domingo, 31 de março de 2013

O GLAUCOMATOSO, de Glauco Mattoso








Como vocês perceberam, meu pseudônimo literário é um trocadilho com o portador de glaucoma (glaucomatoso), e foi escolhido justamente porque sou glaucomatoso de nascença, ou seja, antes mesmo de ser batizado como Pedro José. Não acompanho a evolução da nomenclatura oftalmológica, mas meu glaucoma congênito era caracterizado pelo tamanho grande do olho logo ao nascer, anomalia chamada na época de "buftalmo". Meu olho direito era maior e mais duro que o esquerdo, e bem cedo notei que enxergava menos com ele, enquanto o esquerdo tinha visão praticamente normal. Já na idade escolar fui notando que ambos eram míopes, o direito em maior grau. Ainda no primário comecei a usar óculos e aos oito anos fui operado pela primeira vez, no Hospital das Clínicas, em São Paulo.

Mais tarde, meus pais foram aconselhados a procurar tratamento no Instituto Penido Burnier, em Campinas, que então era um centro de referência. Os médicos não quiseram tentar nova operação até que eu estivesse adulto, e fui sendo tratado com um colírio de pilocarpina e comprimidos diuréticos.

Aos dezoito anos comecei a perder o olho direito, cujo volume foi aumentando junto com a miopia. Operei-o aos vinte e um anos, com o professor da USP Celso Antônio de Carvalho, mas houve perda total na própria mesa de cirurgia. Desde então fiquei caolho, com a miopia progredindo proporcionalmente à pressão ocular do esquerdo. Cheguei a usar óculos com mais de dez graus, e mesmo depois de outra intervenção (com o Dr. Hilton Rocha, famoso cirurgião mineiro), a pressão continuava subindo. Aos trinta anos fui novamente operado, desta vez pelo médico paulista John Helal Jr., discípulo de Celso Carvalho, e a pressão se estabilizou por alguns anos. Aos quarenta o Dr. John operou-me a catarata e implantou uma lente de grau, que diminuiu as grossas lentes dos óculos, mas a pressão voltou a subir. Nova operação aos quarenta e dois anos, mas àquela altura as cirurgias indicadas (trabeculotomia, trabeculectomia) já não davam resultado.

Dois anos depois ainda tentei nova operação, com um médico do hospital Albert Einstein, mas a hemorragia pôs definitivamente a perder minha visão já muito fraca. No olho direito, o mais afetado, a pressão atingiu picos superiores a sessenta pontos, enquanto a do esquerdo, nos momentos mais críticos, passou de cinquenta. Mesmo depois da perda total tive que continuar usando colírios, e atualmente a pressão do esquerdo se mantém em torno dos vinte pontos, graças ao colírio Xalatan, que substituiu todos os outros colírios e comprimidos, mas que não evitou a cegueira, já que meu campo visual estava muito reduzido pelos escotomas e pelos descolamentos internos, sangramentos, inflamações, etc. Pode-se dizer que a medicina não tem solução para casos como o meu, apenas consegue adiar a cegueira.

Hoje não enxergo nada, nem mesmo as sombras e claridades que conseguia distinguir antes da última cirurgia, mas até os quarenta pude ler e escrever o suficiente para estudar, me formar (cursei biblioteconomia e letras), trabalhar (fui funcionário do Banco do Brasil, onde me aposentei por invalidez) e desenvolver minha carreira literária (tenho mais de vinte livros publicados), entre outras atividades. Minha visão nunca foi normal, sequer na infância, pois só conseguia ver de longe pelo olho esquerdo. O direito era tão míope que só servia para ler bem de perto. Isso não impediu que eu me dedicasse às artes visuais, como a poesia concreta e os quadrinhos (não me confundam com o cartunista Glauco, criador do Geraldão), antes pelo contrário: impedido de brincar como os outros meninos, que praticavam esportes, andavam de bicicleta e dançávamos bailinhos, tornei-me mais estudioso e amante das letras.

Com o agravamento da moléstia, tive que abrir mão da leitura até que, já cego, passei a me dedicar à produção de CDs de rock alternativo (associado a um selo independente), mas no finalzinho do século apareceu um sistema de computação sonora chamado Dos Vox que faz meu computador falar, possibilitando-me o retorno à poesia e à publicação de livros, bem como abrindo-me as portas da comunicação internáutica. Já no dia a dia a coisa é mais difícil e sofrida, pois não consigo me adaptar à cegueira nos atos mais práticos, e dependo de ajuda dentro ou fora de casa. Outro problema é o despreparo e a discriminação das pessoas em relação ao deficiente visual, o que me acarreta o sofrimento adicional de suportar maus tratos. A única compensação que consigo tirar é a fantasia masoquista, que se realiza através da minha obra, na qual me sujeito às piores humilhações e desabafo minha revolta contra as injustiças (humanas e divinas) de que me julgo vítima.

Desde adolescente eu escrevia bastante, inventava uns contos malucos, mas a poesia eu comecei a praticar nos anos 70, paralelamente àquela geração dos "poetas marginais", só que meus primeiros poemas já descreviam as sensações de quem sofre de glaucoma, daí meu pseudônimo. [...] aqueles primeiros poemas, aludindo a alguns sintomas mais perceptíveis, tais como o arco-íris circular que surge em torno de lâmpadas acesas e outros focos luminosos, as manchas cegas que surgem em vários pontos do campo visual (chamadas de escotomas), as "estrelinhas" que pipocam a qualquer momento, dependendo do movimento ou do esforço físico que a gente fizesse, e assim por diante. Outras impressões mais graves, como a perda progressiva das cores (o vermelho e o verde foram as primeiras a dar lugar a um cinza pálido), típicas da fase terminal da capacidade visual, foram descritas nos sonetos [...].

