terça-feira, 31 de maio de 2011

KING KONG X MONA LISA, de Olga Savary








(para Zélia e Ariano Suassuna)


A primeira coisa que dele teve foi a ameaça de sua morte. Uma ameaça vinda através de seus guinchos, gaitadas, pios, rugidos, uivos, assobios, risadas, toda a algaravia por ele usada para a sedução. Era possível um ser tão vital com esta obsessão pela morte? 

Ela acha que o amou desde esse primeiro momento, embora não aceitando esse amor, esse seu sim à vida ao saber-lhe a ex-futura morte, e esse se dar tanto, o se dar todo, até demais. Era possível, tão exclusivista, amar um ser se dando assim, tão selvagem, tão espontâneo, se dando a todos: um ciúme a crucificar. Imaginou ser ele o mar para não sofrer. Por ser o mar de todos e, assim, que outro jeito teria senão aceitar um tal requintado primitivo. 

Um amor sem quase nada de particular, forte e violento mas quase impessoal, algo de amplo, sem espaço ou tempo, como por um mito ou coisa arquetípica. Amor seria isso? Então era isso amar? Amor não era. Era paixão. A paixão não lhe era estranha, antes velha companheira. Mas a paixão com tal violência a assustava um pouco, como antes o medo da vida, ainda que não mais agora. E a paixão era um tanto trágica. Assim a aceitava: com esforço, com dor, mas também com gozo. 

Caça ou caçador, quem era? Aparentemente era ele o caçador, com tantos meneios mais a sedução, a estranha tensão de não poder passar tempo sem tocá-la - dizia ele - saber-lhe levemente a pele, a quentura e o morno da carne pressionada para mais tarde conhecer coisas mais rudes e tensas. Era ele o caçador. Mas quem lançou senão ela o que deflagrou tudo, uma distraída provocação sensual sobre as coxas de Pelé? 

Nem ela soube se teria sido intencional, mas falou assim, de como eram belas as coxas de Pelé, o que o intrigou. Como tão grande timidez deixava escapar tal insolência? 

Não se teria sabido o esplêndido animal que era à falta deste esplêndido animal que via agora e que, à primeira vista, a ameaçava e se ameaçava para ela com a proximidade passada de sua morte. E essa morte não vista, apenas entrevista, já passada, era a grande ameaça para que ela conhecesse sua real vida e quem ela realmente era a partir do conhecimento dessa fera. 

King Kong - ela pensou - vou chamá-lo assim, assim vou chamar a fera que me dará vida, como uma nova mãe-terra, a força animal até então desconhecida, a força primeira que, tomada nos dentes como o seu bocado primeiro, a faria florescer e aceitar a vida com seus jogos, seus acertos e armadilhas. O perigo? É, era o perigo. Mas também a vida, a vida com suas espadas, seu cheiro acre e álacre, seu bafo feroz e comovente. 

De uma vez que lhe dissera o nome que secretamente lhe dava, houve o espanto: mas não combina com você, que é minha Mona Lisa. Ela sorriu sem dizer nada, pensando: mas é de você que falo. Como fazê-lo entender? E era preciso? Uma fera é uma fera - e pronto. Nada de fazê-lo entender que ele é King Kong. Claro que era uma insolência. Só que agora fazia parte do jogo. Era tão fácil perceber. Não tinha ele só a maciez da polpa, também possuía as unhas. Mais que isso: as garras. A boca não era só um fruto do mato, toda polpa, úmida e abrangente, toda língua. Era também dentes, as presas afiadas, esplêndidas mandíbulas. 

Um ser amorável essa fera, mas também de aguda crueldade e um tanto sádico, seu corpo marcado a fogo (o da paixão) como as reses que têm dono: dois K ardiam-lhe na anca. Poderia ela amar uma tal mistura de prazer e de perigo? 

Mas era já impossível retroceder. Seduzida pela fera, já não podia se reconquistar a si mesma. Agora que sabia seu corpo através do outro, seu espelho. Era a guerra, a paz dos abismos e da beira do desfiladeiro dos que nascem do furor da paixão, do lamber de sua língua rubra. King Kong: o êxtase e o horror. Rodeado de mandacarus, de cactos.



