terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A CELA MISTERIOSA, de Aluísio Azevedo





No ano de mil e setecentos e ... , Paris então muito governada pela Pompadour e um pouco por Luís XV, palpitava de entusiasmo com um escândalo original. Por um instante, a grande cidade libertina distraía-se dos seus desregramentos habituais e esquecia a ordem dos Aphrodites e dos Hermaphrodites, e esquecia as picantes palhaçadas de Taconnet.

Era o caso que o famoso pregador La Rose tinha, como todos os anos, de pregar o seu sermão da quinta-feira santa na capela real, e fora acometido por um formidável ataque de asma, justamente na véspera desse dia. Escreveu logo ao vigário-geral, seu amigo particular, dando-lhe parte do fato e pedindo-lhe que, sem perda de tempo, tratasse de descobrir alguém que o substituísse.

Ora, o caso era deveras apertado! Quem teria a coragem de ir, à última hora substituir La Rose no púlpito da capela real, num dos sermões mais importantes da quaresma?...

Substituir La Rose!... La Rose, "o segundo Bossuet", como lhe chamavam seus inúmeros admiradores! La Rose, o amimado pregador da corte, o protegido de Antoinette Poison, o querido tanto por parte dos Molinistas como por parte dos Jansenistas, o aclamado por todo o alto e baixo público de Paris! La Rose, o indispensável! La Rose, o insubstituível!

E era preciso que ele com efeito estivesse deveras doente, para faltar ao sermão de quinta-feira santa, porque La Rose prezava muito aos seus triunfos na tribuna sacra, e não esperdiçaria facilmente uma boa ocasião de orar perante o rei e toda sua corte de fidalgos e toda a sua corte de letrados.

Entretanto, sabia-se também que La Rose, desde que sentisse a menor alteração na voz, não seria capaz de falar em público, nem à mão de Deus Padre, porque era precisamente na maneira especial de jogar com a sua bela e sedutora voz, que consistia o grande segredo dos seus incomparáveis triunfos.

É inútil dizer que, por melhores esforços empregados, nenhum pregador se descobriu, bom ou mau, que quisesse ir tomar o lugar do querido mestre.

O rei aborreceu-se e chegou a franzir as sobrancelhas. Luís XV, se era folgazão, era também devoto. E se era devoto era também homem de gosto exigente; não compreendia uma quinta-feira santa sem La Rose. Além disso, tinha na véspera abusado da sua suntuosa adega, e a melhor água de Selters para as suas ressacas era ainda La Rose.

Que diabo! O caso era sério.

Empregaram-se os últimos recursos para descobrir alguém que, sem grande escândalo, fosse capaz de improvisar um sermão digno da real ressaca; ofereceram-se bonitas somas, fizeram-se as mais lindas promessas. O cabido inteiro agitou-se, remexeu-se, sorveu consecutivas pitadas, esfregou mil vezes o lenço encarnado no nariz, mas ninguém teve coragem para aceitar a espinhosa missão.

E, no entanto, o tempo fugia e era preciso tomar uma resolução.

O arcebispo, já desesperado, ia estender o braço para tomar ao acaso o primeiro dos seus sufragâneos, e ordenar-lhe que subisse ao púlpito e despejasse - com um milhão de raios! - um sermão qualquer, quando de improviso rasgou-se o reposteiro da sala, em que ele se achava entre uma negra nuvem de batinas, e viu-se surgir a veneranda figura de frei Ozéas, com as suas grandes barbas brancas e a sua enorme calva de profeta.

Encaminhou-se diretamente para o arcebispo e disse-lhe, depois das reverencias do estilo:

- Comprometo-me, se mo permitirem, a apresentar hoje no púlpito da capela real alguém que irá dignamente substituir o padre La Rose.

Fez-se em torno destas simples palavras um profundo silêncio de pasmo e de desabafo.

Bastava só, porém, a presença do frei Ozéas naquela sala do paço arcebispal para levantar a surpresa do cabido inteiro. Todos lhe conheciam a vida obscura e solitária, e todos sabiam que era muito e muito raro vê-lo fora do seu modesto convento a não ser para algum ato de caridade.

Frei Ozéas era um homem singularíssimo, como mais adiante apreciará o leitor. Havia vinte e tantos anos que em torno dele se formara de dia para dia a mais sólida reputação de virtude e santidade.

De quem disporia o singular frade para fazer substituir La Rose?...

E começou logo o sussurro dos comentários.

O arcebispo, entretanto, tomara-o avidamente pelo braço, e desaparecera com ele pela porta que conduzia ao interior do palácio.

Pouco depois, descia frei Ozéas as escadas do paço, metia-se no carro que o esperava à entrada do jardim, dizia ao cocheiro que tocasse depressa para o convento de S. Francisco de Paulo, e daí a meia hora, atravessava o longo pátio ladrilhado de pedra e subia a pesada escada do claustro, em que ele se havia condenado a viver para sempre em dura penitência.

