terça-feira, 30 de abril de 2013

DOIS GRAMAS DE COCAÍNA, de Javier Marías









[...] não conseguia ser amável com outro romancista, que se assinava Garay Fontina - assim, dois sobrenomes sem nome de batismo, devia achar original e enigmático, mas parecia nome de árbitro de futebol - e que considerava que a editora tinha de resolver qualquer dificuldade ou contratempo seu, mesmo que não tivesse a menor relação com seus livros. Ele nos pedia que fôssemos pegar um casaco em sua casa e levá-lo à tinturaria, que lhe mandássemos um técnico de informática ou uns pintores de parede ou que arranjássemos hospedagem para ele em Trincomalee ou em Batticaloa e cuidássemos dos preparativos de uma viagem particular sua para lá, as férias com sua senhora tirânica que de vez em quando telefonava ou aparecia em pessoa e não pedia, mandava. Meu chefe tinha grande apreço por Garay Fontina e lhe fazia agrados através de nós, não tanto porque vendesse muito quanto porque o havia feito acreditar que o convidavam com frequência a Estocolmo - eu sabia, por mero acaso, que ele ia para lá sempre por conta própria para conchavar no vazio e respirar o ar - e que lhe iam conceder o Nobel, muito embora ninguém houvesse pedido publicamente o prêmio para ele, nem na Espanha nem em lugar nenhum. Nem mesmo na sua cidade natal, como costuma ocorrer com tantos. No entanto, ele dava a coisa por certa diante do meu chefe e de seus subordinados, que ficávamos vermelhos de vergonha ao ouvir dele frases como "Meus espiões nórdicos me dizem que está para sair este ano ou ano que vem", ou "Já memorizei em sueco o que direi a Carlos Gustavo na cerimônia. Vou reduzi-lo a pó, ele nunca ouvirá nada tão feroz em sua vida, e ainda por cima na sua língua que ninguém aprende". "O que é, o que é?", perguntava meu chefe com excitação antecipada. "Você vai ler na imprensa mundial no dia seguinte", respondia Garay Fontina regozijante. "Não haverá jornal que não publique, e todos terão de traduzi-lo do sueco, até os daqui, não é engraçado?" (Eu achava invejável viver com tanta confiança numa meta, mesmo que ambas fossem fictícias, a meta e a confiança.) Procurava ser bastante diplomática com ele, não ia arriscar meu emprego,mas nem dá para dizer quanto me custava agora quando ele me ligava cedo com suas pretensões desmedidas.

- María - ele me disse ao telefone uma manhã - , preciso que você me arranje uns gramas de cocaína, para uma cena do meu novo livro. Mande alguém trazer aqui em casa o quanto antes, em todo caso antes do anoitecer. Quero ver a cor dela à luz do dia, para que não me engane depois.

- Mas, senhor Garay...

- Garay Fontina, querida, não não é a primeira vez que te digo; Garay puro é quase qualquer um, no País Basco, no México e na Argentina. Poderia até ser um jogador de futebol.

- Insistia tanto nisso que eu estava convencida de que o segundo sobrenome era inventado (olhei na lista telefônica de Madri um dia e não havia nenhum Fontina, só uma tal de Laurence Fontinoy, nome ainda mais inverossímil, como que de O morro dos ventos uivantes), ou talvez o sobrenome inteiro o fosse e na realidade ele se chamava Gómez Gómez ou García García ou qualquer outra redundância que o ofendia. Se fosse um pseudônimo, quando o escolheu, certamente ignorava que Fontina é um tipo de queijo italiano, não sei se de vaca ou de cabra, que se faz no Val d'Aosta, acho, e que as pessoas comem mais derretido que de outra maneira. Mas, bem, afinal de contas tem um amendoim que se chama Borges, não creio que isso o teria perturbado.

- Sim, senhor Garay Fontina, desculpe, foi para abreviar um pouco. Mas olhe - não pude evitar de dizer, apesar de não ser o principal, longe disso - não se preocupe com a cor. Posso garantir que é branca, com luz solar e com luz elétrica, quase todo mundo sabe. Aparece muito nos filmes, não via os do Tarantino na época? Ou o do Al Pacino em que faziam montinhos?