(O olhar dourado do abismo)




(Ilustração:Anthony Christian - mona)


domingo, 29 de maio de 2011

AVAL, de Elza Beatriz










Antes

quando as casas

tinham varandas

e a infância corria

entre jardim e quintal

viver, acreditem,

era bastante normal

e ser poeta não era

esse ofício mortal

de extrair uma flor

de uma pedra

de sal.


(Silêncio Armado)


(Ilustração: Ada Breedveld)



sexta-feira, 27 de maio de 2011

A CHARNECA, de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)








Então, na esperança vã de me livrar do tormento de amar-te, adormeci um pouco. E se digo vã, amor, é porque logo fiquei a sonhar contigo, a te dizer quanto vai em mim de amor, doce, terno, perdido amor às vezes; candente, nervoso, incontido amor, tantas vezes.

Oh os sonhos de amor, querida! Nele eras tão outra, tão Julieta, tão Isolda, tão Marília. E eu tão o Romeu do segundo ato, tão o Tristão da primeira ária, tão o Dirceu de antes do desterro! 

Vinhas lentamente para os meus braços ansiosos, terna e eterna, simples e definitiva, como o barco que parte para o naufrágio. Tu, mulher que já caminhavas para mim, antes mesmo do dia em que te conheci. Para mim, que vivia na certeza de que de algum lugar virias, imponderável, como soem ser os destinos do amor. 

No sonho, sorríamos, no sonho éramos nós dois para sempre e um dia. Tu, esquecida de tantas ingratidões, eras o mais puro dos pecados. Eu, vivendo o momento em que o homem prova a si mesmo ter um pouco de eternidade, olvidava antigos dissabores, as noites sofridas, as lágrimas caídas, a dor. 

E tão glorioso fiquei, que em mim couberam todas as glórias, abateram-se sobre minha cabeça todos os hinos, e se Beethoven eu fosse, passaria, num átimo, da "Patética" à "Heroica". Que incontida alegria! Desprendi-me de ti e saí a correr pela charneca. 

Na verdade eu nem sei o que é charneca, mas isto fica bacana pra burro, em romance inglês. 




(Primo Altamirando e Elas)


(Ilustração: Helen M. Turner)




quinta-feira, 26 de maio de 2011

SILENCE / SILÊNCIO, de Marianne Moore








My father used to say,

“Superior people never make long visits,

have to be shown Longfellow’s grave

or the glass flowers at Harvard.

Self-reliant like the cat –

that takes its prey to privacy,

the mouse’s limp tail banging lile a shoelace from its mouth –

they sometime enjoy solitude,

and can be robbed of speech

by speech which has delighted them.

The deepest feeling always shows itself in silence;

not in silence, but restraint”;

Nor was he insincere in saying, “Make my house your inn”.

Inns are not residences.



Tradução de José Antônio Arantes:


Meu pai costumava dizer:

“Gente superior nunca faz visitas demoradas,

nem a ela tem que se mostrar o túmulo de Longfellow

as as flores de vidro de Harvard.

Confiante em si mesma feito o gato –

que carrega a presa para um canto,

a frouxa cauda do rato a pender da boca feito cordão de sapato -,

de vez em q uando sente prazer na solidão,

e pode ser privada da fala

por fala que a tenha encantado.

O sentimento mais profundo sempre se mostra em silêncio;

não em silêncio, mas contenção”.

Nem era insincero ao dizer: “Faça de minha casa sua pousada”.

Pousadas não são residências.