São inúmeros os complicadores para quem sofre deste mal. Contraindicações de remédios, alimentos e bebidas a evitar, esforços físicos... sem falar na miopia, que nunca estacionava, da dor de cabeça causada pela pilocarpina e por outros colírios, da angústia e da paranoia diante da perspectiva de ficar cego não se sabe quando... Mesmo depois da perda total o glaucoma não para de incomodar. Se a pressão do olho cego deixar de ser controlada com medicamentos, a dor pode ficar insuportável. No caso do olho direito (o que foi inutilizado há mais tempo), demorou para que ele perdesse a rigidez de pedra e começasse a murchar, e até nesse processo de encolhimento passei por muitos sangramentos, pontadas, pruridos e corrimentos. Enfim, a agonia tem sido longa e constante. 

Claro que nem todos os glaucomas são graves e fatais como o meu, mas quem puder se prevenir que se previna.

Apenas o consolo de saber que nós, os glaucomatosos, estamos, como os cegos, em boa companhia: de Ray Charles a James Joyce, de Jânio Quadros a Sérgio Sant'Anna, temos "colegas" em todos os campos da celebridade. Pra não dizerem que sou Maria vai com as outras, resolvi me diferenciar pela atitude politicamente incorreta e escancaro meu sadomasoquismo, meu fetichismo e minha escatologia numa linguagem muito suja e violenta, razão pela qual sou conhecido como "o poeta da crueldade". Meus livros e meu sítio pessoal dão provas desse comportamento anticonvencional, mas quem tiver a curiosidade de ler o que escrevo vai perceber que por trás da baixaria está algo mais profundo, ou mais elevado, como queiram: o protesto contra todo tipo de desumanidade, venha ela do próprio homem.




(Ilustração: André Muller)









quinta-feira, 28 de março de 2013

MOTIVO , de Cecília Meireles










Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem triste:
sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.


Se desmorono ou edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E sei que um dia estarei mudo:
- mais nada.



(Ilustração: Érika Cardoso)


segunda-feira, 25 de março de 2013

EVOLUÇÃO HUMANA "CHEGOU AO FIM", AFIRMA BIÓLOGO DARWINISTA, de John Cornwell








Quando "A Origem das Espécies" de Darwin foi publicado em 1859, não demorou para que teólogos sensíveis, como o cardeal John Henry Newman, aceitassem a evolução como parte da providência divina. Mas até hoje o mundo cristão continua dividido entre os criacionistas que leem o Gênesis literalmente, e os que o veem de forma não literal, como um mito ou um poema. Enquanto os criacionistas leem a Bíblia como um texto cosmológico, outros tratam a evolução como uma teoria para tudo.

O darwinista Steve Jones, eminente biólogo e escritor talentoso, é professor de genética e chefe do departamento de biologia do University College, em Londres. Conversei com ele recentemente em sua sala no Laboratório Galton, atrás da estação Euston, para falar sobre o darwinismo.

Para celebrar o bicentenário de Darwin, Jones publicou um novo livro, "Darwin's Island" ["A Ilha de Darwin"], que examina as pesquisas pouco conhecidas de Darwin sobre a flora e a fauna britânicas. Jones declarou recentemente, de forma provocativa, que a evolução humana "chegou ao fim". E agora, nessa entrevista, volta a afirmá-lo.

"É sério isso?", perguntei.

"Veja, no mundo desenvolvido, os homens em média têm filhos mais cedo do que antigamente. Isso significa que há menos chance de que o esperma sofra mutações que poderiam levar a uma mudança evolucionária".

Não me convenci. Afinal, há apenas 50 anos, a média de expectativa de vida era bem menor, então é claro que em média os homens tinham filhos mais cedo. Mas acho que o que John quer dizer é que o homem de hoje tem um período de procriação curto, que vai apenas do final dos 20 anos até antes dos 40. No passado, entretanto, a maioria dos homens (principalmente os mais bem sucedidos) teriam filhos ininterruptamente, desde a adolescência até os 50 ou 60 anos. Então, apesar de ter aumentado a média de idade com a qual o homem tem o seu primeiro filho, a média da faixa etária em que eles têm filhos é menor.

Ele acrescenta: "a evolução também requer que populações isoladas possam acumular adaptações, como nas ilhas Galápagos. O mundo moderno, com suas viagens de avião, remédios e proteção contra as intempéries, faz com que seja muito pouco provável encontrar mutações significativas prosperando num habitat isolado".

"A força motriz da evolução humana é o homem", continua Jones. "Os óvulos das mulheres são produzidos antes do nascimento, e na vida adulta o número de divisões celulares que podem desencadear uma mutação bem sucedida está em torno de 20, desde o óvulo que lhe deu origem até o óvulo que produzirá seus filhos. Mas o esperma de um pai de 28 anos de idade passa por 300 divisões celulares desde o esperma que lhe deu origem até o esperma que ele passa adiante. Em um homem de 50 anos, são 2 mil divisões celulares. Assim, são os pais mais velhos que levam a evolução humana adiante através das mutações genéticas. Mas nos países desenvolvidos, a maioria dos homens não se reproduz mais a partir dos trinta e poucos anos."

E quanto às mutações resultantes de testes nucleares e Chernobyl?

"Claro, o DNA pode ser afetado por influências do ambiente. Mas apenas 0,2% da exposição à radiação é produzida pelo homem; a maior parte vem do radônio no solo e nas rochas".

Jones, entretanto, concorda que ainda é possível uma espécie de microevolução - por exemplo, na disseminação de genes resistentes ao HIV/Aids. "Eventualmente os sobreviventes passarão seus genes resistentes para a próxima geração, criando uma população em geral resistente. Mas isso não assinala uma mudança significativa na espécie humana".

E quanto à ideia de que os humanos podem se tornar mais ou menos inteligentes?

"Foi Francis Galton, um dos primeiros geneticistas", disse Jones, "que veio com a ideia de que os seres humanos estavam destinados a emburrecer porque as pessoas inteligentes têm menos filhos, enquanto as burras e irresponsáveis se reproduzem com mais rapidez". Contra Galton, Jones cita o "efeito Flynn" - o aumento do QI médio no mundo desenvolvido durante os últimos 50 anos, que recebe esse nome por causa do cientista político James R. Flynn.