Apesar do tremor dos seus setenta anos, venceu ligeiro os extensos corredores abobadados, galgou uma estreita escada que conduzia a um sombrio mirante e, tendo várias vezes volvido os olhos para trás, como se temesse ser acompanhado por alguém, chegou-se a uma pequena porta inteiriça e bateu três pancadas secas com as falanges dos seus dedos ossudos e pálidos.

A porta abriu-se sem ruído. Ele entrou e a porta fechou-se de novo, silenciosamente.

O lugar em que o venerando religioso acabava de penetrar era uma triste cela, sombria e espaçosa, com uma janela gradeada e fechada, e apenas frouxamente esclarecida por uma claraboia do teto. As paredes, nuas de alto a baixo, tinham uma cor sinistra de osso velho. Em uma delas havia um grande nicho com a imagem da Virgem da Conceição, quase de tamanho natural; a um dos cantos, uma negra estante toscamente feita, pejada de grossos alfarrábios amarelecidos pelo tempo; no centro, uma mesa de madeira escura com um breviário em cima, ao lado de uma candeia de azeite, um pedaço de pão duro e um cilício cru; junto à mesa, um banco de pau.

Ozéas fora recebido à porta por um mancebo de uns vinte anos, muito pálido, ainda imberbe, vestido com uma esfarrapada batina de seminarista.

Não havia mais ninguém na cela.

O mancebo beijou-lhe a mão. Ozéas abraçou-o e disse-lhe depois, tocando-lhe carinhosamente no ombro:

- Meu filho, vais hoje pela primeira vez atravessar as ruas de Paris e entrar na capela real.

- Para que, meu pai?

- Para pregar o sermão de quinta-feira santa.

- Eu? Mas o que vou dizer?...

- Vais dizer pura e simplesmente o que sabes e o que sentes a respeito da paixão de Jesus Cristo... Não te preocupes com a multidão que lá encontrares, não te preocupes com o que vires. Fecha-te contigo mesmo e fala como se conversasses com o teu anjo da guarda. Abre o teu coração, quando abrires os teus lábios, e deixa dele sair, imperturbável e cristalina, a tua alma de bem-aventurado.

- Bem, meu pai.

- Daqui a pouco virá a roupa com que tens de ir. Dentro de uma hora virei buscar-te.

- Estarei pronto e às suas ordens, meu pai.

- Reza a Nossa Senhora enquanto me esperas. Adeus.

- Sua benção, meu pai.

- Deus te abençoe.

E frei Ozéas tornou a sair, fechando-se de novo sobre ele a porta, silenciosamente.






(A Mortalha de Alzira)




(Ilustração: Giovanni Battista Tiepolo)



sábado, 25 de fevereiro de 2012

SONETO 228, de Luís de Góngora







Mientras por competir con tu cabello,
oro bruñido al sol relumbra en vano;
mientras con menosprecio en medio el llano
mira tu blanca frente el lilio bello;

mientras a cada labio, por cogello.
siguen más ojos que al clavel temprano;
y mientras triunfa con desdén lozano
del luciente cristal tu gentil cuello:

goza cuello, cabello, labio y frente,
antes que lo que fue en tu edad dorada
oro, lilio, clavel, cristal luciente,

no sólo en plata o víola troncada
se vuelva, mas tú y ello juntamente
en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada.



Tradução de Delson Tarlé:



Enquanto, a competir com teu cabelo,
o ouro brunido ao Sol reluz em vão
e, pálido de inveja, quedo ao chão,
perde-se a contemplar-se o lírio belo,

e o rubro de teus lábios deixa em zelo
mais olhos do que o cravo temporão,
e o colo altivo traz um ar loução
como o cristal luzente aspira tê-lo;

goza lábios, cabelo, colo albente,
antes que tudo, em tua idade alada
- ouro, lírio, cristal, cravo rubente -

não só se acabe em prata e flor crestada,
mas tu e a tua vida, juntamente,
em terra, em fumo, em pó, em sombra, em nada.



Trad. de Péricles Eugênio da Silva Ramos:



Ora que a competir com teu cabelo
ouro brunhido ao sol reluz em vão,
e com desprezo, no relvoso chão,
vê tua branca fronte o lírio belo;

ora que ao lábio teu, para colhê-lo,
se olha mais do que ao cravo temporão,
e ora que triunfa com desdém loução
teu colo de cristal, que luz com zelo;

colo, cabelo, fronte, lábio ardente
goza, enquanto o que foi na hora dourada
ouro, lírio, cristal, cravo luzente

não só em prata ou víola cortada
se torna, mas tu e isso juntamente
em terra, em fumo, em pó, em sombra, em nada.



(Ilustração: Lucien Freud)



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

POBRE MENINO!, deVisconde de Taunay






Em dia fresco e de chuva miúda, viajava eu na estrada de ferro Central. Vinha de S. Paulo para o Rio de Janeiro em trem que parecia, contra inveterados hábitos, dever chegar á hora regulamentar.


A locomotiva como que se aprazia a devorar o espaço – na frase consagrada – por tempo tão grato que dispensava calor, poeira e grandes atrasos, e o jornadear, calculado por tabela oficial de paradas certas, inflexíveis, sempre as mesmas, era relativamente agradável.