- Até aí eu sei, querida María - respondeu irritado. - Vivo neste planeta sujo, embora possa não parecer quando estou criando. Mas faça o favor de não se subestimar, você que não se limita a fazer livros como sua colega Beatriz e tantos outros, mas que além disso os lê, e com bom tino. - Ele me dizia coisas assim de vez em quando, suponho que para ganhar minha simpatia: eu nunca tinha lhe dado uma opinião sobre nenhum romance seu, não me pagavam para isso. - O que temo é não ser exato com os adjetivos. Vejamos, você pode me precisar se é de um branco leitoso ou de um branco calcário? E a textura. É mais como giz moído ou como açúcar? Como sal, como farinha ou como pó de talco? Vamos, diga.

Eu me vi envolvida numa discussão absurda e perigosa, dada a suscetibilidade do iminente galardoado. Eu própria tinha me metido nela.

- É como cocaína, senhor Garay Fontina. A esta altura não é preciso descrevê-la, porque quem não provou já viu. Salvo pessoas idosas, que de qualquer modo também já viram na televisão milhares de vezes.

- Você está me dizendo como tenho de escrever, María? Se tenho de pôr adjetivos ou não? O que devo descrever e o que é supérfluo? Está dando lições a Garay Fontina?

- Não, senhor Fontina...

Eu era incapaz de chamá-lo todas as vezes pelos dois sobrenomes, demorava séculos e a combinação não era sonora nem me agradava. Que eu omitisse Garay não parecia incomodá-lo tanto.

- Se lhes peço dois gramas de coca para hoje, por alguma razão há de ser. É porque esta noite o livro vai precisar deles, e interessa a vocês que haja um novo livro e que esteja sem falhas, não? A única coisa que lhes cabe fazer é arranjá-los e enviá-los para mim, e não discutir comigo. Ou será que tenho de falar pessoalmente com Eugeni?

Dessa vez não arredei pé e me escapou um catalanismo. Quem me contagiava com eles era meu chefe, que era catalão de origem e os conservava em número abundante, apesar de estar em Madri a vida toda. Se a exigência de Garay chegasse aos ouvidos dele, era capaz de mandar todos nós para a rua em busca da droga (nos bairros mal-afamados e em povoados em que os táxis se recusam a a entrar), a fim de satisfazê-lo. Ele levava demasiado a sério seu autor mais presunçoso, é inconcebível como esse tipo de gente convence muitos do seu valor, é um fenômeno universal enigmático.

- Está nos tomando por aviões, senhor Fontina? - disse a ele. - Não percebe que está pedindo que infrinjamos a lei? Não se compra cocaína nas tabacarias, isso o senhor sabe, nem no bar da esquina. Além do mais, para que quer dois gramas? Tem ideia de quanto são dois gramas, quantas carreirinhas dá? Se passa da dose, teremos uma grande perda. Para sua mulher e para a literatura. O senhor poderia ter um AVC. Ou ficar viciado e não pensar mais em outra coisa, não escrever mais nada, um farrapo humano incapaz de viajar, não pode atravessar fronteiras com droga. Já pensou, adeus cerimônia sueca e sua impertinência com Carlos Gustavo.

Garay Fontina ficou calado um momento, como se avaliasse se tinha se excedido em seu petitório ou não. Mas creio que o que mais lhe pesava era a ameaça de acabar não pisando nos tapetes de Estocolmo.

- Não, aviões não! - disse por fim. - Vocês só comprariam, não venderiam.

Aproveitei sua hesitação para esclarecer de passagem um detalhe importante da operação que ele desejava:

- Ah, mas e depois, quando a passarmos ao senhor? Entregaríamos os dois gramas e o senhor nos daria o dinheiro, não? E isso o que é? Não é trabalhar como avião? Para a polícia seria, não tenho dúvida.