(Poemas)




(Ilustração: Adela Leibowitz – I dreamt I went to Manderley again)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

MARÉ DA OXFORD STREET, de Virginia Woolf






Lá nas docas vêem-se as coisas em sua crueza, seu volume, sua enormidade. Aqui, em Oxford Street, elas se mostram refinadas e transformadas. Os enormes barris de tabaco úmido foram enrolados em inúmeros cigarros bem feitos envoltos em papel prateado. Os corpulentos fardos de lã estão tecidos em forma de finos coletes e meias macias. A gordura da lã espessa da ovelha tornou-se creme perfumado para peles delicadas. E os que compram e os que vendem sofreram a mesma mudança citadina. Lépida, amaneirada, em casacos pretos, em vestidos de cetim, a forma humana adaptou-se tanto quanto o produto animal. Em vez de transportar e içar, ela abre destramente gavetas, desenrola seda nos balcões, mede e corta com fitas métricas e tesouras.


Não é preciso dizer que Oxford Street não é a rua mais distinta de Londres. Sabe-se que os moralistas apontam um dedo de escárnio aos que compram ali, e eles têm apoio dos dândis. A moda tem nichos secretos próximos a Hannover Square, nos arredores de Bond Street, para onde recua discretamente a fim de realizar seus ritos mais sublimes. Em Oxford Street, há pechinchas demais, liquidações demais, artigos demais remarcados para um shilling e 11 pence quando ainda na semana passada custavam dois shillings e seis pence. A compra e a venda são espalhafatosas e estridentes. Mas enquanto se perambula na direção do poente - pois entre as luzes artificiais, montes de seda e ônibus faiscantes, um pôr do sol perpétuo parece pairar sobre Marble Arch —, o espalhafato e colorido vulgar da grande maré da Oxford Street têm seu fascínio. É como o leito de seixos de um rio cujas pedras são eternamente lavadas por uma corrente translúcida. Tudo brilha e cintila. O primeiro dia da primavera faz surgir carrinhos de mão cheios de tulipas, violetas, narcisos em camadas brilhantes. Os frágeis dirigíveis redemoinham vagamente através da corrente do tráfego. Numa esquina, mágicos andrajosos fazem pedaços de papel colorido expandir-se dentro de copos de vidro em rígidas florestas com uma vegetação de tonalidades esplêndidas — um subaquático jardim de flores. Em outra, tartarugas descansam sobre a relva. As mais lentas e contemplativas das criaturas exibem suas atividades suaves em 30 ou 60 centímetros de calçada, ciumentamente protegidas dos pés que passam. Infere-se que o desejo do homem pela tartaruga, como o desejo da mariposa pela estrela, é um elemento constante da natureza humana. Entretanto, ver uma mulher parar e acrescentar uma tartaruga a seu monte de pacotes talvez seja a visão mais rua que olhos humanos podem divisar.



Levando-se tudo em conta — os leilões, os carrinhos de mão, os modismos, o brilho — não se pode dizer que Oxford Street tenha uma personalidade refinada. É um solo de procriação, uma usina de sensações. Da calçada parecem brotar horríveis tragédias; os divórcios de atrizes, os suicídios de milionários ocorrem ali com uma frequência desconhecida nas calçadas mais austeras das áreas residenciais. As notícias mudam mais rapidamente do que em qualquer outra parte de Londres. A multidão ondulante parece apagar a tinta dos cartazes, consumi-los mais e exigir suplementos frescos de segundas edições com mais rapidez do que em outra parte. A mente se torna uma lousa perpetuamente mutante na forma, nos sons e nos movimentos; e Oxford Street desenrola nela uma contínua fita de visões, sons e movimentos mutáveis. Os pacotes se chocam contra superfícies, batem; os ônibus roçam o meio-fio; o clangor de toda uma banda de metais a pleno vapor diminui até uma delicada réstia de som. Ônibus, caminhonetes, carros, carrinhos de mão passam como um rio, divididos em peças do quebra-cabeça de um quadro; o braço branco se ergue; o quebra-cabeça torna-se mais denso, coagula, para; o braço branco afunda e o quebra-cabeça escorre de novo, riscado de veios, torto, em balbúrdia, em perpétua corrida e desordem. As peças do quebra-cabeça nunca se ajustam, por mais que olhemos.