Na estação do Cruzeiro, onde desde largos anos – ia dizendo séculos – imperam o porte dominador, a alentada bengala, a enérgica gesticulação e as barbas medievais e enchumaçadas do major Novaes, entrou uma família, regressando de Caxambu.



Pai, mãe, bastante moços, esta ainda vistosa, bonita, um filho de 12 para 13 anos, visivelmente doente, duas criadas, uma branca, outra preta, e um molecote, vestido de pajem, muitas malinhas de mão, xales, cobertores, travesseiros, garrafas de leite e águas minerais, embrulhos com restos, sem dúvida, da matalotagem, comida à descida da serra.



Tudo aquilo às carreiras se arrumou nos bancos vazios ao lado e ao redor de mim.



Afinal, apitou a máquina e partiu o barulhento comboio.



Cansado de ler, esgotados os jornais de S. Paulo, parcos de novidades, e um tanto aborrecido com um romance de Charles Merouvel comprado no Garraux, que não me interessava, nem merecia interesse, pus a observar os recém-chegados.



No rosto de todos a inquietação, concentrada no menino que, apenas sentado, pedira para se deitar.



- Sinto-me tão fraco! Exclamou dolente. Não tenho mais forças!...



E com muita solicitude, criadas e molecote, auxiliando apressados os amos e obedecendo-lhes às indicações, arranjaram os meios de dar melhor cômodo ao doentinho, cujos pés iam além do banco e se contraíam de cada vez que passavam os empregados do trem.



Sim, doente, muito doente até. E tão simpático, tão meigo, uma expressão de tanta doçura na fisionomia, nos olhos bem rasgados, pestanudos, negros, cintilantes, mais do que o normal, uns olhos de sofrimento e febre!... Os lábios como que reviam sangue, de tão rubros; em compensação, as orelhas, muito grandes, desgraciosamente apartadas da cabeça, umas orelhas desmarcadas, como as do malogrado Napoleão IV, mostravam-se brancas, diáfanas, num grau de deplorável e significativo descoramento.



Impressionaram-me logo de princípio os modos e as observações do menino. A cada momento, sorria para os pais com imensa ternura repassada de melancolia, ainda que nessa contínua e comovedora carícia transparecesse a vontade de lhes incutir coragem e esperanças.



- Apesar de tudo - disse todo super-excitado - estou mais valente do que homem. Assim mesmo não posso ainda estar olhando pela janela. Que pena! Tinha tanto que ver! Apenas ficar bom havemos de viajar a valer, não é? Levarei os meus cadernos de estudos e lucrarei muito. Não deve haver melhor modo de aprender do que viajar. O livro vai sempre aberto diante dos olhos... E eu, que fazia outra idéia da Mantiqueira... mais sombria, mais cheia de buracões e pedras. Tão catita, que ela é!...



E buscando outra posição, gemeu surdamente.



- Sentes muita febre, boy? - Perguntou a mãe com angústia.



- Muita, não... já disse à mamãe, menos do que ontem; assim mesmo tenho cá dentro em fogo!... Mas que bonita a serra desde o túnel até ao Perequê!...



- Talvez a frialdade da água te tivesse feito mal, observou o pai; dois copos cheios...



- Que mal, papai? Nunca bebi com tanto gosto, nunca! Eram uns copinhos... parecia que aquela água devia curar-me afinal...



E como que em subdelírio:



- Que bonita a descida! Como o céu estava puro! Eu quisera poder, como um passarinho, atirar-me de cabeça para baixo, voando, voando, por cima de todas aquelas montanhas e dobras e matarias!



E o sol, como que brilhava, com um calor tão bom, de saúde; não como calor de febre!



- Lorena, não é, papai? Já em baixo, na várzea, uns pontinhos brancos. Quanto é boa a vida, a vida... a gente sentir-se valente, robusto... sem necessidade de tanto remédio amargo!



- Vamos pôr-lhe o termômetro? Propôs a mãe para o marido com uma lágrima a cair-lhe da pálpebra.



Recalcitrou um pouco o pobrezinho.



- Não, mamãe; sempre esta maçada! Ficar parado um tempão... e para quê, afinal? Esta febre não quer me deixar... bem feliz se puder ir vivendo com ela... me acostumando aos poucos.



Resignou-se, porém, com gracioso amuo e quedou-se imóvel e silencioso, com o bracinho esquerdo bem encostado ao peito.



E os olhos negros, pestanudos, cintilantes, giravam de um lado para outro, enquanto a ponta da língua, em continuo vaivém, molhava os lábios ressequidos e gretados pelo ardor da terrível consumação.



Cruzaram-se os seus olhares com os meus e tiveram como que um sorriso de simpatia e cordialidade, com uma pontinha de vexame por estar assim doente, aniquilado, naquela inferioridade da moléstia triunfadora, invicta.



Embora um tanto casmurro na viagem e nada propenso a entabular relações com adventícios companheiros de caminho, não me contive e, inclinando-me para o lado em que estava a mãe, perguntei-lhe, abaixando a voz:



- Desde muito enfermo este interessante menino?



