segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O TRONO VAZIO DE DEUS, de Jack Kerouac







George Shearing, o grande pianista de jazz, Dean falou, era exatamente como Rollo Greb. Dean e eu fomos assistir a Shearing no Birdland no meio deste fim de semana longo e louco. O lugar estava às moscas, éramos o primeiros fregueses, às dez da noite. Shearing apareceu, cego, com alguém o conduzindo pela mão até o piano. Era um inglês distinto e bem-apessoado, com o colarinho branco duro, levemente rechonchudo, loiro, envolto por uma suave brisa noturna de verão inglês que se tornou evidente no primeiro número suave e murmurante que ele executou, enquanto o baixista se curvava reverencialmente para ele marcando o ritmo. Denzil Best, o baterista, permanecia sentado e imóvel, exceto pelos pulsos batendo as vassouras. E Shearing deu início ao embalo; um sorriso aflorava de seu rosto extasiado; ele começou a suingar no banquinho do piano, para frente e para trás, de início lentamente até que o ritmo esquentou e ele começou a balançar mais rápido, seu pé esquerdo marcando o ritmo de cada batida, seu pescoço começou a acompanhar tortuosamente, ele baixava o rosto até as teclas, jogava o cabelo para trás, seu penteado se desmanchou, e ele começou a suar. A música esquentou. O baixista se curvava surrando as cordas, mais e mais rápido, quer dizer, parecia ir cada vez mais rápido, só isso. Shearing começou a tocar seus acordes; eles ressoavam a cântaros para fora de seu piano em tons incrivelmente suntuosos. Você chegava a pensar que o homem não conseguiria alinhá-los. Eles deixavam o som rolar, como ondas do mar. A rapaziada gritava "Vai" para ele. Dean estava todo suado, o suor escorria pela sua gola. "Aí está ele! Ele é esse aí! O Pai de Todos! Shearing é o Pai de Todos! Só é! Sim, é ele!" E Shearing já percebera o louco às suas costas, podia ouvir cada uma das exclamações e sussurros de Dean, não podia vê-lo, mas podia senti-lo. "É isso aí!", disse Dean. "Legal!" Shearing sorriu; ele balançava. Shearing levantou-se do piano, suando em bicas; esses eram seus grandes dias de 1949, antes de ele ficar frio e comercial. Quando ele se foi, Dean apontou para o banco desocupado do piano. "O trono vazio de Deus", disse. Sobre o piano repousava um trumpete; sua sombra dourada provocava um estranho reflexo na direção da caravana do deserto pintada na parede, atrás da bateria. Deus se fora, restava o silêncio de sua retirada. Era uma noite chuvosa. Era o mito da noite chuvosa. Dean estava abobalhado e reverente. Essa loucura não iria conduzir a lugar algum. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo, e de repente percebi que era apenas a erva que estávamos fumando; Dean tinha comprado um pouco em Nova York. Ela me fazia pensar que tudo estava prestes a acontecer - aquele momento em que você sabe tudo e tudo fica decidido, para a eternidade.



(On the road - Pé na estrada, tradução de Eduardo Bueno)





(Ilustração: Jack Vettriano)















quinta-feira, 25 de outubro de 2012

EU VOLTAREI, de Cora Coralina







Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho,
servidor do próximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.
Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvorede Roseta.
Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando suas portas,
teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.
Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente
ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar.
E eu morrerei tranquilamente dentro de um campo de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei…
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.
Eu voltarei…


(Ilustração: Ada Breedveld)


terça-feira, 23 de outubro de 2012

BALANÇO E PERSPECTIVA DA ARTE, de Benedito Nunes








Abstração é desumanização? 

O fenômeno da abstração parece constituir o sentido da evolução da cultura artística nos últimos cinquenta anos. Percebeu-o Piet Mondrian (1872-1944), que podemos considerar como um dos artistas mais representativos do mundo contemporâneo no setor das artes plásticas, ao escrever em um de seus artigos que a linha evolutiva do que ele chamava a cultura da forma fazia-se tendendo para a "abstração maior do aspecto natural da realidade". A decomposição da realidade, iniciada pelo cubismo, tornou-se em abstração dos objetos exteriores, cujos traços essenciais, selecionados pelo pintor, ordenam-se segundo as leis da composição no espaço da tela. Abstrair significa selecionar, reter determinados aspectos; eliminando-se outros. O que chamamos abstração, na pintura que cortou os últimos vínculos com a figura natural dos objetos, para estabelecer novas relações pictóricas entre entidades livremente criadas - que nascem da mobilização das cores, como os poemas de Mallarmé da mobilização das palavras - nada de fato abstrai, a menos que se queira dizer que ela, afirmando-se como existência separada do mundo, abstrai-se da realidade.