Nas margens desse rio de rodas em movimento nossos modernos aristocratas construíram palácios, exatamente como outrora os duques de Somerset e Northumberland, os condes de Dorset e Salisbury margeando o Strand com suas majestosas mansões. As diferentes casas das grandes firmas testemunham a coragem, a iniciativa e a audácia de seus criadores da mesma forma que as grandes casas de Cavendish e Percy atestam tais qualidades em algum condado distante. Dos nossos mercadores descenderão os Cavendish e os Percy do futuro. Na verdade, os grão senhores da Oxford Street são tão magnânimos quanto qualquer duque ou conde que espalhasse ouro ou distribuísse pães aos pobres em seus portões. Apenas sua generosidade tem uma forma diferente; tem a maneira da excitação, da exibição, do entretenimento, de janelas iluminadas à noite, de bandeiras tremulando de dia. Eles nos dão as últimas notícias por nada. A música flui livre de suas salas de banquete. Não é preciso gastar mais de um shilling e 11 pence para desfrutar todo o abrigo que altos e arejados salões fornecem; e a macia lanugem dos carpetes, o luxo de elevadores e o fulgor dos tecidos, tapetes e prataria. Percy e Cavendish não poderiam dar mais. Tais presentes, é claro, têm um objetivo: atrair o shilling e 11 pence de nossos bolsos tão naturalmente quanto possível; mas os Percy e os Cavendish também não eram generosos sem a esperança de algum retorno, fosse a dedicatória de um poeta ou o voto de um fazendeiro. E tanto os velhos lordes quanto os novos deram uma contribuição considerável ao embelezamento e ao entretenimento da vida humana.



Contudo, não se pode negar que esses palácios da Oxford Street são moradias frágeis — mais pátios do que locais de habitação. Tem-se consciência de que se anda numa faixa de bosque sobre vigas de aço, e que a parede externa, apesar de toda a rebuscada ornamentação de pedra, só tem a espessura suficiente para suportar a força do vento. Um vigoroso cutucão com a ponta de um guarda-chuva pode muito bem infligir um dano irreparável ao tecido. Muitos chalés do campo construídos para abrigar lavradores ou moleiros no reino de Elizabeth I estarão ainda de pé quando tais palácios desmoronarem em poeira. As paredes do velho chalé, com suas vigas de carvalho e suas camadas de tijolos honestos solidamente cimentados uns nos outros, ainda oferecem uma robusta resistência às perfurações e buracos que tentam introduzir ali as modernas bênçãos da eletricidade. Mas em qualquer dia da semana pode-se ver Oxford Street desaparecendo na pancadinha da picareta de um trabalhador enquanto ele se equilibra perigosamente num pináculo empoeirado derrubando paredes e fachadas tão levemente como se fossem feitas de cartolina amarela e cubos de açúcar.



E mais uma vez os moralistas escarnecem. Pois essa finura, essa pedra de papel e tijolos de pó refletem, dizem eles, a leviandade, a ostentação, a urgência e a irresponsabilidade de nossa época. No entanto, mesmo assim parecem tão equivocados em seu escárnio como se pedíssemos ao lírio que fosse forjado em bronze, ou à margarida que se abrisse em pétalas de imperecível esmalte. O encanto da Londres moderna é ser construída não para durar, é ser construída para passar. Sua fragilidade, sua transparência, seus ornamentos de estuque colorido causam um prazer diferente e atingem um objetivo diferente do desejado e tentado pelos velhos construtores e seus patronos — a nobreza da Inglaterra. Seu orgulho exigiu a ilusão da permanência. O nosso, pelo contrário, parece deleitar-se em provar que podemos tornar a pedra e o tijolo tão transitórios quanto nossos próprios desejos. Não construímos para nossos descendentes, que podem viver nas nuvens ou na terra, mas para nós mesmos e nossas necessidades. Derrubamos e reconstruímos enquanto esperamos ser derrubados e reconstruídos. É um impulso provocador da criação e da fertilidade. A descoberta é estimulada e a invenção fica em alerta.