Respondeu-me a senhora com verdadeiro açodamento de quem acha uma válvula de expansão a constante e incompressível sobressalto.



- Muito não... uns quarenta dias. Nem o senhor imagina como boy era forte e são... dormia como um chumbinho... bom apetite sempre, ávido de movimento... Boy não parava..., travesso como um cabritinho, muito bonzinho porém, sempre...



E boy isto e boy aquilo. Chamava-o assim desde criancinha. A madrinha, muito dada a leituras inglesas, lhe pusera essa apelido familiar...



- De que não gosto nada, interrompeu o menino com engraçada seriedade. Eu me chamo Alberto.



Mas a mãe continuava:



- Haviam feito, no mês anterior, um passeio fatal à chácara de uns amigos para os lados do Jardim Botânico, ele se agitara de mais com os camaradas numas correrias sem fim, se resfriara...



- Brincaram perto de uma vala aberta de pouco, explicou o pai... – à noite, perturbação de digestão, e desde aí uma febre tenaz, rebelde, que nada pudera atalhar. Tomara já quinino... um despropósito!... um horror!... Depois contínuas mudanças, Gávea, Engenho Novo, Cascadura, Barbacena, Caxambu, tudo sem resultado...



- Não há tal, contraditou o pequeno, já estive pior... É não desanimarmos. Olhem, façam tudo para não me deixarem morrer... Tenho tanto que aprender e estudar!... Que atraso este tempo todo em pura perda! Como o Cardoso e o Souza devem ter-se adiantado nas aulas!... Quando é que hei de pegá-los agora?...



- Não pensava noutra cousa, ia-me dizendo a mãe, enquanto as lágrimas, como que já por hábito, lhe corriam a fio. Tão boa criança, tão estimada de todos, estudioso... tanto estímulo! Uma ambição insaciável de saber... Muitas vezes se levantara ela da cama para apagar-lhe a vela e fazê-lo deitar-se... Ardendo em febre, pedia os livros, queria seguir as lições, ouvir os professores... Nunca se vira cousa igual... Tirara já bonitos prêmios... livros muito dourados, com gravuras...



- Já mamãe está falando de mim - interrompeu Alberto com ligeiro tom de repreensão. - Este senhor há de desculpar... é de toda a mãe. Não sou melhor do que tantos outros... - E o seu rosto ensombreceu-se. - Pelo contrario, valem mais do que eu, muito mais...



- Por quê, meu amiguinho? - Perguntei comovido.



- Oh! Eles têm saúde; eu nunca mais hei de tê-la, ainda que escape desta... Também, d’ora em diante saberei arredar-me sempre de valas abertas... Verdade é que me diverti tanto! - E recomeçava o subdelírio.



- Papai, não é tempo de tirar o termômetro? Está me incomodando. Além da febre e sede... esta caceteação!...



Era tempo.



-Quantos graus? Indagou a mãe com dolorosa sofreguidão. - 38º e 8, respondeu o pai. Hoje, bem melhor do que ontem, pois a esta hora Alberto tinha 39 e 2.



Via-se, porém, que encobrira a verdade, pois destoavam as aquietadoras palavras com o ar de desalento que simultaneamente se lhe estampava no rosto. Ao guardar o termômetro no estojo de metal, fez-me imperceptível sinal. Levantei-me e fingi que ia refrescar o rosto no cubículo ao lado, poeirento e sujo toilette do vagão.



Daí a pouco, chegava o homem.



- 39 e 8, foram as suas primeiras palavras, pontuadas de terror.



E, acabrunhado, pôs-me a contar o caso, banal, diário, tão comum, mas sempre pungitivo da sua imensa desgraça. Esse menino, a alegria da sua vida, a vida da sua mulher, ricos eles, sem mais objetivo algum na existência. Agora, aquela febre invencível, que zombara de tudo e lhes estava matando a adorada criança, debaixo dos olhos, dia por dia.



“Mudem de ares”, era o incessante conselho dos médicos; o recurso único que lhes restava. E não faziam outra cousa; de um lado para outro, semanas inteiras. Para onde mais ir? E os terrores em lugares distantes, ermos, sem recursos, sem para quem apelar, quando vinham acessos de estupenda violência!...



Ao tomar então nos braços o filho, parecia que o tirava de um braseiro... queimava... Como poderia por mais tempo resistir organismo tão delicado?... Que cruel expiação era essa? E expiação por quê? Afinal, nem ele, nem a mulher tinham culpas ou crimes a pagar? Por que os esmagava, tão dura, a mão de Deus? De que o acusava a justiça eterna?



Pouco se importara, a principio, com a tal febre, não pelas afirmações, sempre tranquilizadoras, dos muitos médicos consultados; a mestrança, portanto, graças a Deus, podia pagá-los generosamente; mesinhas tranquilizadoras, dos muitos médicos consultados; a mestrança, portanto, graças a Deus, podia pagá-los generosamente; mas afigurava-se-lhe impossível, fora de toda a ordem, lei e justiça, que a vida do seu Alberto pudesse perigar. Nem de leve lhe passara isso pela mente... nunca!...



E a custo lhe vinham as palavras... mas a morte a nada atende... a nada! É inexorável!