O artista abstrato só tem interesse pelo mundo movediço das formas que faz nascer, pela gestação de ritmos, de modulações cromáticas, ou, como dizia Max Bill, de campos de energia constituídos com a ajuda da cor. Ele se esquece de si mesmo, elimina a sua presença como homem, no quadro, entregue a uma tarefa quase impessoal, que exige a depuração dos seus próprios sentimentos, para concentrar-se no processo de gênese de formas e objetos. O humano teria sido, pois, expulso dessa pintura exigente, que se transformou num campo de operações com a matéria pictórica e onde, para repetirmos Kandinsky (1866-1944), um dos pais do abstracionismo, "um ponto no quadro diz amiúde mais do que um rosto humano". Mondrian falava do ângulo reto, relação constante, essencial à nova linguagem prática que ele fixou, como elemento da verdadeira realidade que se extremou em captar, praticando um ascetismo da fantasia e dos sentimentos pessoais. A objetividade conquistada por ele tem algo de renúncia e despojamento, de nudez e pureza sobranceira, sem vibração humana. A expressão dos sentimentos não mais preocuparia o artista, que unicamente busca a expressão plástica, nova realidade descoberta ou criada, que apenas significa a sua própria existência que é símbolo de si mesma. Esse interesse pela expressão plástica, que seria desinteresse pelo humano, marca a pintura abstrata, na qual, como observa Lefebvre, o expressivo perde a sua inesgotabilidade e o objeto estético a sua transcendência. Tal perda, no entanto, é compensada por uma maior liberdade de criação, que se exerce obedecendo às exigências formais do impulso artístico, e que só termina com o surgimento da obra, como objeto de contemplação estética. O pintor e o escultor multiplicam as possibilidades de plasmação demiúrgica: o primeiro constrói harmonias, experimenta variações tonais, descobre ritmos, inventa uma vida aparente de contrastes que se polarizam, de tensões que fluem, de formas que vivem agitadas por um dinamismo interior; o segundo explora os mais diversos materiais, exploração interna que não os submete a uma finalidade exterior, utilizando-os às vezes para dotá-Ios de uma presença substancial, reveladora de qualidades sensíveis - o peso, a solidez, a dureza que, como as relações harmoniosas e contrastantes das cores e linhas na pintura, dimensionam um universo estético livremente  conquistado. Essa liberdade que satisfaz o artista, e que o imuniza de compromissos estranhos à sua criação, afasta-o do grande público. Cava-se entre ele e o público "um abismo que nenhuma boa vontade é capaz de preencher". (Worringer, Problemática da arte contemporânea, Editorial Nueva Vision, p. 12.) Para quem produziriam atualmente o pintor e o escultor? Worringer responde que não é certamente para o público comum, o qual, ainda preso aos hábitos mentais decorrentes da cultura renascentista, olha o quadro para ver algo representado, porque entende que as cores e as formas só podem ser utilizadas como um meio de representação. Valéry dizia, a propósito de Leonardo da Vinci, que um quadro é sempre julgado na mesma atitude com que apreciamos a realidade. A pintura contemporânea exige uma atitude diferente, que implica num processo de educação artística, talvez impossível numa época de domínio da cultura de massa.

O pintor e o escultor estariam produzindo para um público de artistas. Mas, como esse público não existe, pois os artistas não são o que propriamente se chama público, Worringer, perplexo, aceita o divórcio que se estabeleceu entre a obra de arte e os seus possíveis consumidores, não sem perguntar, porém, se as artes plásticas ainda são "formas expressivas que respondem de imediato a nossos anelos expressivos e a nossas necessidades expressivas".