Os palácios de Oxford Street ignoram o que parecia bom para os gregos, para o elisabetano, para o nobre do século XVIII; estão absolutamente conscientes de que, se não conseguirem planejar uma arquitetura que exiba o estojo de maquilagem, a túnica de Paris, as meias baratas e o jarro de sais de banho com perfeição, seus palácios, mansões, automóveis e as pequenas vilas em Croydon e Surbiton — onde seus auxiliares moram, não tão mal afinal de contas, com gramofone, rádio e dinheiro para gastar nos cinemas — tudo isso será varrido pela ruína. Em consequência disso, esticam a pedra de um modo fantástico; amassam e amalgamam numa alucinada confusão os estilos da Grécia, Egito, Itália, América; e, atrevidamente, buscam um ar de prodigalidade e opulência, esforçando-se para convencer a multidão de que ali, uma incessante beleza, sempre fresca, sempre nova, muito barata e ao alcance de todos, borbulha de um poço inexaurível a cada dia da semana. A mera idéia da idade, da solidez, da permanência através dos séculos é detestável para Oxford Street.



Assim, se o moralista decide dar o passeio vespertino ao longo dessa via, precisa sintonizar sua personalidade a fim de captar com ela algumas vozes esquisitas e incongruentes. Acima da algazarra da caminhonete e do ônibus, podemos ouvi-las gritando. Deus sabe, diz o homem que vende tartarugas, que meu braço dói; minha chance de vender uma tartaruga é pequena; mas coragem!, pode aparecer um comprador; minha cama esta noite depende disso; portanto preciso continuar, tão lentamente quanto a polícia permitir, transportando tartarugas pela Oxford Street da aurora ao crepúsculo. É verdade, diz o grande comerciante, não estou pensando em educar as massas para um mais alto padrão de sensibilidade estética. Fico esgotado de pensar como posso exibir meus bens com o mínimo de desperdício e o máximo de eficácia. Dragões verdes no alto das colunas coríntias podem ajudar; vamos tentar. Admito, diz a mulher de classe média, que me retardo, olho, barganho, deprecio e reviro cesta após cesta de sobras hora a hora. Meus olhos cintilam de modo inconveniente, eu sei, e agarro e cutuco com uma desagradável cobiça. Mas meu marido é escriturário num banco; tenho apenas 15 libras por ano para me vestir; então, venho aqui para me retardar e passar o tempo e olhar, se puder, até que ponto estão bem vestidas minhas vizinhas. Sou uma ladra, diz uma senhora dessa profissão, e mulher de vida fácil também. Mas é preciso muita coragem para roubar uma bolsa de um balcão quando a cliente não está olhando; e depois de tudo, pode-se encontrar na bolsa apenas óculos e velhas passagens de ônibus. Bem, vamos lá!



Mil dessas vozes estão sempre gritando pela Oxford Street. Todas tensas, todas reais, todas urradas por seus donos pela pressão de ganhar a vida, encontrar um leito, manter-se de alguma forma à tona na superfície descuidada e sem remorso da rua. E mesmo um moralista, que imaginamos ser alguém com bom saldo no banco, já que pode passar a tarde sonhando; mesmo um moralista reconhecerá que essa rua espalhafatosa, alvoroçada e vulgar lembra-nos que a vida é uma luta; que toda construção é perecível; que toda exibição é vaidade. Donde podemos concluir - pelo menos até que algum astuto lojista adote a ideia e abra celas para pensadores solitários forradas de pelúcia verde, com vaga-lumes automáticos e um punhado de mariposas genuínas para induzir o pensamento e a reflexão — será inútil tentar chegar a uma conclusão em Oxford Street.



(Cenas londrinas, tradução de Myriam Campelo)



(Ilustração:moda feminina – Oxford Street 1892 - autor não identificado)





sábado, 21 de maio de 2011

VOZ DOS ANIMAIS, de Francisca Júlia









O peru, em meio à bulha

De outras aves em concerto,

Como faz de leque aberto?

— Grulha.


Como faz o pinto, em dia

De chuva, quando se interna

Debaixo da asa materna?