Flynn argumentou que esse "efeito" não demonstra um aumento genético na inteligência - mas que se deve a um desvio nos testes de QI, que privilegiam  um tipo de raciocínio abstrato que melhorou durante o século 20 por causa da educação e da tecnologia. Antigamente, as pessoas tinham o mesmo poder cerebral, mas menos experiência com o raciocínio abstrato.

Jones também não se impressiona com a possibilidade de a engenharia genética deixar uma marca na evolução humana. Ele admite que poderá haver algumas melhorias superficiais na capacidade humana, com drogas como a ritalina para a concentração, ou provigil para combater a fatiga. Mas segundo ele essas são mudanças superficiais e não-genéticas.

Jones também insiste que os habitats isolados não continuarão suficientemente isolados para permitir mutações. Ele chama isso de "a grande coalescência global", a forma pela qual os seres humanos escaparam das "leis impiedosas de vida e morte" da evolução. E continua: "diferenças herdadas na capacidade de superar resfriados, fome, deficiência de vitaminas ou doenças não movem mais a máquina da evolução. As pessoas morrem por causa disso, mas quando estão velhas e a evolução não as percebe mais".

Então essas melhoras não indicam um avanço evolucionário?

"Darwin argumentava que a evolução não tem uma tendência inerente para melhorar ou piorar as coisas. De fato, é mais provável ter alguma surpresa ruim virando a esquina. Um dia poderemos simplesmente falhar em nossa luta pela sobrevivência".

Jones explica que uma das grandes divisões na compreensão da evolução é entre as noções de propósito e não-propósito. Um exemplo do problema, continua, é encontrado na ideia de uma asa ou um olho pela metade - normalmente discutida pelos defensores do "desenho inteligente" [ou criacionistas]. Segundo eles, como alguma coisa pela metade não tem nenhuma vantagem evolutiva, ela deve de certa forma ter sua função final codificada dentro de si antes de começar sua jornada. A resposta de Jones para essas anomalias admite o mistério da falta de fósseis que evidenciem transições graduais, por exemplo, de uma situação sem asas, para meia asa (sem nenhuma vantagem evolucionária), para uma asa totalmente operacional.

Essa aparente falha na teoria evolucionária encorajou a hipótese do "desenho inteligente" de propensões inerentes para um desenho mais complexo. "Há muitas pessoas que estão felizes em acreditar em parte da história da evolução", diz Jones, "mas argumentam que Deus fornece um ímpeto de propósito por trás de tudo".

"Eu não consigo entender a ideia de que tudo tem um 'significado' na evolução", diz Jones. Ainda assim é difícil, senão impossível, acredito, até mesmo para os biólogos mais reducionistas escreverem de forma acessível sobre evolução sem usarem em certo grau o discurso do propósito antropomórfico - até mesmo em termos que parecem neutros como "vantagens", ou "sobrevivência do mais forte", "adaptação".

Enquanto cientista altamente literário, Jones se diz consciente, e talvez até culpado, da justaposição entre a metáfora e a ciência. O próprio Darwin, ele admite, era dado a metáforas imaginativas; seu companheiro constante no Beagle foi uma cópia de "Paraíso Perdido" [obra poética do escritor John Milton], e um dos aspectos mais excepcionais de "A Origem das Espécies" é sua capacidade de misturar metáfora e ciência, criando um efeito belíssimo.

Além do simples deleite com a descrição natural, o entusiasmo de Jones com os estudos de Darwin sobre os crustáceos e outras minúcias britânicas parte de sua especialização acadêmica, a genética.

"O DNA, assim como os corpos que ele constrói", diz Jones, com os olhos iluminados, "é baseado numa série de variações numa estrutura. Conforme um óvulo amadurece, órgãos complexos - olhos, ouvidos, mãos e cérebros - são formados a partir de elementos que só poderão ser distinguidos no embrião". Em momentos como esse, trazendo a biologia do desenvolvimento para a vida, a conversa com Jones se parece mais com as passagens líricas de seus livros - hinos à beleza, sutileza, e o potencial das criações vivas em seu progresso "da fertilização ao túmulo".

A ligação entre a seleção natural e o DNA estava esperando para acontecer; nesse sentido Jones e seus colegas biólogos são os herdeiros diretos de Darwin. "A seleção natural", diz Jones, "deixa suas pegadas na dupla hélice de muitas formas. Grandes trechos de DNA homogêneo de ambos os lados dos genes europeus para cabelo loiro e digestão de leite mostram que as variações benéficas arrastaram junto suas vizinhas à medida que passaram pela população durante os últimos milhares de anos".

Darwin aparentemente queria acrescentar um capítulo sobre seres humanos em seu trabalho sobre a origem dos animais de fazenda. Esse capítulo está sendo escrito agora com a ajuda dos geneticistas modernos. Muitas das mudanças físicas na linha humana desde que ela surgiu lembram as que aconteceram nos animais domésticos, admite Jones.

E quanto à inteligência humana, que nos permite dar continuidade à visão de Darwin no campo da genética, Jones diz: "nossos cérebros, sozinhos, não diminuíram".




(Tradução de Eloise De Vylder)



(Ilustração: xfig african painter - Simon Mungai - no future-out)




sexta-feira, 22 de março de 2013

CANÇÃO, de Emílio Moura






Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.


Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.


Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.


Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.


Que tudo o mais é perdido.


 (Ilustração: Ada Breedveld)



terça-feira, 19 de março de 2013

GAROTO DE PLÁSTICO, de Cristiane Sobral







Tem gente que vem ao mundo a passeio, outros, a serviço. E ele vivia assim, à paisana. Era um indivíduo descartável e nunca fizera o menor esforço. Malhar, só na academia, para garantir o êxito dos amassos noturnos no seu ponto de encontro predileto, as boates, onde costumava caçar seu objeto preferido: mulher. Mulher loira, claro.