A perda da aura


Um crítico francês do século passado, Paul de Saint-Victor, exclamou, certa vez, que os deuses haviam abandonado a pintura moderna. Essa exclamação transformou-se numa verdade para Malraux. No seu  Museu imaginário da escultura mundial, Malraux acompanha o processo de dessacralização
da Arte, ocorrido a partir do Renascimento, quando ela começou a deixar de ser, como Hegel suspeitou, um instrumento do homem na sua eterna busca da divindade. Perdendo o contato com o numinoso, ela conquistou autonomia, e de representação do sagrado que era, tornou-se sagrada. O culto votado à imagem dos deuses transferiu-se para o culto da Beleza, último refúgio das ligações originárias da arte com a religião. A sedução do objeto estético, o
desinteresse do Belo, o seu caráter contemplativo, proviriam dessa co-naturalidade inicial entre o fenômeno artístico e o fenômeno religioso. Não nos interessa a discussão da legitimidade dessa tese. O certo, porém, é que o objeto estético  - templo,  monumento ou quadro - possui,  para quem sabe contemplá-lo, uma inesgotabilidade, uma estranha presença, palpável e fugidia, próxima e distante, que se impõe a cada ato de contemplação dirigido para o objeto estético, singular e único, que guarda uma essência só dele possuída e que só nele pode ser captada.

É a aura, assim denominada por Walter Benjamin ("L'oeuvre d'art au temps de ses techniques de reproduction", in Oeuvres choisies, Julliard), essa espécie de transcendência que assinala a presença única e singular das obras de arte. Uma das mais importantes transformações a que estamos assistindo hoje, em decorrência dos meios técnicos de reprodução de imagens  - fotografia, cinema, televisão  -, é, segundo Walter Benjamin, a perda da aura das obras de arte, que, reproduzidas, divulgadas e vulgarizadas, para satisfazer  às necessidades da cultura de massa, multiplicam-se em grande número, tornando-se familiares  e banais. O resultado é o desgaste, pela multiplicação daquilo que é singular e irrepetível, da  presença que constitui a autenticidade da obra de arte.  Concomitantemente, os meios de reprodução, que causam a perda da aura, condicionam uma nova atitude em relação à Arte, que não é mais a contemplativa solicitada pelas obras artísticas, cuja singularidade as técnicas de reprodução de imagens vieram conturbar, e sim a atitude participante, condicionada sobretudo pela ação do Cinema. Do Cinema, cuja natureza artística tanto se discute, da influência contínua do espetáculo cinematográfico, resultariam novas condições psicológicas, de ordem emocional, incompatíveis com a apreensão contemplativa exigida pela arte tradicional.A cultura de massa é espetacular: assenta no espetáculo, requer o interessante, o raro, e são estes que, como nos faz ver Lefebvre, em sua arguta análise das condições do espírito moderno, vão, aos poucos, tomando o lugar do Belo. Os espetáculos que se apoiam nos meios técnicos de reprodução da imagem, tais como os proporcionados pelo cinema e pela televisão, têm uma força persuasiva que os da Antiguidade e do Renascimento jamais puderam alcançar. Com a transmissão de imagens curiosas e interessantes pelos meios audiovisuais, os mitos do nosso tempo se multiplicam, mas a linguagem simbólica, essencial à arte, estiola-se. Entre mitos ativos e símbolos que o passado nos legou, qual a alternativa do artista? Terá ele, teremos nós, consciência de que talvez estejamos engajados em algo que já não é mais arte; mas o que será então e qual o seu nome? (Henri Lefebvre, Introduction à Ia modernité, Les Éditions de Minuit, p. 272.)
  

O  paradoxo de Ortega 


Em seu ensaio Desumanização da arte, onde estuda as mudanças profundas que a arte experimenta em nossos dias, Ortega y Gasset propõe este paradoxo:
a arte atual é aquela que não existe. Com essa frase contundente, que é mais do que um simples jogo de palavras, o pensador espanhol chama atenção para o fato de que as manifestações artísticas contemporâneas estão desligadas do passado. O corte que se verificou entre elas e as tradições artísticas, que se desenvolveram e consolidaram até meados do século XIX, foi demasiadamente brusco. Desfez-se, realmente, a conexão com o passado, que outrora garantia à arte um curso histórico equilibrado, o qual absorvia organicamente as mudanças de estilo, harmonizando o antigo com o novo, as invenções com as convenções, a inovação com a tradição. A história da arte não oferecia o espetáculo de uma sucessão de crises, e passava-se como a história de intercâmbios sucessivos, de experiências que, feitas em diferentes momentos, complementando-se pelo que tinham de diferente, ligavam-se entre si.Cortadas as ligações com o passado, a arte só de sua atualidade dispõe.