Prorrompendo então em soluço pranto, agarrou-se a mim, convulsivamente.



- Ah! meu filho, Alberto! Quanto é castigada a minha soberba! Está perdido... perdido!... E por quanto tempo, por quantos dias ainda o hei de possuir?



Sacudi-o com certa energia:



- Silêncio! Sua senhora pode ouvi-lo! Olhe, lave o rosto; esconda os sinais da sua comoção.



Naturalmente exagerava o perigo...



O desconsolado pai abanou a cabeça; mas obedeceu-me opresso e alquebrado.


(Ao Entardecer e Outros Contos)


(Ilustração: Loïc Allemand)


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O CORAÇÃO QUE BATE NESTE PEITO, de Luís Guimarães Júnior







O coração que bate neste peito,
E que bate por ti unicamente,
O coração, outrora independente,
Hoje humilde, cativo e satisfeito;


Quando eu cair, enfim, morto e desfeito,
Quando a hora soar lugubremente
Do repouso final, — tranquilo e crente
Irá sonhar no derradeiro leito.


E quando um dia fores comovida
— Branca visão que entre os sepulcros erra —
Visitar minha fúnebre guarida,


O coração, que todo em si te encerra,
Sentindo-te chegar, mulher querida,
Palpitará de amor dentro da terra.



(Ilustração: Frida Khalo - small nips)


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

MELANCIA – COCO VERDE, de João Simões Lopes Neto






- Vancê pare um bocadinho; componha os seus arreios, que a cincha está muito pra virilha. E vá pitando um cigarro enquanto eu dou dois dedos de prosa àquele andante… que me parece que estou conhecendo… e conheço mesmo!... É o índio Reduzo, que foi posteiro dos Costas, na estância do Ibicui.

- Vancê desculpe a demora: mas quando se encontra um conhecido do outro tempo - e então do tope deste! - a gente até sente uma frescura na alma!… Coitado, está meio acalcanhado… mas, bonzão, ainda! - Pois aquele cuerudo que vancê está vendo, teve grito d’armas!... Vou contar-lhe uma alarifagem em que ele andou metido, e que só depois se soube, pelo miúdo, e isso mesmo porque a própria gente do caso é que contava.

O Reduzo foi nascido e criado em casa dos Costas, ainda no tempo do velho, o Costa lunanco, um que foi alferes dos dragões do Rio Pardo. Este Costa lunanco era um pente-fino, que naquele tempo arranjou tirar para ele e para os filhos - miudagem, ainda - como quatro sesmarias de campo, sobre o lbicui, pegadas umas nas outras, e com umas divisas largas... como goela de gringo!...

O chiru criou-se junto com os meninos, e desde ninhar e armar urupucas, até botar as vacas, irem aos araçás e pegar mulitas, tudo faziam juntos. Quando eram já taluditos o velho começou a encostá-los no serviço, também sempre de companheiros; e assim foram aprendendo a campeirear, domando, capando... até saberem apartar boi gordo e tocar uma tropa.

Neste entrementes rebentou outra vez uma gangolina com os castelhanos.

Um dos moços, que era um quebra largado, nomeado por Costinha, esse, foi dos primeiros a se apresentarem ao comandante das armas, pra servir. E tais cantigas cantou ao velho Costa, que este deixou o Reduzo ir com ele, de companheiro e ordenança, porque o rapaz era cadete, com estrela, e tinha direito.

O chiru ficou todo ganjento; imagine vancê que colhera, daqueles dois aruás!...

Neste passo porém deu-se uma cousa em que o Costinha nem tinha pensado.
É rabo-de-saia, já se vê...

O cadete tinha uma paixão braba por uma moça lindaça - a sia Talapa, - filha dum tal Severo, também fazendeiro dali pertinho, obra de cinco léguas. O moço Costinha de vez em quando aparecia por lá, matava as saudades; fazia umas agachadas, e vinha-se embora trazendo nos olhos o encantamento dos olhos da namorada.

O velho Severo parece que não queria o casamento dos dois, nem por nada; teimava e berrava que ela havia de casar-se com o sobrinho dele, primo dela, um que tinha uma casa de negócio na Vila. Esse tal era um ilhéu, mui comedor de verduras, e que para montar a cavalo havia de ser em petiço e isso mesmo o petiço havia de ser podre de manso... e até maceta... e nambi... e porongudo!...

A moça chorava que se secava, quando caçoavam-na com o primo e o casório.
Era mesmo uma pena, lhe digo... casar uma brasileira mimosa com um pé-de-chumbo, como aquele desgraçado daquele ilhéu… só porque ele tinha um boliche em ponto grande!...

O caso é que o Costinha gostava da moça e a moça gostava dele: tem, é que não atavam nem desatavam... e o velho Severo puxava a pêra, torcendo as ventas...

O ilhéu às vezes vinha à estância do tio, em carretinha...; veja vancê como ele era ordinário, que nem se avexava de aparecer de carretinha, diante da moça!... E era só cama com lençóis de crivo, para o primo; fazia-se sopa de verdura para o meco; e até bacalhau aparecia, só pra ele!...