Seu jeito era meio distraído durante o dia porque gastava toda a energia à noite, nos agitos. Sua expressão era meio aérea e seu sorriso, completamente sintético. Marcava presença na classe jovem que frequentava pelo seu nada original nick name: "boy". Aliás, ele considerava-se um dos melhores frutos da era da informática: o gato virtual. Nada de contatos verdadeiros. Não tinha mesmo muitos neurônios disponíveis para desenvolver sua inteligência emocional. Seu melhor trunfo era a memória, medida em gigabytes e equipada com um eficiente kit multímidia. Um gato de plástico motorizado. Tinha um carro do ano com um equipamento de som de última geração. Presente do pai.
Fazia cursinho de inglês, presente da madrinha. "How are you? Fine, thanks". "Cool". Estudava Ciências da Computação numa faculdade privada paga por meio de um rateio feito entre os irmãos mais velhos sem o menor desajuste financeiro. Um garoto de plástico com roupas de marca. Presentes de uma gatinha "shopping-maníaca", que sonhava com o seu amor eterno. "Morena", a menina, até estudiosa. Mas muito pé no chão. O "boy" não aguentava. Papo cabeça. Politicamente correto. Música gospel. Só mesmo apertando o "delete". Que alívio. Preferia suas batatinhas loiras fritas e hambúrgueres de carne, muita carne. Boy. Fazia palavras cruzadas nível moleza e era adepto do discman. Principalmente nas viagens. Uma viagem inesquecível? o primeiro passeio com seu novo e moderno tênis da onda. Pisando em terra firme com seus pés de plástico tamanho 42. Seu maior sonho era um mundo com meias descartáveis. Vida para as meias de algodão do tipo "one way". Liberdade perfumada para dentro dos dedos. Se alguém quiser lavar meias que lave. Que cara de plástico!

Outro dia, na sua aula de inglês reclamou com o "teacher" que não tinha tempo para fazer o dever de casa, o "home-work", porque estava frequentando a academia regularmente, já que o importante, em sua opinião, era poder ficar sempre orgulhoso de não ter nenhuma dobrinha no abdome sob as suas camisetinhas tipo "mamãe olha como estou forte"..."Mother", sou um garoto de plástico bem forte!

E assim seguia nosso ilustre personagem, em sua existência perfeitamente descartável, de shopping em shopping, de boate em boate, até que um dia, ficou totalmente derretido por uma garota! Isso não fazia parte do seu roteiro de vida, baseado em técnicas yuppies e neurolinguísticas... não, não fazia. Pois aconteceu. Só o amor constrói. Ou destrói. Sob a sua cara-máscara de plástico totalmente derretida, havia um complexo de inferioridade estrutural, que o fez ficar trancado em casa durante quatro longas semanas, período suficiente para deixar crescer seus cabelos raspados à máquina zero a cada sete dias. Seus cabelos eram negros, sua pele cor de azeviche, aquela vida de plástico era um verdadeiro mito, mito de uma democracia racial. Junto com seus cabelos, cresceram algumas idéias... e em noites de insônia sua mente formulara algumas perguntas: quem sou eu? para onde vou? Meu nome é Maurício? Por que me chamam de Mauricinho?

O garoto ficou atordoado e decidiu investigar sua certidão de nascimento. Leu: Nome: Augusto de Oliveira. Cor : Parda. Junto com a certidão de nascimento havia um álbum de fotografias com uma foto de casamento de seus pais. Um casal negríssimo, sem dúvida. Filho de peixe... Augusto. Ficou frente ao espelho do banheiro um longo tempo. Seus olhos refletiam uma expressão bastante dura. Cara de pau. Sem máscara ele até que não era tão estranho. Parecia gente. Parecia com tanta gente. Com toda a população do Brasil, esse país que também usa uma máscara de plástico para disfarçar a cara de pau que lhe permite vez em quando esquecer que está aqui a maior população negra fora da África.



(Ilustração: Elisha Ongere - bringing good news - we can fly)



sábado, 16 de março de 2013

RECORRENTE, de Erika Cardoso









Luz pontiaguda de um farol distante,
esfacela a lua tornando-a estrelas.
Sobre a areia recolho joias,
falsas como as imagens deste sonho.

Danço sobre conchas gigantes,
casulos de vidas ceifadas
pelas ondas recorrentes, destemidas
Vejo seus olhos na estrela mais opaca.
Onde foi parar o seu brilho?
Desça, e venha bailar comigo.

Espuma densa,
areia grossa, molhada, pisada
pelos meus pés descalços
que teimam em deixar suas pegadas
Em vão.
Riu de mim, pois não sou Estrela...
Não sou Marilyn.




(Ilustração: Eros Kara - danceuse)







quarta-feira, 13 de março de 2013

SOBRE BARATAS E HOMENS, de Vera Paiva





Em férias do primeiro colegial, segui para Londres, para a casa de Fernando Gasparian, industrial exilado e melhor amigo do meu pai. Uma manhã, na entrada da escola de inglês, colegas me mostravam as manchetes de jornais europeus: “Você viu?” Era fevereiro de 1971. Na capa, a notícia da prisão de meus pais e minha irmã de 15 anos. Estava escrito: “Rubens Paiva foi preso, torturado e, dizem, jogado ao mar”. Escondiam há dias o que havia acontecido... para me proteger, ou sem saber o que falar. Passei semanas entre Londres e Paris, recebendo olhares de compaixão e a solidariedade de exilados, também sem saber o que dizer a uma menina, órfã da ditadura, talvez... Mais uma. Gilberto Gil me consolou na casa de Violeta Arraes. No Brasil, temiam que eu fosse presa no aeroporto. Só voltei para a família arrasada e para a escola no final de março. 

Recorro a outras cenas e perguntas, um recurso metodológico precioso na vida acadêmica, no calor da confirmação pela Comissão da Verdade de que Rubens Paiva foi torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi.

Passamos décadas sem saber como explicar a ausência do pai ou poder construir um luto. “Desaparecido”. Cruelmente, ficava posto em nossas mãos decidir se ele tinha morrido ou não, e quando. Foi só em 2011, quando o livro Segredo de Estado (de J. Tércio) detalhou como foi sua prisão e morte, com base em boa pesquisa jornalística e documentos agora validados pela Comissão da Verdade, e uma exposição itinerante sobre a história de Rubens Paiva foi inaugurada, que descobrimos - família e amigos vivos - como cada um viveu seu luto em anos diferentes.

