domingo, 21 de abril de 2013

ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO, de João Cabral de Mello Neto










- Essa cova em que estás,
   com palmos medida,
   é a conta menor
   que tiraste em vida.
- É de bom tamanho,
   nem largo nem fundo,
   é parte que te cabe
   deste latifúndio.
- Não é cova grande,
   é cova medida,
   é a terra que queria
   ver dividida.
- É uma cova grande
   para o teu pouco defunto,
   mas estarás mais ancho
   que estavas no mundo.
-  É uma cova grande
   para teu defunto parco,
   porém mais que no mundo
   te sentirás largo.
-  É uma cova grande
    para tua carne pouca,
    mas a terra dada
    não se abre a boca.

- Viverás, e para sempre,
  na terra que aqui aforas:
  e terás enfim tua roça.
- Aí ficarás para sempre,
  livre do sol e da chuva,
  criando tuas saúvas.
- Agora trabalharás
  só para ti, não a meias,
  como antes em terra alheia.
- Trabalharás uma terra
   da qual, além de senhor,
    serás homem de eito e trator.
- Trabalhando nessa terra,
   tu sozinho tudo empreitas:
   serás semente, adubo, colheita.
- Trabalharás numa terra
  que também te abriga e veste:
  embora com o brim do Nordeste.

- Será de terra
   tua derradeira camisa:
   te veste, como nunca em vida.
-  Será de terra 
   e tua melhor camisa:
   te veste e ninguém cobiça.
-  Terás de terra
   completo agora o teu fato:
   e pela primeira vez, sapato.
- Como és homem,
   a terra te dará chapéu:
   fosses mulher, xale ou véu.
- Tua roupa melhor
   será de terra e não de fazenda:
   não se rasga nem se remenda.
- Tua roupa melhor
   e te ficará bem cingida:
   como roupa feita à medida.

-  Esse chão te é bem conhecido
   (bebeu teu suor vendido).
-  Esse chão te é bem conhecido
   (bebeu o moço antigo).
-  Esse chão te é bem conhecido
   (bebeu tua força de marido).
-  Desse chão és bem conhecido
   (através de parentes e amigo).
-  Desse chão és bem conhecido
   (vive com tua mulher, teus filhos).
-  Desse chão és bem conhecido
   (te espera de recém-nascido).

-  Não tens mais força contigo:
   deixa-te semear ao comprido.
-  Já não levas semente viva:
   teu corpo é a própria maniva.
-  Não levas rebolo de cana:
   és o rebolo, e não a caiana.
-  Não levas semente na mão:
   és agora o próprio grão.
-  Já não tens força na perna:
   deixa-te semear na coveta.
-  Já não tens força na mão:
   deixa-te semear no leirão.

-  Dentro da rede não vinha nada,
   só tua espiga debulhada.
-  Dentro da rede vinha tudo,
   só tua espiga no sabugo.
-  Dentro da rede coisa vasqueira,
   só a maçaroca banguela.
-  Dentro da rede coisa pouca,
   tua vida que deu sem soca.

-  Na mão direita um rosário,
  milho negro e ressecado.
-  Na mão direita somente
   o rosário, seca semente.
-  Na mão direita, de cinza,
   o rosário, semente maninha.
-  Na mão direita o rosário,
   semente inerte e sem salto.

-  Despido vieste no caixão,
   despido também se enterra o grão.
-  De tanto te despiu a privação
   que escapou de teu peito a viração.
-  Tanta coisa despiste em vida
   que fugiu de teu peito a brisa.

- E agora, se abre o chão e te abriga,
   lençol que não tiveste em vida.
-  Se abre o chão e te fecha,
   dando-te agora cama e coberta.
-  Se abre o chão e te envolve,
   como mulher com quem se dorme.



(Morte e Vida Severina)



(Ilustração: Abelardo da Hora - enterro de camponês, 1967)







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