Que isto das nossas comidas, um churrasco escorrendo sangue e gordura e salmoura… uma tripa grossa assada nas brasas… uma cabeça de vaquilhona... uma paleta de ovelha; e mogango e canjica e coalhada... e uns beijus e umas manampanças... e um trago de cana e um chimarrão por cima… e para rebater tudo, umas tragadas dum baio, de naco bem cochado e forte... tudo isso, que é do bom e do melhor, para o ilhéu não valia nem um sabugo!... Tuuh! diabo!... Até me cuspo todo, quando me lembro daquele excomungado!...

- Vancê está se rindo e fazendo pouco?... E por que vancê não é daquele tempo… quando rompeu a independência lá na Corte do Rio de Janeiro… e depois tivemos que ir pra coxilha fazer a guerra dos Farrapos, com seu general Bento Gonçalves, que foi meu comandante, sim senhor, graças a Deus... e mais os outros torenas!...

Galego, naquele tempo, era gente, vancê creia! Estância, era dele; negócio, era dele; oficial, era só ele; era arrematante das sisas, ele; surgião, ele; padre-vigário, ele; e pra botar a milicada em cima dos continentistas… era ele!…

E cada presilha!...

Gente da terra não valia nada!...

- Que é que vancê está dizendo?... O que nós somos hoje a eles devemos? Qual! É verdade que uns inventaram plantação de trigo… isso enfim, era bom...; sempre era uma fartura; noutras casas plantavam e fiavam linho… também não era mau, isso; noutras cardavam lã... Algum mais vivaracho botava tenda e vendia mechiflarias ou prendas de ouro... Nalguns trocava-se uns quantos couros por um pão de açúcar, e pipote de cana por qualquer meia dúzia de vacas. E sempre corria alguma dobla, de salário, e algum cruzado pela peonada de ajuste.

Mas, como quera... eram mui entonados, os reinóis. Onde é mesmo que eu estava? Ah!... O Costinha e sia Talapa tinham juramento entre eles, de se casarem, ainda que ela saísse de casa na garupa do namorado, se o carrança do velho Severo não consentisse. Com o ilhéu é que nunca!

Pois foi por estas alturas que os castelhanos bandearam a fronteira e o Costinha assanhou-se.

Foi uma despedida de arrebentar a alma! Ele deixou-lhe de lembrança uma memória e ela deu-lhe um negalho de cabelo. E combinaram que pra qualquer recado ou carta ou aviso, ela teria o nome de Melancia e ele de Coco verde. Só eles, ninguém mais saberia; que era para despistar algum xereta.

E como a despedida foi de noite, e ela veio acompanhá-lo até a porta... até a ramada, onde ele montou a cavalo… e como ventava forte, e a vela que um crioulo trazia apagou-se… parece que houve a roubada de uma boquinha... porque ele tocou a trotezito, calado, e ela, ficou como entecada, no mesmo lugar, calada... Quem não soubesse jurava que se despediam enfunados, quando a verdade é que se despediam chorando nos olhos mas tocando música no coração... por causa daquela bicota arreglada no escuro, mas que valeu como um clarão!... Ninguém viu… só o Reduzo.

Nessa madrugada o cadete marchou.

O velho Severo deixou passar um mês ou mais; quando teve notícia de que as forças andavam bem longe, e trançadas com o inimigo, e que ninguém de lá podia sair assim a dois tirões... sem falar nos balázios e nos lançaços - que isso era a boche! -, quando inteirou-se de tudo, mandou à Vila o capataz para vir acompanhando o sobrinho, a quem escreveu uma carta grande, fechada com mais obreias do que tragos de vinho tem um copo de missa, de padre gordo!...

Oral... daí a uns dias o ilhéu batia na estância, de carretinha e com um carregamento de cousas. E já começaram a aferventar o casamento. Imagine vancê o cerco em que se viu a pobre da sia Talapa! Eram os pais dela; a parentalha; vizinhos velhos; cancheiros da estância... tudo a dizer, a gabar, a achar até bonito o ilhéu...

E já foram alinhavando papéis, e preparos de vestidos e doçarias, perus na engorda, leitões no chiqueiro, terneiras pros churrascos.

Uma negra que havia lhe dado de mamar era a única criatura que chorava com a moça… mas chorava escondido, a pobre, por medo do laço... De noite, fechadas no quarto as duas abraçavam-se, rezavam e só diziam, no consolo duma esperança:

- Mãe santíssima... valei-me!...

- Nossa Senhora!… manda nhô Costinha aparecer!...

Afinal chegou o dia marcado. Veio o vigário com o sancristão e gentama de toda parte; não digo bem: o velho Costa lunanco nem a família não foram convidados.

Mas assunte vancê como se passaram as cousas.

Pela Vila tinha justamente passado a meia rédea um chasque para as forças em que servia o cadete. O chasque era rapaz novo, alegre, mui relacionado por aqueles meios; enquanto mudava de cavalo tinha ido tomar um refresco no negócio do ilhéu, e aí, pela gente da casa soube a nova do casamento, do dia certo, dos preparos da jantarola, enfim, de tudo, tudo, pelo miúdo. E mal que apertou os pelegos, montou, - e se foi - que o rei manda marchar, não manda chover.