Milhares de famílias tiveram e ainda têm essa experiência desde os anos de chumbo. Há muito deixamos de ser “um punhadinho de gente”, estereotipada como “subversiva”, “terrorista” ou “bandida”. Pessoas com ou sem partido, de todas as cores, etnias, religiões, 42 anos depois ainda têm seus parentes encarcerados arbitrariamente, torturados, mortos e desaparecidos “em resistência” à ação policial ou pela ação de bandidos na guerra civil que, de fato, só se generalizou quando humanos viraram baratas. Sim, baratas. 

Há dez anos, a convite de Serginho Groisman, fomos debater com o cel. Erasmo Dias, que, como o delegado Fleury, assombrou minha geração. Perguntei: “Como o senhor se sente, deputado eleito e usufruindo das nossas conquistas democráticas? Como avalia sua entrada na PUC jogando bombas em mulheres grávidas, com cavalos em sala de aula?” Lutávamos pelo direito a eleições livres, por democracia, pelo nosso direito de discordar. A resposta do coronel, vaiada pela jovem plateia do programa Altas Horas: “Eu era autoridade. Tinha que fazer valer o princípio de autoridade, não importa se eram meninas comunistas ou baratas, o que fosse, tinha que reprimir”. Imagens de época exibem Erasmão na TV com a prova da “subversão terrorista”: faixas de papel-manilha rosa pintadas à mão pedindo liberdades democráticas e justiça. “Era isso a subversão?”, espantam-se os que não viveram esse tempo. 

Nos anos seguintes, enquanto a democracia se reconstruía (1980-1990), adeptos da linha dura cultivaram cuidadosamente a noção de que “direitos humanos são para bandido”. Ou, como diria Paulo Maluf, “há humanos com direitos e humanos sem direitos”. 

Posições mais ou menos elaboradas de como produzir um mundo melhor sempre dividiram a humanidade. O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos define que as pessoas nascem livres e iguais em dignidade, com direitos inalienáveis que fundamentam a liberdade, a justiça e a paz no mundo. Parecia evidente a noção de dignidade no momento de sua proclamação por uma Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1948, horrorizada com a verdade e encarando a memória do nazifascismo e as cenas de Hiroshima e Nagasaki. Logo a Guerra Fria deixou clara a coexistência histórica, mais ou menos tensa, de diferentes noções de autonomia e dignidade associadas à humanidade. 

Seguiram-se outras perguntas: por que não mulheridade como sinônimo de humanidade? A escravidão continuada no racismo é liberdade? A destruição da natureza e o consumismo desenfreado são sinônimos de dignidade? 

Heterossexualidade é a única liberdade? Boaventura Santos, propondo o uso emancipador dos direitos humanos, alerta que a humanidade que nos iguala acumula diferentes tradições e noções de dignidade: as herdadas do judaísmo, do cristianismo e outras tradições culturais, como o darma, hindu, ou a umma, da tradição islâmica, que devemos considerar no diálogo democrático. 

Retomando as perguntas e revirando cenas: que noção de dignidade você gostaria de deixar como legado no Brasil para seus netos? Sintetizo, buscando o debate: um país onde se viva em paz, mais justo, onde todas as crianças possam crescer educadas e com saúde, brincar nas ruas como um dia foi possível, afirmar sua singularidade, debater livremente suas ideias, resolver pacificamente suas diferenças, ganhar e perder sustentando com dignidade a luta diária. 

Provoca-lhe revolta diária a guerra civil brasileira que mata mais que na Síria e no Afeganistão? Você repudia os bandidos que, em guerra e armados (pelo Estado e não) copiam décadas de violência de Estado impunes, prendem, torturam, matam e desaparecem com crianças, jovens, adultos e velhos? Trata-se de um genocídio, se analisamos os números de mortos entre jovens negros e entre os mais pobres, indígenas ou homossexuais (às vezes basta “parecer um”). Fica horrorizado/a quando lê sobre o assassinato brutal de uma mulher corajosa, juíza carioca que investigava policiais corruptos, assassinos, torturadores? Continuo: aceitaria que seus filhos/as e netos/as fossem amigos de um torturador? 

Como filha de Rubens e Eunice Paiva, respondi à jornalista na semana retrasada: se encontrasse os que torturaram minha família há 42 anos, gostaria que fossem julgados, com direito à defesa, como exige a Constituição de 1988, conhecida como a dos Direitos Humanos, essa que ajudamos a construir, pelos quais meu pai morreu e os quais minha mãe viveu defendendo. 

Direito de bandidos? Baratas? Defenderei que usufruam o que negaram a meu pai e três gerações de idealistas que, com suas noções diversas de liberdade e dignidade, lotaram prisões clandestinas ou oficiais, submetidos às leis de exceção e à ação extraoficial de um Estado ditatorial e torturador. 

Muitos militares e trabalhadores, empresários e fazendeiros, religiosos, muitos editores, jornalistas, professores e estudantes, médicos, juízes e advogados apoiaram abertamente a ditadura civil-militar. Muitos outros, não. Entre eles, gente nos quartéis. 

Civis gostaram bastante que parte dos militares, convencidos pela ideologia de segurança nacional em tempos de Guerra Fria e cheios de ambição pessoal pelo poder, representassem seus interesses (nacionais e internacionais) sem ter que mostrar a cara, sem ter que enfrentar o debate apaixonado e democrático de hoje. Outros se arrependeram rapidamente, porque não concordavam com a redução de pessoas a baratas, apesar de temerem pelos interesses que governo eleito e movimentos sociais da época expressavam - acesso ao trabalho digno e decente, educação e terra para todos e, como defendia meu pai desde a juventude e como deputado, que o petróleo achado em território brasileiro - tão disputado nos últimos anos em tempos de pré-sal - fosse usado em benefício dos brasileiros e não de um punhado de multinacionais. 