— Pia.


Enquanto alegre passeia

Girando em torno do ninho,

Como faz o passarinho?

— Gorjeia.



E de intervalo em intervalo

Quando a manhã se levanta,

No quintal que faz o galo?

— Canta.


Quando a galinha deseja

Chamar os pintos que aninha,

Como é que faz a galinha?

— Cacareja.


A rã quando a noite baixa,

Que faz ela a toda hora

Dentre os limos em que mora?

— Coaxa.


E quando as narinas incha,

Cheio de gosto e regalo,

Como é que faz o cavalo?

— Rincha.


Que faz o gato, que espia

Uma terrina de sopa

Que fumega sobre a copa?

— Mia.


Com a barriga farta e cheia,

Que faz o burrinho quando

Se está na grama espojando?

— Orneia.


Para o sinal de rebate,

Aviso, alarme ou socorro,

Como é que faz o cachorro?

— Late.


Para que as mágoas embale

Quando tresmalha, sozinha,

Que faz a branca ovelhinha?

— Bale.


Em fugir quando porfia

À garra e aos dentes do gato.

Como faz o pobre rato?

— Chia.


De pé a boca descerra

E alta levanta a cabeça,

Que faz a cabra travessa?

— Berra.


Cheia a boca de babuge

Do milho bom que rumina,

Que faz o boi na campina?

— Muge.


A pomba que grãos debulha.

Como faz, batendo as asas

Sobre o telhado das casas?

— Arrulha.


A voz tremida do grilo

Que vive oculto na grama,

A trilar, como se chama?

— Trilo.


Mas escravos das paixões

Que os fazem bons ou ferozes,

Os homens têm suas vozes

Conforme as ocasiões.



(Ilustração: Henri Julien Rousseau – the dream)



quinta-feira, 19 de maio de 2011

I LOVE MY HUSBAND, de Nélida Piñon







Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.

Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranquilo, capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto.

Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis.

A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão. Eu peço então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento.

O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no convívio comum.

Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranquilo, gerisse o futuro. Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas.

Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A idéia de que eu não podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal?

Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma face que Ihe é estranha, que ele cobriu de mistério para não me ter inteira?

De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo.

Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa?

Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando as quedas d'água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das heranças.

O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te?

Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte.

Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar.

Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos.

Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.

Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude.

Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre. Eu não sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher.

Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes.

Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As mãos do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos tão felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma família.

Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento.

Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos, multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos.

Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde. Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa.

Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu arrebato.

Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre mergulhada.

Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude. É gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que no fim do dia já não sei quantos anos tenho.

E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente apreciados. Às sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado estou à sua espera. E quando a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara no jornal, no mundo só nós existimos.

Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.



(O Calor das Coisas)



(Ilustração: Paul McDevitt)




domingo, 15 de maio de 2011

O BICHO, de Manuel Bandeira











Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.


Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.


O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Na era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.






(Ilustração: Felix Nussbaum – campo)


quarta-feira, 11 de maio de 2011

CEGO E AMIGO GEDEÃO À BEIRA DA ESTRADA, de Moacyr Scliar








— Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo Gedeão?


— Não, Cego. Foi um Simca Tufão.


— Um Simca Tufão? ... Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo barulho da máquina. 

Este que passou agora não foi um Ford?


— Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho.


— Um caminhão Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que não passa por aqui um caminhão Mercedinho. Grande caminhão. Forte. Estável nas curvas. Conheço o Mercedinho de longe... Conheço qualquer carro. Sabe há quanto tempo sento à beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedeão? Doze anos, amigo Gedeão. Doze anos.


É um bocado de tempo, não é, amigo Gedeão? Deu para aprender muita coisa. A respeito de carros, digo. Este que passou não foi um Gordini Teimoso?


— Não, Cego. Foi uma lambreta.


— Uma lambreta... Enganam a gente, estas lambretas. Principalmente quando eles deixam a descarga aberta.


Mas como eu ia dizendo, se há coisa que eu sei fazer é reconhecer automóvel pelo barulho do motor. Também, não é para menos: anos e anos ouvindo!