É como se ela estivesse nascendo, para viver o instante precário e tumultuoso de gestação. Nesse sentido de uma nova existência que se afirma por si mesma, atualizando potencialidades pertencentes a esta época, e que com ela estão nascendo e se manifestando numa profusão desnorteante  -  na qual procuramos ver claro, sem muitas vezes consegui-lo -,  é que a arte contemporânea não existe. Ela ainda não é uma realidade, mas um vir-a-ser, célere,tumultuoso, dramático. É com razão que Ortega observa que o esforço artístico em nossos dias se processa com ritmo de laboratório, de trabalho experimental, o que explicaria o fato de que hoje "se produzem mais teorias e programas do que obras". (Ortega y Gasset, "La deshumanizacion del arte", in
Obras, Espasa-Calpe.)

Esse fato importante não é o único significativo num balanço da situação da arte no presente. Dois outros, que podem ser associados num segundo paradoxo, merecem referência. O interesse pela arte alarga-se e redobra de intensidade paralelamente à destruição da estética. De um lado, assistimos precisamente àquele fenômeno, que intrigou Nietzsche, da receptividade da nossa época a todos os estilos do passado, que agora confluem, que se acumulam em torno de nós, despertando o nosso interesse histórico ou a nossa apreciação estética, e às vezes apenas satisfazendo um certo refinamento versátil do gosto - que já se tornou hábito mental nas camadas aristocratizantes, para fugirem à banalidade e à estandardização dos produtos industriais. O certo é que, ao fato histórico da emancipação da obra de arte, que já vinha se processando desde o Renascimento, seguiu-se, desde os meados do século XIX, na atmosfera espiritual do romantismo, a consciência da autonomia dos valores estéticos, consciência que se impõe no presente e que pode,facilmente, conduzir-nos ao esteticismo.

A falta de um estilo característico, orgânico, que constitui para muitos a grave deficiência do presente, o sinal inequívoco da incapacidade da civilização para possuir uma arte autêntica (quando isso é, na verdade, como bem o compreendeu Tomás Maldonado, o reflexo das contradições sociais que dividem o nosso mundo), a falta de um estilo, dizíamos, é compensada pela possibilidade, hoje tornada concreta, num grau jamais alcançado em anteriores períodos da história, da fruição puramente estética das obras de arte. A experiência estética, que pôde libertar-se dos seus condicionamentos morais e religiosos, e que, segundo Mikel Dufrenne, permite que nos situemos diante das obras de arte, convertendo-as em objetos estéticos, é um dado fundamental para compreendermos o que se passa no terreno artístico, principalmente quando, sob o impulso das novas correntes e das novas criações, a reflexão filosófica, pondo a nu os pressupostos históricos da estética tradicional, tende a reformular as bases em que esta se apoia.


A destruição da Estética


Esse desvendamento dos pressupostos históricos da Estética, por analogia com a crítica existencial,reveladora dos pressupostos históricos da metafísica e da ontologia tradicionais, equivale, para aproveitarmos a terminologia de Heidegger, a uma destruição filosófica. É o próprio Heidegger quem, após ter realizado, em Ser e tempo, a destruição da metafísica, mostrando que, através dela, herdamos uma interpretação histórica do ser, ensaia, em a Origem da obra de arte (conferência pronunciada em 1936), uma destruição da estética-ciência, igualmente comprometida com determinada interpretação do Belo e da obra de arte.

Vimos, na parte deste trabalho dedicada aos conceitos introdutórios, que o conceito do Belo, tal como se apresentou na Antiguidade, trazia o selo da interpretação platônica do Ser, implicando conotações éticas, espirituais e metafísicas, que dificilmente podemos abstrair. Outros conceitos, em curso no pensamento estético, possuem uma dimensão ontológica iniludível, na medida em que se relacionam, como sugerimos a respeito da noção de mimese,
a uma determinada compreensão do real, o que também sucedeu com a ideia de beleza natural, vigente a partir do Renascimento. Suspendendo a vigência de tais conceitos estéticos, nos quais se estampa uma outra experiência da realidade que não a nossa, teremos que, defrontando-nos com as manifestações artísticas que presenciamos, aceitar a contingência de buscar nelas mesmas as categorias estéticas que reclamam, tão profundas e radicais foram as transformações causadas pela revolução industrial - que não modificou apenas o estado das relações sociais, afetando, igualmente, a nossa experiência e o nosso senso da realidade. Novos projetos humanos, e com eles uma diferente concepção do Ser, vieram à tona por intermédio da atividade artística. O caráter problemático que essa atividade assume faz parte da situação atual do homem e de suas contingências. Cumpre à Estética não recuar diante desse problematismo e considerá-lo no pórtico de investigações que apenas se iniciam.