Não era uma questão insignificante, porque Garay Fontina nem sempre nos reembolsava a conta da tinturaria ou o estipêndio dos pintores nem os gastos com as reservas em Batticaloa, no melhor dos casos demorava a fazê-lo e meu chefe ficava perturbado e nervoso quando reclamávamos o dinheiro. Só faltava financiarmos também os vícios do seu novo romance incompleto e portando ainda não contratado.

Notei que vacilava mais. Talvez não houvesse parado para pensar no dispêndio, mal acostumado que estava. Como tantos escritores, era um chupa-sangue, sovina e sem orgulho. Deixava tremendas despesas penduradas nos hotéis quando ia dar conferência por estes mundos, ou melhor, por estas províncias afora. Exigia suítes e o pagamento de todos os extras. Dizia-se que levava nas viagens seus lençóis e sua roupa suja, não por excentricidade nem por mania, mas para aproveitar e mandar lavá-los nos hotéis, até mesmo as meias sobre as quais não me consultava. Isso devia ser mentira - viajar com tanto peso seria um aborrecimento incrível -, mas ninguém explicava então como, certa feita, os organizadores da sua palestra tiveram de assumir descomunal fatura de lavanderia (uns mil e duzentos euros, correra de boca em boca).

- Sabe quanto está a cocaína, María?

Eu não sabia o preço exato, achava que uns sessenta euros, mas chutei um número bem alto, para assustá-lo e dissuadi-lo. Começava a pensar que poderia conseguir isso, ou pelo menos me safar do rolo que seria ir buscá-la, sabe-se lá em que birosca ou muquifo.

- Acho que uns oitenta euros o grama.

- Caray.

Depois ficou pensativo. Supus que estivesse fazendo cálculos muquiranas.

-É. Talvez você tenha razão. Talvez um grama chegue, ou meio. Dá para comprar meio?

- Não sei, senhor Garay Fontina. Eu não uso. Mas diria que não.

Convinha que não encontrasse jeito de economizar.

- Do mesmo modo que não se pode comprar meio frasco de água-de-colônia, suponho. Nem meia pera.

Mal pronunciei essas frases me dei conta do absurdo das comparações.

- Ou meio tubo de pastas de dentes.

Isso me pareceu mais adequado. Mas ainda precisava tirar totalmente essa ideia da sua cabeça, ou conseguir que ele comprasse a droga por conta própria, sem nos fazer delinquir nem adiantar o dinheiro. Com ele não se poderia descartar que não tornássemos a vê-lo, e a editora não estava para desperdícios.

- Mas me permita uma pergunta: o senhor quer a coca para usar ou só para vê-la e tocá-la?

- Ainda não sei. Depende do que o livro me peça esta noite.

Eu achava ridículo um livro pedir o  que quer que fosse de noite ou de dia, ainda mais quando não estava escrito a quem o estava escrevendo. Tomei aquilo por uma licença poética, deixei passar sem comentários.

- Sabe, se for apenas o segundo caso e o que o senhor quer é descrevê-la, ai, não sei como explicar... O senhor aspira a ser universal, já é, e como tal tem leitores de todas as idades. Não vai querer que os jovens pensem que para o senhor essa droga é uma novidade e que só a esta altura do campeonato o senhor ficou sabendo dela, se for contar como ela é e seus efeitos. E que tirem sarro do senhor por causa disso. Descrever a cocaína hoje em dia é como descrever um sinal de trânsito. Imagine os adjetivos! Verde, amarelo, vermelho! Estático, ereto, imperturbável, metálico! Seria risível.

- Está falando num sinal desses da rua? - perguntou alarmado.

- Eles mesmos.

Eu não sabia que mais podia significar "sinal de trânsito", pelo menos em linguagem corrente. Guardou silêncio por uns instantes.

- Tirar sarro, heim? A esta altura do campeonato - repetiu.

Me dei conta de que a utilização dessas expressões tinha sido um acerto, elas o impressionaram.

- Mas só sob esse aspecto, senhor Fontina, com certeza.

A perspectiva de que os jovens pudessem tirar sarro de uma só linha sua devia ser insuportável para ele.

