto?”. 

Ela: “Você consertaria? Não sei (continuou) mas, ouvindo você falar, visualizei o quadro perfeitamente, como se o tivesse vendo. Parece até alucinação”. 

“A senhora achou-o muito divertido, quando o viu?”, perguntei, ainda. Respondeu-me:

“Não me interessou muito porque eu ainda não conhecia a Maura. Mas agora entendo exatamente aquele escritor. Era como você: deixa estar para ver como fica”. 

Tive um ataque de riso. Ri mais de dez minutos deitada naquele sofá chato. Devo ter rido por defesa, eu creio. 

As coisas mais simples conseguem levar-me à sensação total de derrota. Estes vestidos, por exemplo: pensando neles, ou vendo-os, entro num desespero tão grande como se me encontrasse literalmente nua. Não tenho utilidade, Vera. Como pode existir pessoa tão incapaz de viver, como eu? Escrevi um conto, não sei se você o leu (saiu publicado no Correio da Manhã), “Colisão ou Espelho Morto”. Nele eu consigo falar de minha visão do mundo e na dificuldade em nele existir. É para mim meu melhor conto. Há uma passagem em que falo de minha companheira de quarto, estudante de geologia. Ela joga pedras sobre minha cama, pedras colhidas por ela, diariamente, nas praias. Estas pedras já me tomavam a metade do leito, “pedras personalíssimas, quase vivas, que já me tomam a metade do leito. Encolho-me sob os cobertores, as pedras ocupando sempre mais espaço, sentindo-me impossibilitada de argumentar com as pedras, eu que sou destituída de qualquer senso de organização, mesmo iniciativa”.

Inconscientemente confessei que considero qualquer ser, mesmo inanimado, com mais personalidade do que eu. E capaz de me subjugar, até com argumentos. Pois se não acredito nem ao menos em minha identidade. Sonho sempre: depois de muitas confusões, onde não consigo me comunicar com ninguém, e tudo, as pessoas, as circunstâncias, até os objetos me apavoram, procuro salvar-me provando a alguém (quase sempre a meu médico), que sou Maura Lopes Cançado, a que escreveu “Hospício é Deus”, ou fez outra cretinice parecida. Não me acreditam. Procuro meus documentos, não os encontro, as pessoas riem e debocham de mim. Não vou contar-lhe um desses sonhos porque são todos longos – mas alguns estão no diário 2. A doutora Kate insistia sempre comigo: “Você perdeu desde quando a sua identidade?”

Há outro sonho terrível: eu me vejo a mim mesma, muito bonita e cercada por pessoas. Estou saindo de uma escola de teatro. Mas entre mim e eu, há uma parede de vidro. Vejo-me de perfil. Sou loura, bonita e uso casaco de lã bem largo. Súbito, viro-me em minha direção. E me vejo feia, horrível. Sinto-me angustiada, quero falar-me, mas eu não me vejo e desço uma rua, inteiramente indiferente e ignorando minha presença do outro lado da parede. Então, desço também, gritando-me, gritando-me: “Você precisa fazer uma operação plástica”. Mas não me posso ouvir, há uma parede de vidros muito grossos. Acordo suando, é terrível.

A doutora me disse, certa vez: “Uma das coisas que mais me impressionou em você foi este sonho em que você se vê, mas há uma parede separando-a de si mesma. É, sem dúvida, um sonho de esquizofrênico”.

Ô, Vera, perdoe-me contar-lhe tudo isto. Mas eu morro, se não falar com alguém. Eu estou tão sozinha, tão desesperada, tenho tanto medo de mim mesma. Porque não sei até onde sou capaz de destruir-me. O pior é que não ouso muito. O Wassilly me disse uma vez: “Você não assume compromisso nem com a loucura. Nunca ficará louca. Seria comprometer-se”.

Creio ser verdade. Se estou no hospício, me comporto como sã; se estou fora, esquizofrenizo-me. 

Quanto à questão de iniciativa, você está vendo como, inconscientemente, acredito que até mesmo uma pedra a tenha mais do que eu? (Isto me passara despercebido. Só agora, lendo o conto, dei-me conta). Mando-lhe o conto. Peço-lhe que mo devolva. Ao escrevê-lo, eu morava no Flamengo, em casa das “três horrendas criaturas”. A geóloga era, na verdade, uma estudante de odontologia oligofrênica e, apesar disso, me intimidava como se tivesse descoberto a lei da gravidade. O quarto era meu, mas resolvi, por medida de economia, dividi-lo com outra. A mulherzinha se instalou lá, sentiu-se logo a dona, pressionou-me tanto que eu me mudei – calada e revoltada. Até hoje o Stenka não conseguiu entender como sou indefesa a este ponto. A do bigode era lésbica. Inofensiva, amante de uma professora de violão, de Belo Horizonte, uma tal de Maria Tereza. O “ser que desconheço” é o Stenko. Ele nunca me pôde perdoar esta deslealdade. Imagina que eu estava sem máquina, pedi-lhe que o batesse no jornal para mim. O Wassilly gostou muito, disse que me retratava fielmente. Não o entendi bem, na época. Hoje o entendo.



(Ilustração: Paula Rego - mulher-cão)










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