Quando bateu no acampamento e entregou os ofícios que levava, procurou a rapaziada conhecida e, portanto, o Costinha, para dar a novidade do casório da sia Talapa com o primo.

Como touro de banhado laçado a meia espalda, assim ficou o moço. Amassou o sombreiro sobre a orelha, afivelou a espada e gritou:

- Me vou, e é já! Reduzo!

- Pronto!

- Encilha os nossos cavalos! Já! Vamos embora!... Deserto!... Hei de lonquear aquele galego ordinário!... Deserto... Deserto... acabou-se!

- Encilho? - reperguntou o chiru.

- Sim, coos diabos! - berrou o desesperado.

Neste momento o clarim deu toque de alarma… e como pra acoquinar o pobre, um cabo veio a toda pressa chamar o Costinha, de ordem do comandante... Veja vancê que entaladela!

Pelos altos das coxilhas avistava-se uma partida do inimigo. O comandante então deu ao Costinha uma prova de confiança, pois encarregou-o de uma carga sobre um flanco dos atacantes...

- E agora?!...

- Filho de tigre é pintado!…

Diante do dever o moço engoliu a tristeza, e mesmo não quis se desmoralizar desertando justamente naquela hora de peleia.

Mas coriscou-lhe um pensamento... e logo montou, formou a gente, tomou a testa do piquete e disse ao Reduzo.

- Procura-me, que te preciso!...

Desembainhou a espada, deu um viva a Sua Majestade! - e despencou-se, firme nos estribos, com o chapéu caído pra trás, sobre um ombro, preso pelo barbicacho. E a gauchada, reboleando as lanças, carregou, a gritos, fazendo tremer a terra e o ar.

O Reduzo, de pura pabulagem, atou a cola do pingo e logo riscou, escaramuçando, na culatra dos companheiros.

E foi mesmo no meio da carga, entre gritos, juras, palavrões, tiros, pontaços de espadas e coriscos de lanças, pechadas de cavalos, foi nesse berzabum do entrevero que o Costinha industriou o chiru;

- Tu, sai já; vai direito lá em casa, mas não chegues. A Talapa, depois d’amanhã, de noite, se casa, à força, com o ilhéu… Tu, mata cavalos, boleia e monta os que precisares… arrebenta-te, mas chega antes do casamento... Não digas a ninguém, nem lá em casa, que me viste, nem que sabes de mim... Mas vai ao velho Severo, mete-te lá, custe o que custar e acha jeito de dizer, que ela ouça, que o coco verde manda novas à melancia... Ela entende. Compreendes?... Eu sou o Coco Verde, ela é a Melancia... Só nós sabemos isso... e tu, agora. Vai. Tu vais adiante; logo mais eu sigo, se não morrer neste revira. Vai, Reduzo!... Coco verde... Melancia... Não esqueças... Abaixa-te!... abai!...

E enquanto o chiru se deitava no pescoço do cavalo e uma lança de três pontas escorregava-lhe por cima do espinhaço, o Costinha, com um tiro de pistola derrubava um gadelhudo lanceador… e continuava o sermão:

- Olha, não brigues… pra não perder tempo... Olha… é depois d’amanhã... Se dormires, se comeres no caminho, não chegas a tempo!... Sempre a meia rédea, Reduzo! Eu não posso desertar agora... Senão, eu ia... Vou logo… amanhã. Tu, agora!... já sabes:

- Coco verde manda novas a Melancia... Diz como quem não quer... Só ela entende… O que é preciso é que ela ouça...

- Acuda aquele, patrãozinho, que eu tempero estes!…

Isso disse o chiru e esporeando o flete atirou-o contra dois desalmados que iam degolar um ferido… emborcou-os a patadas e logo gritou ao moço:

- Já sei tudo! Deus ajude! Lá te espero!...

E riscou campo fora, rumo da querência, ainda batendo na boca, num pouco caso dos castelhanos!

E bateu na marca!... Boleou e mudou cavalos alheios, pediu outros no caminho, tomou um, à força, largou os arreios porque rebentou-se-lhe o travessão e não tinha tempo para remendá-lo, mas com duas braças de sol, na tarde do casamento, veio dar no velho Severo, em pêlo - pelego, e freio -, as boleadeiras na cintura, o facão atravessado no cinto, e sem mais nada; moído, entransilhado, estrompado, varado de fome, com sono, com frio, mas ainda de olho vivo e língua pronta, contando uma rodela mui deslavada..., que vinha de casa, andava campeando umas tambeiras... e uma vaca mocha, que não apareciam no gado manso, havia dois dias!...

O velho Severo pasmou...

- Uê! chiru!... Pois tu não tinhas ido com o seu Costinha?

- Eu?... Não senhor, patrão! Fui só levar uns cavalos até o meio do caminho e dei volta. Diz que lá bala é como chuva… e lança, como roseta!... Não vê!... E dele mesmo, nem notícia nenhuma, té agora... Vancê dá licença de campear os alimais?