Um dos ensaios mais promissores no sentido de uma investigação radical da obra de arte, que não abstrai o seu caráter problemático, e que é uma espécie de investigação das possibilidades da Estética em nosso tempo, é a  Estética de Max Bense. Nessa obra o professor Max Bense concebe o Belo como aquela categoria do ser estético, que é a co-realidade. Coloca, assim, a obra de arte numa dimensão ontológica.Trata-se de um passo realmente importante na atualização da estética, uma vez que, nessa obra, o autor vale-se das principais generalizações filosóficas dos últimos anos – a fenomenologia de Husserl, a analítica existencial de Heidegger, a teoria dos signos de William Morris, a filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein - para delinear investigações que abrangem panoramicamente os aspectos comuns de maior relevo entre artes plásticas e literatura, as incidências da lógica com a estética e da filosofia com a linguagem. A tentativa de integração de todos esses setores, que costumamos examinar em separado, com a existência humana, o tratamento existencial da obra de arte e da literatura - enfocada como experiência do ser através de signos plásticos e linguísticos  -, enfim, a compreensão do significado filosófico inerente à imitação e à abstração, mostra-nos, embora os resultados alcançados sejam fragmentários, em que direção a estética deve orientar-se para responder ao desafio dos atuais problemas artísticos.

O que se pinta, o que se escreve, o que se compõe hoje em dia, mostra· se, em primeiro lugar, como possibilidade de ser e só depois como qualidade estética. (Max Bense, Estética;  Considerações metafísicas sobre o belo, Editorial Nueva Visión, p. 149.)

O problematismo da arte contemporânea é, portanto, radical. Em cada obra de arte que se produz está em jogo o destino da arte; em cada uma delas o artista arrisca-se a matá-la ou a fazê-la existir.



(Introdução à Filosofia da Arte)



(Ilustração: Mondrian Piet - composition with oval in color planes)


sábado, 20 de outubro de 2012

A TERCEIRA MARGEM (Tributo a Guimarães Rosa), de Jô Drumond







Rio abaixo, rio acima

Lá se vai o canoeiro

Margeando a solidão



Pelos meandros do rio

Pelos meandros da alma

Segue viagem sem rumo



Rio abaixo, rio acima

Lá se vai o canoeiro

Margeando a imensidão



Remando contra o destino

Busca o sentido da vida

Perde o sentido de tudo



Rio abaixo, rio acima

Lá se vai o canoeiro

Margeando a escuridão



Ao cortar o espelho d' água

Perde-se em estilhaços

no tempo e no espaço



Rio abaixo, rio acima

Lá se foi...





(Ilustração: Edivaldo Barbosa - rede lotada de lambaris)



quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A AMBIÇÃO DE BARTELEBOOTH, de Georges Perec








Imaginemos uma pessoa cuja fortuna seja comparável apenas à indiferença por tudo quanto a fortuna em geral propicia, e cujo desejo fosse, de maneira muito mais arrogante, apreender, descrever, esgotar não a totalidade do mundo - projeto cujo simples enunciado já acarretaria sua ruína - mas determinado fragmento deste; diante da inextricável incoerência do mundo, tratar-se-ia então de cumprir até o fim um programa, restrito, sem dúvida, mas inteiro, intacto, irredutível.


Em outros termos, Bartelebooth resolvera um dia organizar toda a sua vida em torno de um projeto único, cuja necessidade arbitrária não teria outro fim a não ser ela mesma.