- Bom, eu vou pensar. Não tem importância se eu atrasar um dia. Amanhã te digo o que decidi.

Soube que não diria nada, que deixaria de experiências e comprovações idiotas e que nunca mais faria referência àquela conversa telefônica. Dava uma de anticonvencional e transcontemporâneo, mas no fundo era como Zola e outros: fazia o impossível para viver o que imaginava, só por isso, tudo em seus livros soava artificial e trabalhado.


(Os enamoramentos, tradução de Eduardo Brandão)



(Ilustração: René Magritte - la lampe philosophique)






sábado, 27 de abril de 2013

LÁPIS DE ESPERANÇA, de Nathan de Castro





Andarilho-burguês passei o tempo,
sem tempo para o tempo aproveitar.
O tempo era pretexto e contratempo
que não deixava tempo pra sonhar.

Os amores ficaram pela estrada
da poeira do tempo de entender,
nos olhares da Estrela perfumada,
a imensidão do tempo de viver.

Hoje, quando no céu a nuvem passa
carregada, procuro uma caneta
para escrever um verso que me faça

voltar aos velhos tempos da criança
que enxergava com olhos de poeta
e escrevia com lápis de esperança.




(Ilustração: Zevi Blum - it's always someting)






quarta-feira, 24 de abril de 2013

ANTES DO BAILE VERDE, de Lygia Fagundes Telles




     



O rancho azul e branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís XV e sua porta-estandarte de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro do bumbo fez uma profunda reverência diante das duas mulheres debruçadas na janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo rodar a capa encharcada de suor.


- Ele gostou de você- disse a jovem voltando-se para a mulher que ainda aplaudia. - O cumprimento foi na sua direção, viu que chique?


A preta deu uma risadinha.


-Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menso na minha opinião. E já deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele começa a encher a caveira e pronto, não sai mais nada.


A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa -de-cabeceira. O quarto estava resolvido como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e gavetas.


- Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo...Tenha paciência, mas você vai me ajudar um pouquinho.


- Mas você ainda não acabou?


Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde.Usava biquíni e meias rendadas também verdes.


- Acabei o quê, falta pregar tudo isso ainda, olha aí... Fui inventar um raio de pierrete dificílima!


A preta aproximou-se, alisando com as mãos o quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha trazia um crisântemo de papel-crepom vermelho. Sentou-se ao lado da moça.


- O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.


- Tem tempo, sossega - atalhou a jovem. Afastou os cabelos que lhe caíam nos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. - Não sei como fui me atrasar desse jeito.


- Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!


- E quem está dizendo que você vai perder?

A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e delicadamente tocou com ela cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com pequenos movimentos circulares.


- Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote...


- Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a coisa pela metade, vê se entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?... Que tal?


- Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde você está parecendo uma alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito.


Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mãona face afogueada.


- Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias têm que ser verdes, tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais da metade, Lu!


-Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos.


- Não faz mal - disse a jovem, limpando no lençol o excesso de cola que lhe escorreu pelo dedo. Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai reparar, vai ter gente à beça. O que está me endoidando é este calor, não aguento mais, tenho a impressão de que estou me derretendo, você não sente? Calor bárbaro!


A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou o tom de voz.


- Estive lá.


- E daí?


- Ele está morrendo.


Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-se a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa panela: a coroa do rei não é de ouro nem de prata...


- Parece que estou num forno - gemeu a jovem dilatando as narinas porejadas de suor. - Se soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve.


- Mais leve do que isso? Você está quase nua, Tatisa. Eu ia com a minha havaiana , mas só porque aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica. Imagine você então...


Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda da meia. Deixou-a cair na pequena constelação que ia armando na barra do saiote e ficou raspando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe caíra no joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum . Falou num tom sombrio:


-Você acha, Lu?


-Acha o quê?


-Que ele está morrendo?


- Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite.


- Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante.


- Radiante? - espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. - E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo.


- Mas quando fui lá ele estava dormindo tão calmo, Lu.


- Aquilo não é sono. É outra coisa.


Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi até a mesa, pegou a garrafa de uísque e procurou um copo em meio à desordem dos frascos e caixas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Soprou o fundo cheio de pó-de-arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de boca aberta. Dirigiu-se à preta.


-Quer?


- Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia.


A jovem despejou mais uísque no copo.


- Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhosnão borrou... Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver.


- Você está bebendo demais. E nessa correria... Também não sei por que essa invenção de saiote bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o pior é que não posso caprichar, com o pensamento no Raimundo lá na esquina...


- Você é chata, não Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa , taque-taque-taque-taque! esse cara não pode esperar um pouco?


A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco que passava já longíquo . Cantarolou em falsete: acabou chorando... acabou chorando...


- No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti à grande. Meu sapato até desmanchou de tanto que dancei.


- E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar.


- E seu pai?


Lentamente a jovem foi limpando no lençol as pontas dos dedos esbranquiçados de cola. Tomou um gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no pote.


- Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? - Ficou olhando para a ponta do dedo coberto de lantejoulas. Foi deixando no saiote o dedal cintilante. - Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?


- Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender.


- Mas você começa a dizer que ele está morrendo!


- Pois está mesmo.


- Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo daquele jeito.


- Então não está.


A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando água um na cara do outro.


Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que passou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altíssimos. "Minha lindura, vem comigo, minha lindura!" - gritou o moleque maior, correndo atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias presas aos elásticos do biquini.


- Estou transpirando feito um cavalo. Juro que se não tivesse me pintando, me metia agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes.


- E eu não aguento mais de sede - resmungou a empregada, arregaçando as mangas do quimono. - Ai! uma cerveja bem geladinha . Gosto mesmo é de cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano passado, ele ficou de porre os três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos, representava um mar. Você precisa ver aquele monte de sereias enroladas em pérolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima , dentro de uma concha abrindo e fechando, a rainha do mar coberta jóias...


- Você já se enganou uma vez - atalhou a jovem. - Ele não pode estar morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem papai?, perguntei e ele não respondeu mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse.


- Ele se fez de forte, coitado.


- De forte, como?


- Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar.


- Ih, como é difícil conversar com gente ignorante - explodiu a jovem, atirando no chão as roupas amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calça comprida. - Você pegou meu cigarro?


- Tenho minha marca, não preciso dos seus.


- Escuta, Luzinha, escuta - começou ela, ajeitando a flor na carapinha da mulher. - Eu não estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor porque uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura...


- Ele estava se despedindo.


- Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você quer que seja hoje. Por que tem que repetir isso, por quê?


- Você mesmo pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa.


A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sapato. Agachou-se mais, roçando os cabelos verdes no chão . Levantou-se, olhou em redor. E ajoelhou-se devagarinho diante da preta. Apanhou o pote de cola.


- E se você desse um pulo lá só para ver?


- Mas você quer ou não que eu acabe isto? - a mulher gemeu exasperada, abrindo e fechando os dedos ressequidos de cola.


- O Raimundo tem ódio de esperar, hoje ainda apanho!


A jovem levantou-se. Fungou, andando rápido num andar de bicho na jaula. Chutou o sapato que encontrou no caminho.


- Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem disse que não podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta!


- Mas Tatisa, ele não é o meu pai, não tenho nada com isso, até que ajudo muito sim senhora, como não? Todos esses meses quem é que tem aguentado o tranco? Não me queixo porque ele é muito bom, coitado. Mas tenha a santa paciência, hoje não! Já estou fazendo demais aqui plantada quando devia estar na rua.


Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no espelho. Beliscou a cintura.


- Engordei, Lu.


- Você, gorda? Mas você é só osso, menina. Seu namorado não tem onde pegar. Ou tem?


Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se:


- Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que à meia-noite ele vem me buscar. Mandou fazer um pierrô verde.


-Também já me fantasiei de pierrô. Mas faz tempo.


- Vem num tufão, viu que chique?


- Que é isso?