Ações ditatoriais foram “um mal necessário”, como justificou em 2010 o ministro Marco Aurélio Mello? Votos como o dele sustentaram no STF a Lei da Anistia vigente, contestada nas cortes internacionais por deixar torturadores impunes e manter vivo seu exemplo. Temia-se o quê, a memória comprometida com o “mal necessário”? Alemães convivem com a verdade dos museus preservados do Holocausto; americanos, com a memória de Hiroshima e Nagasaki; inúmeros países dão conta de julgamentos pós-comissões da verdade, que devolveram a países como Argentina, Chile, Uruguai e África do Sul o direito de ensinar às novas gerações que desse mal nunca deveríamos necessitar. Já no Brasil... A quem interessa perpetuar essa cultura da violência que divide o mundo entre homens e baratas? 

“O que você faria se encontrasse os torturadores de seu pai?” Essa é uma pergunta que pode ser feita a qualquer um no Brasil de hoje. Eles estão impunes e soltos, dos dois lados da guerra civil, reproduzindo essa cultura iniciada na escravidão e perpetuada nas ditaduras à qual sempre foi possível resistir: d. Paulo Evaristo Arns, conosco pelos direitos humanos, resistia ao setor de sua Igreja que sempre teme mudanças; os empresários José Mindlin e a família Ermírio de Moraes e o banqueiro Walter M. Salles se recusaram a contribuir para a caixinha de empresários que financiava os horrores dos centros de extermínio de opositores, como mostra o documentário de Litewski, Cidadão Boilesen. 

Funcionários da reitoria nos entregavam ao Dops e essa semana justificaram, inventaram, que “iam nos acompanhar”. Muitos mais foram solidários, como quando o futuro senador Romeu Tuma (lembram?) nos interrogava na Polícia Federal. Falando sobre o movimento estudantil que defendíamos e a democracia que construímos, o delegado Tuma perguntava: “Seu pai faz o quê? Onde ele está?” Diante de minha resposta de que ele saberia melhor, respondia: “Ora, está lá em Cuba com outra família...”. 

Essa mentira, humilhante e torturante, foi sepultada pela Comissão da Verdade. Espero que as novas gerações pensem com sua cabeça, enfrentem a memória histórica, recusem a mentira e teorias autoritárias do “mal necessário”. No mundo que desejo construir para meus netos, militares e policiais deixariam de proteger a cultura da tortura, e a violência não ficaria impune pelas mãos de operadores de direito; os que têm algo a dizer perderiam o medo, usariam o direito ao sigilo garantido pela Comissão da Memória e da Verdade para trazer a paz e fazer o bem. Repito o que minha geração, encurralada pelo Erasmão no Viaduto do Chá em maio de 1977, gritava pacificamente: “Hoje, consente quem cala”.



(OESP - 24.2.2013)




(Ilustração: Eugène Delacroix - liberty)









domingo, 10 de março de 2013

ADVICE TO A RECKLESS YOUTH/ CONSELHOS A UM JOVEM IMPRUDENTE, de Ben Jonson







What would I have you do? I’ll tell you, kinsman:
Learn to be wise, and practise how to thrive
That would I have you do: and not to spend
Your coin on every bubble that you fancy,
Or every foolish brain that humours you.
I would not have you to invade each place,
Nor thrust yourself on all societies,
Till men’s affections, or your own desert,
Should worthily invite you to your rank
He that is so respectless in his curses,
Oft sells his reputation at cheap market.
Nor would I you should melt away to yourself
In flashing bravery, lest, while you affect
To make a blaze of gen try to the world,
A little puff of scorn extinguish it,
And you be left like an unsavoury snuff,
Whose property is only to offend.
I’d ha’ you sober, and contain yourself;
Not that your sail be bigger than your boat;
But moderate your expenses now (at first)
As you may keep the same proportion still.
Nor stand so much on your gentility,
Which is an airy, an d mere borrow’d thing
From dead man’s dust and bones; and none of yours;
Except you make, or hold it.


Tradução de Cunha e Silva Filho:


O que em orientação me pedes? Dir-te-ei:
Aprende a seres prudente pelo esforço feito
Isso te peço com segurança: O teu dinheiro
Não gastes com qualquer coisa o que à imaginação te venha
Ou ouvidos dês a qualquer idiota que te importunar apareça
A todos os lugares não te aconselharia entrar
Nem a ingressares em todas as sociedades
A não ser que dos homens as afeições ou a tua própria solidão
Digno de teu nível social te façam.
Quem por seus atos não merece o respeito
A reputação por bem pouco amiúde vende.
Igualmente a dissipares não te aconselharia
Em efêmeras bravuras, a fim de que, enquanto aparentas
De fidalguia menor ao mundo alarde fazer,
Um leve sopro de escárnio não a dissipe
E a um rapé insosso te reduzas,
Cuja propriedade apenas para a ofensa seja.
Antes sóbrio e contido te quero
Não indo além do que suportas.
Porém, primeiro, em teus gastos não te excedas
Porquanto manter intacta a mesma proporção bem podes.
Demorar-te tanto em gentilezas tampouco deves,
As quais são algo superficiais e meros empréstimos oriundos
Do pó e dos ossos mortais, e não do real ser,
Salvo se as construíres ou de berço vierem.




(Ilustração: Casper David Friedrich - dois homens contemplando o luar)








quinta-feira, 7 de março de 2013

BLUES VERMELHO, de José Agripino de Paula








Depois de entrar na floresta, era muito tarde e os pavões já estavam empoleirados e quietos. Quando chegaram todos, o Exu maravilha estava morto. Quem esperava o renascimento estava ali; e quem não poderia ver tinha ficado na cidade. Era muito importante ter a boca e falar tudo o que Deus tinha dito. Eram as panteras rodando em círculo em torno do morto.