- Deixa isso pra amanhã. Hoje estamos de festa. Fica aí, pra tomares um copo de vinho e comeres uns doces à saúde do noivado... Vai pra o galpão...

- Sim, senhor patrão: Deus lhe pague. Eu hei de fazer uma saúde, sim senhor...

- Pois sim, pois sim; vai!

O sorro entrou no galinheiro...

Quando apeou-se, o chiru estava de pernas duras; agüentou-se como um tigre, pra não dormir.

Daí a pouco pegaram a jantarola. O casamento ia ser de noite, depois da comida; depois, baile. Havia uns quantos cantadores, e violas; dava pra dançar a tirana, o anu e a mancada na casa-grande e no terreiro.

O Reduzo foi se fazendo de sancho rengo... e foi se encostando pra janela da sala de jantar..., e por ali foi comendo e bebendo, como soldado estradeiro, que não se aperta...

A noiva estava como um defunto: branca, esverdeada, de olhos fundos e chorando sem alívio; a negra ama, atrás dela, muito retinta, só mexia o branco dos olhos, parecia uma alma penada, do purgatório...

O ilhéu é que estava solto!...

Parecia que tinha bicho-carpinteiro, o desgraçado!...

Só estava era meio vendido com o jeito da noiva, mas fingia não se dar por achado, o velhaco...

Um convidado levantou-se e fez uma saúde; depois outro, e outro e outro; cada um fazia o seu verso. Havia risadas, o noivo agradecia..., a noiva chorava.

Os convidados aplaudiam; moças também botaram versos; os rapazes respondiam; foi se virando tudo numa alegria geral.

Nisto o capataz da estância chegou à porta e pediu licença pra oferecer um verso à saúde do noivado, e botou uma décima bem bonita. Outros, posteiros e agregados, também.

Nesse entrementes o velho Severo perguntou:

- Que é do Reduzo? Oh! Chiru?...

- Pronto, patrão, respondeu o caboclo.

- Então?… e a saúde prometida?

- Já vai, sim senhor!

E amontoando-se para a mesa, bem junto dos que estavam sentados, frente a frente dos noivos, olhando pra sia Talapa o chiru levantou o copo e disse:

“Eu venho de lá bem longe,

Da banda do Pau Fincado:
Melancia, Coco Verde
Te manda muito recado!”

E enquanto todos se riram e batiam palmas, enquanto o ilhéu se arreganhava numa gargalhada gostosa, e o velho Severo, mui jocoso, gritava - gostei, chiru! outra vez! - e enquanto se fazia uma paradita no barulho, a noiva se punha em pé como uma mola, e com uma mão grudada no braço da ama, já não chorava, tinha um cobreado no rosto e os olhos luziam como duas estrelas pretas!… Lindaça ficou, como uma Nossa Senhora! O Reduzo aproveitou o soflagrante e soltou outro verso:

“Na polvadeira da estrada

O teu amor vem da guerra...
Melancia desbotada!...
Coco Verde está na terra!…”

Amigo! Nem lhe sei contar o resto!... A noiva atirou-se pra trás e pegou aos gritos.

A gente da mesa levantou-se toda; o mulherio correu, pra acudir... O padre-vigário benzia pra os lados...

O ilhéu olhou para o Reduzo, viu-lhe o facão atravessado… e tomado dum mau espírito, gritou furioso e escarlate:

- Foi esse negro, com tanta arma, que estarreceu a menina!

Um que estava perto do chiru gritou-lhe na cara:

- Que desaforo é este?...

O Reduzo - cuê-pucha! índio dente-seco! - largou-lhe os cinco mandamentos, de em cheio!

Porém caíram-lhe em cima; foi uma desgraceira!

O ilhéu, do outro lado da mesa sampou-lhe com uma botija de bebida, que acertou bem entre o queixo e o ouvido do chiru...

Fechou o salseiro, nem se sabia bem com quem.

Nessa inferneira o Reduzo mergulhou por baixo da mesa e quando surdiu, foi para arriar o braço, dar uma volta na traíra e reiunar o ilhéu…

E antes que o picassem - que o picavam! - pulou por uma janela e se foi ao galpão onde montou no primeiro matungo que encontrou e abriu os panos!…

O resto é simples: passados dois dias chegava o Costinha, como bagual com couro na cola; e apresentou-se ao velho Severo, pedindo a mão da moça. O velho teve de desembuchar, contar o compromisso em que estava e que até havia se demorado o casamento por causa dum estropício mui bruto, que tinha havido... O Costinha não quis saber de nada… armou banzé...; veio a moça à fala...

Vancê imagina: rebentou o laço pra mais de quatro...

Pra não afrontar o velho Severo, o Reduzo teve de andar escondido. Tempos depois do Costinha já casado, então o chiru tomou conta dum posto; depois passou a capataz.

Era o confiança da casa.

Veja vancê que artes de namorados: Melancia… Coco Verde!…




(Ilustração: Iberê Camargo)


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

TELHA DE VIDRO, de Rachel de Queiroz







Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...


A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...


Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.


Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!



(Ilustração: Guy Baron - nu au vitrail)