- É um carro muito bacana, vermelho. Mas não fique aí me olhando, depressa, Lu, você não vê que... -Passou ansiosamente a mão no pescoço. - Lu, Lu por que ele não ficou no hospital?! Estava tão bem no hospital...


- Hospital de graça é assim mesmo, Tatisa. Eles não podem ficar a vida inteira com um doente que não resolve, tem doente esperando até a calçada.


- Há meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos. Não podia viver mais um dia?


A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distância. Abriu-o de novo no colo e inclinou-se para o pires de lantejoulas.


- Falta só um pedaço.


- Um dia mais...


- Vem me ajudar, Tatisa, nós duas pregando vai num instante.


Agora ambas trabalhavam num ritmo acelerado, as mãos indo e vindo do pote de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde, pesada de lantejoulas.


-Hoje o Raimundo me mata - recomeçou a mulher, grudando as lantejoulas meio ao acaso. Passou o dorso da mão na testa molhada. Ficou com a mão parada no ar. Você não ouviu?


A jovem demorou para responder.


- O quê?


- Parece que ouvi um gemido.


Ela baixou o olhar.


- Foi na rua.


Inclinaram as cabeças irmanadas sob a luz amarela do abajur.


- Escuta, Lu, se você pudesse ficar hoje, só hoje - começou ela num tom manso. Apressou-se: - Eu te daria meu vestido branco, aquele meu branco, sabe qual é? E também os sapatos, estão novos ainda, você sabe que eles estão novos. Você pode sair amanhã, você pode sair todos os dias, fica hoje!


A empregada empertigou-se, triunfante.


- Custou, Tatisa, custou. Desde o começo eu já estava esperando. Ah, mas hoje nem que me matasse eu ficava, hoje não. - O crisântemo caiu enquanto ela sacudiu a cabeça. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. - Perder esse desfile? Nunca! Já fiz muito - acrescentou sacudindo o saiote. - Pronto, pode vestir. Está um serviço porco mas ninguém vai raparar.


- Eu podia te dar o casaco azul - murmurou a jovem, limpando os dedos no lençol.


- Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviu isso, Tatisa? Nem com meu pai, hoje não.


Levantando-se de um salto, a moça foi até a garrafa e bebeu de olhos fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote.


- Brrrr! Esse uísque é uma bomba - resmungou, aproximando-se do espelho. -Anda, venha aqui me abotoar, não precisa fica aí com essa cara. Sua chata.


A mulher tateou os dedos por entre o tule.


- Não acho os colchetes.


A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a cabeça levantada. Olhou para a mulher através do espelho:


- Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem os óculos quando entrou no quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo.


- Pode ser que me enganasse mesmo.


- Claro que se enganou. Ele estava dormindo.


A mulher franziu a testa, enxugando na manga do quimono o suor do queixo. Repetiu como um eco:


- Estava dormindo, sim.


- Depressa, Lu, faz uma hora que está com esses colchetes!


- Pronto - disse a outra, baixinho, enquanto recuava até a porta.


- Não precisa mais de mim, não é?
- Espera! - ordenou a moça perfumando-se rapidamente. Retocou os lábios, atirou o pincel ao lado do vidro destapado.- Já estou pronta, vamos descer juntas.


- Tenho que ir, Tatisa!


- Espera, já disse que estou pronta - repetiu, baixando a voz.- Só vou pegar a bolsa...


- Você vai deixar a luz acesa?


- Melhor, não? A casa fica mais alegre assim.


No topo da escada ficaram mais juntas. olharam na mesma direção: a porta estava fechada. Imóveis como se tivessem sido petrificadas na fuga, as duas mulheres ficaram ouvindo o relógio da sala. Foi a preta quem primeiro se moveu. A voz era um sopro:


- Quer ir dar uma espiada, Tatisa?


- Vá você, Lu...


Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pelas têmporas verdes da jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão. O som prolongado de uma buzina se fragmentou lá fora. Subiu poderoso o som do relógio. Brandamente a empregada desprendeu-se da mão da jovem. Foi descendo a escada na ponta dos pés. Abriu a porta da rua.


- Lu! Lu! - a jovem chamou num sobressalto. Continha-se para não gritar.