Transportavam o Espírito do Planeta Terra, que era um bebê numa almofada. No centro da almofada colorida, ia o bebê, dormindo de bruços. Era pra iluminar e desfazer os ódios. Muitos tinham ido ao mercado , e o bebê foi mostrado no centro do mercado entre os tomates, bananas e melancias. A energia que emanava do bebê dormindo era tão forte que as frutas do mercado amadureceram e tornaram-se mais doces. Muitas abelhas que estavam fora do gigantesco mercado entraram para pousar nos figos maduros. Depois, todos os negros e negras sorriam e olhavam um pro outro e falavam baixo pra não acordar o bebê. O Espírito do Planeta Terra dormindo tinha a pálpebra rosada fechando os olhos, a mão minúscula, semifechada, descansando perto da boca. Os figos do mercado se transformaram em passas, e a água dos potes se transformou em mel. As abelhas continuavam zumbindo e entrando no mercado entre a multidão de negros coloridos. E as abelhas já rodeavam o poço central do mercado onde a água tinha virado mel.



Foi no fim da festa que chegaram as mangas. Era um grande carregamento de mangas amarelas e grandes, e vinho de manga. Muita festa e todos dançando à noite e depois da noite. Era uma cerimônia de mangas sagradas. Uma fruta ali na frente, misturada nas ervas; e depois, foram aumentando de tamanho, as mangas. Era uma acumulação da energia do sol nas mangas. E depois vieram os negros, arrastando os cabritos pintados. Era um tempo que ainda não tinham chegado os ancestrais que precisavam vir urgentemente resolver tudo.



Foi num continente que não encontraram os ancestrais. Estavam faltando os ancestrais e depois o que fazer. Não tinham mais flechas e era muito tempo sem fazer nada. Que poderia ser aquela de virar o tempo? E depois era muito verdadeiro e quem poderia? Era muita gente falando no parque e discursando contra ou a favor, e quem poderia sentir um calor e depois ir ver se realmente era verdadeiro voltar, mas quem poderia encontrar o verdadeiro ancestral? Eram muitos ossos humanos debaixo da terra e aqueles espíritos vagando soltos na terra. Quem seria o ancestral? Poderia ser aquele muito distante. Que machado ele poderia usar e depois eram muitos aparelhos eletrônicos buscando os ancestrais. Era uma pesquisa que não poderia agradar aos velhos, e os velhos ficavam ali sentados debaixo da sombra do baobá, e o chefe velho estava encostado no tronco grosso da árvore. Todos os velhos de cajado e espantando as moscas com o rabo de cabrito. Eles levavam presas na orelha umas folhas: era para indicar que eles tinham vindo das folhas. Porque os ancestrais do cisne eram os dinossauros de pescoço longo que viviam nos lagos. O ancestral depois varou as nuvens e veio descendo. Atravessava um faixo de luz e descia imóvel. Era muito grande e não se via a cabeça; só a luz forte na nuca atravessando os cabelos. E brilhava muito e atravessava as nuvens.



O ancestral era incandescente e tinha a cor da brasa. Era muito forte, e quem olhava, via o fluxo e a direção da energia circulando em todo o corpo incandescente do ancestral.



Potes de mel foram servidos, e depois chegou aquela multidão perguntando pelo Exu maravilha. Estavam há muito tempo, ali debaixo das árvores, discutindo Deus. Com as suas guitarras e atabaques conversavam animados e o sol vermelho descia atrás das árvores. Eram muitos argumentos falando de Cristo e depois da morte de Cristo e naquele instante ninguém aceitava Deus. Muito difícil e veio um que queria jogar a semente de uma uva e disse que seria uma árvore. Nínguém poderia ter fé que seria uma árvore tão minúscula. Era vento, chuva e depois sol brilhando que adoçavam os frutos, e todos comiam tãmaras e não se movimentavam rápidos para não espantar as abelhas. Quando veio outro Exu principal é porque trazia alguma resposta, mas só tinha vindo comer as frutas. Mas já sabiam que precisava um lugar sagrado, depois todos os corpos deveriam ser sagrados, os espíritos sagrados, o instante da descarga da divindade sagrada e depois o tronco de ligação do mundo com o sagrado.



Era um caos em que todos os habitantes tinham que ser muito atentos; no fim, tinham que ser muito atentos no céu escuro que depois era gigantesco e quem poderia ouvir aquela quinta-essência do silêncio? porque precisava uma quantidade infinita de silêncio para gerar um átomo de hidrogênio... Foram chegando sábios nas caravanas. Enquanto os sábios chegavam de caravana, havia muitos animais na cidade: gatos, cachorros e cabritos, e o frio fazia com que os animais se aproximassem uns dos outros, se encolhiam para receber melhor o calor do corpo, e depois se ajustavam aos pés e aos corpos quentes e incandescentes dos Exus. Os Exus naquele tempo de frio ficavam incandescentes. Era um vento que trazia e ia empurrando os sábios nos camelos. Os sábios balançavam enrolados nas corcundas dos camelos. Os Exus da noite deitavam nas ruas e ficavam iluminando e rindo dos que passavam e viam aqueles corpos vermelhos como brasa faiscando.



Foi adorar o céu. Era muito fantástico o azul e poucas nuvens brancas passando. Gigantescas, lentas, brilhantes e brancas passavam as nuvens. Era muito superior, e só adorando aquele céu. Os bois na praia passeavam e depois a adoração do céu começou tudo de novo. E iam abrindo as nuvens e aparecia a luz do sol. Eram feixes de luz muito fortes saindo entre as nuvens. A adoração do céu continuou e depois veio a adoração do céu da noite. Foi quando as mulheres dos Exus acenderam as fogueiras e trouxeram as tigelas de mangas. Deixaram as tigelas e continuaram na adoração do céu, de noite.




(Revista Planeta nº 24, Agosto 1974)



(Ilustração: Paul Klee)



segunda-feira, 4 de março de 2013

TEMPORAIS, de Verlaine Pretto







Saboreei as maçãs do teu rosto
era agosto
e eras rosado

À sombra dos teus olhos
descansei viagens
deitei entre as ramagens
do teu sonho
e nem notei

serpenteei pela floresta úmida
do teu sexo
perdi no momento o nexo
e cascateei
sete quedas na enchente
rolei correntezas turvas em teu ser
nadei
embrenhei braços
para alcançar o embaço
da tua visão

Havia tempo que chovia
e o pomar aos poucos desaparecia
desaparecendo consigo
todas as macieiras e maçãs.