Essa ideia surgiu quando tinha vinte anos. A princípio era uma ideia vaga, uma pergunta que nascia - que fazer? - uma resposta que se esboçava - nada. O dinheiro, o poder,  a arte, as mulheres, nada interessava a Bartelebooth. Nem a ciência, sem sequer o jogo. Quando muito, gravatas e cavalos ou, se se prefere, imprecisa mas palpitante sob essas ilustrações fúteis (embora alguns milhares de pessoas ordenem suas vidas eficazmente em torno de gravatas e um número ainda maior o façam em torno de cavalos de corrida), certa ideia de perfeição.



Desenvolveu-se nos meses, nos anos que se seguiram, articulando-se em torno de três princípios distintos:




O primeiro foi de ordem moral: não se trataria de um feito, de um recorde, de um pico  a escalar, de uma profundidade a atingir. O que Bartelebooth faria não devia ser nem espetacular nem heroico; seria simplesmente, discretamente, a realização de um projeto, difícil, é verdade, mas nada irrealizável, controlado de um extremo ao outro, que, como recompensa, governaria, em todos os seus detalhes, a vida de quem a ele se consagrasse.




O segundo foi de ordem lógica: porque excluía qualquer recorrência ao acaso, a empresa faria o tempo e o espaço funcionar como coordenadas abstratas nas quais se viriam inscrever, com recorrência inelutável, os eventos idênticos que se produzissem inexoravelmente em seu próprio lugar, em sua data certa.




O terceiro, enfim, foi de ordem estética: sendo inútil, sua gratuidade constituindo a garantia única de seu rigor, o projeto destruiria a si próprio à medida que se concretizasse; sua perfeição seria circular: uma sucessão de eventos que, encadeando-se, se anulariam; partindo do nada, Bartelebooth retornaria ao nada, mediante transformações precisas de objetos finitos.




Dessa forma, organizou-se concretamente um programa que poderia, em termos sucintos, ser enunciado assim:



Durante dez anos, de 1925 a 1935, Bartelebooth se iniciaria na arte da aquarela.



Durante vinte anos, de 1935 a 1955, percorria o mundo, pintando, à razão de uma aquarela a cada quinze dias, quintas marinhas do mesmo formato (65 x 50, dito real), as quais representariam portos marítimos. Ao terminar cada uma das marinhas, ela seria enviada a um artista especializado (Gaspard Winckler), que a colaria sobre finíssima placa de madeira e a recortaria num puzzle de setecentas e cinquenta peças.



Durante vinte anos, de 1955 a 1975, Bartelebooth, de volta à França, reconstituiria, na mesma ordem, os puzzles assim preparados, à razão, novamente, de um a cada quinze dias. À medida que os puzzles fossem reorganizados, as marinhas seriam "retexturizadas", de modo que se pudesse descolá-las para os próprios locais onde - vinte anos antes - haviam sido pintadas e ali mergulhá-las numa solução detergente da qual saísse apenas uma folha de papel Whatman, intacta e virgem.




Nenhum traço, assim, haveria de restar dessa operação que, durante cinquenta anos, mobilizaria inteiramente o autor.






(A vida modo de usar, tradução de Ivo Barroso)



(Ilustração: Airton das Neves - dois barcos)






domingo, 14 de outubro de 2012

SEI OS TEUS SEIOS, de Alexandre O'Neill







Sei os teus seios.
Sei-os de cor.

Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.

Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.

Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!

Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!

Porque não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p'la manhã?

Quantas vezes
Interrogastes, ao espelho, os seios?

Tão tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja um do outro, toda a santa
Noite!

Quantos seios ficaram por amar?

Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!

Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!

Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em deseperadas, quarentonas lágrimas...

Seios fortes como os da Liberdade
-Delacroix-guiando o Povo.

Seios que vão à escola p'ra de lá saírem
Direitinhos p'ra casa...

Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes filhos alheios!

Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer...

O amor excessivo dum poeta:
"E hei-de mandar fazer um almanaque
da pele encadernado do teu seio"

Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!

Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.

Botas, botirrafas
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!

Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!

"Oculta, pois, oculta esses objectos
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos"

Raimundo Lúlio, a mulher casada
Que cortejastes, que perseguistes
Até entrares, a cavalo, p'la igreja
Onde fora rezar,
Mudou-te a vida quando te mostrou
("É isto que amas?")
De repente a podridão do seio.

Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios...

Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá...

Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou...

Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!

Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne.

Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser.



(Poesias Completas)

(Ilustração: Jean-Pierre Ceytaire)