- Espera aí, já vou indo!


E apoiando-se ao corrimão, colada a ele, desceu precipitamente. Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la.




(Ilustração: Franz von Stuck)


domingo, 21 de abril de 2013

ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO, de João Cabral de Mello Neto










- Essa cova em que estás,
   com palmos medida,
   é a conta menor
   que tiraste em vida.
- É de bom tamanho,
   nem largo nem fundo,
   é parte que te cabe
   deste latifúndio.
- Não é cova grande,
   é cova medida,
   é a terra que queria
   ver dividida.
- É uma cova grande
   para o teu pouco defunto,
   mas estarás mais ancho
   que estavas no mundo.
-  É uma cova grande
   para teu defunto parco,
   porém mais que no mundo
   te sentirás largo.
-  É uma cova grande
    para tua carne pouca,
    mas a terra dada
    não se abre a boca.

- Viverás, e para sempre,
  na terra que aqui aforas:
  e terás enfim tua roça.
- Aí ficarás para sempre,
  livre do sol e da chuva,
  criando tuas saúvas.
- Agora trabalharás
  só para ti, não a meias,
  como antes em terra alheia.
- Trabalharás uma terra
   da qual, além de senhor,
    serás homem de eito e trator.
- Trabalhando nessa terra,
   tu sozinho tudo empreitas:
   serás semente, adubo, colheita.
- Trabalharás numa terra
  que também te abriga e veste:
  embora com o brim do Nordeste.

- Será de terra
   tua derradeira camisa:
   te veste, como nunca em vida.
-  Será de terra 
   e tua melhor camisa:
   te veste e ninguém cobiça.
-  Terás de terra
   completo agora o teu fato:
   e pela primeira vez, sapato.
- Como és homem,
   a terra te dará chapéu:
   fosses mulher, xale ou véu.
- Tua roupa melhor
   será de terra e não de fazenda:
   não se rasga nem se remenda.
- Tua roupa melhor
   e te ficará bem cingida:
   como roupa feita à medida.

-  Esse chão te é bem conhecido
   (bebeu teu suor vendido).
-  Esse chão te é bem conhecido
   (bebeu o moço antigo).
-  Esse chão te é bem conhecido
   (bebeu tua força de marido).
-  Desse chão és bem conhecido
   (através de parentes e amigo).
-  Desse chão és bem conhecido
   (vive com tua mulher, teus filhos).
-  Desse chão és bem conhecido
   (te espera de recém-nascido).

-  Não tens mais força contigo:
   deixa-te semear ao comprido.
-  Já não levas semente viva:
   teu corpo é a própria maniva.
-  Não levas rebolo de cana:
   és o rebolo, e não a caiana.
-  Não levas semente na mão:
   és agora o próprio grão.
-  Já não tens força na perna:
   deixa-te semear na coveta.
-  Já não tens força na mão:
   deixa-te semear no leirão.

-  Dentro da rede não vinha nada,
   só tua espiga debulhada.
-  Dentro da rede vinha tudo,
   só tua espiga no sabugo.
-  Dentro da rede coisa vasqueira,
   só a maçaroca banguela.
-  Dentro da rede coisa pouca,
   tua vida que deu sem soca.

-  Na mão direita um rosário,
  milho negro e ressecado.
-  Na mão direita somente
   o rosário, seca semente.
-  Na mão direita, de cinza,
   o rosário, semente maninha.
-  Na mão direita o rosário,
   semente inerte e sem salto.

-  Despido vieste no caixão,
   despido também se enterra o grão.
-  De tanto te despiu a privação
   que escapou de teu peito a viração.
-  Tanta coisa despiste em vida
   que fugiu de teu peito a brisa.

- E agora, se abre o chão e te abriga,
   lençol que não tiveste em vida.
-  Se abre o chão e te fecha,
   dando-te agora cama e coberta.
-  Se abre o chão e te envolve,
   como mulher com quem se dorme.



(Morte e Vida Severina)



(Ilustração: Abelardo da Hora - enterro de camponês, 1967)