(Ilustração: Emil Nolde - withe tree)



sexta-feira, 1 de março de 2013

O ATOR, de Chico de Assis








(Dedicado a Lima Duarte)



— Então você tem curiosidade em saber como é o ator por dentro? Eu digo. O dentro está por fora o fora está por dentro. Entenderam? Trato simples para um ator. Jogar a vida de fora pra dentro e depois devolver a mesma vida botando de dentro pra fora. Entre uma coisa e outra, isso que alguns chamam de arte. Eu prefiro artimanha.

Mas quando o ator começa achar o seu personagem o mundo fica bem diverso. Vamos por passos: primeiro é preciso deixar-de-ser.

— Isso mesmo: deixar de ser, desaparecer, espiantar diante de si e dos outros. Tomar-se invisível. Trocando em miúdos: SER NADA. Porque, no nada, tudo cabe. Se você já está lotado de tantas emoções e idéias, dentro não cabe mais coisa alguma. É preciso abrir espaço, no nosso eu, para o-que-virá. Porque aquele personagem que virá não será nem maior nem menor do que você. Terá seu exato tamanho. Fácil não é? Alguém pode pensar que um ator veste um personagem como veste um terno.

— Não, não é assim. Isso não é a arte de representar.

Temos que ir aos poucos, com cautela, vendo através da mente ainda nublada, os primeiros tratos de sentimentos e gestos do personagem. Daí, começa a surgir uma linha mais forte e marcada, como uma espécie de foco que vamos buscando cada vez com maior nitidez. São formas que dançam a nossa frente, desordenadas, uma orgia de jeitos e facetas disparatadas. Um, que não nós, ficaria doido com o embrulho. Mas com este leite fomos criados, nós que somos atores.

É deste caos que vai nascer o personagem. Primeiro, bruto e mal acabado como um calunguinha de barro, daqueles de mestre Vitalino. Bruto, mal acabado, mas já muito belo. Depois, as formas mais delicadas vão se desenhando, suave e constantemente, durante o processo. Tudo montadinho, como um jogo vivo. Como pescar no rio da própria alma e encher o picuá de detalhes de vida; relances de emoções; tratos de angústia, visões de sonhos. Rostos que vimos uma vez … Meia vez… Vez alguma. Apenas produto da invenção de um ser. E assim vamos vestindo de vida esse prodígio. Este ser noviço, que nos tira a calma.

Dorme conosco, acorda conosco, come e bebe conosco e até ama e odeia juntinho com a gente: a pele ali, relando a pele. É um trambolho desajustado que acaba por se acomodar com a gente. Atrevido, nos mostra o próprio rosto para que não tenhamos dúvidas que ele é ele; e não nós.

— Ah, que caminho de aventura, seres tu mesmo e outra criatura. Ah, que loucura chorar e rir, por si mesmo e pelo estranho que lentamente tiraste da vida e do sonho, para a realidade da arte. Juro! Só o ator. Isso só o ator pode sentir.

E chega o momento em que tudo fica como que pronto. O personagem domina, vem à tona como um monstro abissal. Reinventando a realidade. E és tu quem o soltas e seguras, como um cavaleiro num rodeio mortal. Aí, já não vives para ti mesmo e sim para ele.

Acordas cedo e dormes tarde: para ele. Recebes aplausos, flores e cumprimentos; mas são para ele. Você, ator‚ é apenas o humano intermediário. Quando te encontram na rua, chamam pelo nome dele e és obrigado a responder. E, se és ator, eu te juro que é questão de tédio.

Às vezes, a gente pergunta:

— Mas por que não separam o criador da criatura?

O chato‚ que… às vezes até nós mesmos nos confundimos. Às vezes, eu não sei se sou EU mesmo, ou os personagens que crio. Eu fico tão ligado a ele que palavras minhas passam como dele e as dele como minhas. E chega um tempo que não sei mais onde termina a mão dele e começa meu próprio braço. E perco a noção. De qual coração são as batidas que sinto no peito? Do meu… do dele… não sei.

Aí, chega o tempo de quebrar o espelho. O personagem chega ao fim do seu tempo de vida. Começa a morrer e não podes morrer com ele. Tens que desfazer o já feito. Desinventar o ser e dividir o coração no peito. No começo‚ é como aprender a andar e falar de novo; como se tivessem te cortado pela metade. Não sabes mais viver uma vida só. Sua íntima essência de ator requer a duplicidade.

— Que monotonia, ser eu mesmo, noite e dia.

— Então eu fico confuso. Conto histórias, invento mentiras, minto realidades, misturo tudo e jogo no sonho e jogo o sonho na vida e a vida. Discuto futebol, vou às corridas de cavalo, converso com meus cães, bebo com os amigos. Mas fujo dos espelhos. Pelas noites fico rodeado de antigos fantasmas de personagens mortos que me assombram com lembranças. Tantas vidas que viveram, tantas mais que viver. Então finjo que estou feliz. Engano que estou triste. Mas, na verdade, estou só incompleto. É isso: meia vida e meia morte.

— Mas, quando se é ator, a vida segue de outro jeito. Cai na tua mão outro papel. Passas os olhos e alguma coisa te fisga como um anzol. Tentas fugir arrastando a linha, mas é tarde. Estás novamente pescado.

— Então eu te digo que o primeiro passo é deixar-de-ser. Depois, deixar bater baixinho dentro de teu peito o coração daquele personagem que lentamente se forma e te deforma.

— Vocês querem saber o que é preciso para ser ator?

Eu digo: são olhos que chorem lágrimas duplas. Às vezes um olho que ri enquanto o outro chora. Olhos que olhem a um tempo para fora e para dentro. É preciso a boca treinada para separar o sabor da tua lágrima do gosto da lágrima criada. Mas, principalmente‚ é preciso manter a alma ensolarada e ampla, para ser um DEUS dentro de si. Para poder jorrar para fora com luz, angústia e talento, com toda a voz, o comando:

FAÇA-SE O HOMEM!


(Ilustração: Picasso - the actor)