Esta habilidade de muito me valeu, em certa ocasião... Este que passou não foi um Mercedinho?


— Não, Cego. Foi o ônibus.


— Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse só pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim.


Minha habilidade já me foi útil. Quer que eu conte, amigo Gedeão? Pois então conto. Ajuda a matar o tempo, não é? Assim o dia termina mais ligeiro. Gosto mais da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia dizendo: há uns anos atrás mataram um homem a uns dois quilômetros daqui. Um fazendeiro muito rico. Mataram com quinze balaços. Este que passou não foi um Galaxie?


— Não. Foi um Volkswagen 1964.


— Ah, um Volkswagen... Bom carro. Muito econômico. E a caixa de mudanças muito boa. Mas, então, mataram o fazendeiro. Não ouviu falar? Foi um caso muito rumoroso. Quinze balaços! E levaram todo o dinheiro do fazendeiro. Eu, que naquela época já costumava ficar sentado aqui à beira da estrada, ouvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na sexta-feira, o rádio dizia que a polícia nem sabia por onde começar. Este que passou não foi um Candango?


— Não, Cego, não foi um Candango.


— Eu estava certo que era um Candango... Como eu ia contando: na sexta, nem sabiam por onde começar.


Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando, pensando... A gente pensa muito. De modos que fui formando um raciocínio. E achei que devia ajudar a polícia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado que eu tinha uma comunicação a fazer. Mas este agora foi um Candango!


— Não, Cego. Foi um Gordini Teimoso.


— Eu seria capaz de jurar que era um Candango. O delegado demorou a falar comigo. De certo pensou: "Um cego? O que pode ter visto um cego?" Estas bobagens, sabe como é, amigo Gedeão. Mesmo assim, apareceu, porque estavam tão atrapalhados que iriam até falar com uma pedra. Veio o delegado e sentou bem aí onde estás, amigo Gedeão. Este agora foi o ônibus?


— Não, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavão.


— Boa, esta camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava? Ah, sim. Veio o delegado. Perguntei:


"Senhor delegado, a que horas foi cometido o crime?"


— "Mais ou menos às três da tarde, Cego" — respondeu ele. "Então" — disse eu. — "O senhor terá de procurar um Oldsmobile 1927. Este carro tem a surdina furada. Uma vela de ignição funciona mal. Na frente, viajava um homem muito gordo. Atrás, tenho certeza, mas iam talvez duas ou três pessoas." O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto, amigo?" — era só o que ele perguntava. Este que passou não foi um DKW?


— Não, Cego. Foi um Volkswagen.


— Sim. O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto?" — "Ora, delegado" — respondi. — "Há anos que sento aqui à beira da estrada ouvindo automóveis passar. Conheço qualquer carro. Sei mais: quando o motor está mal, quando há muito peso na frente, quando há gente no banco de trás. Este carro passou para lá às quinze para as três; e voltou para a cidade às três e quinze." — "Como é que tu sabias das horas?" — perguntou o delegado. — "Ora, delegado"— respondi. — "Se há coisa que eu sei — além de reconhecer os carros pelo barulho do motor — é calcular as horas pela altura do sol." Mesmo duvidando, o delegado foi... Passou um Aero Willys?


— Não, Cego. Foi um Chevrolet.


— O delegado acabou achando o Oldsmobile 1927 com toda a turma dentro. Ficaram tão assombrados que se entregaram sem resistir. O delegado recuperou todo o dinheiro do fazendeiro, e a família me deu uma boa bolada de gratificação. Este que passou foi um Toyota?


— Não, Cego. Foi um Ford 1956.



(Para Gostar de Ler — Volume 9)


(Ilustração: Riccardo Tommsi Ferroni)





segunda-feira, 9 de maio de 2011

ODE ON A GRECIAN URN / ODE SOBRE UMA URNA GREGA / ODE A UMA URNA GREGA , de John Keats









I


Thou still unravish’d bride of quietness,

Thou foster-child of silence and slow time,

Sylvan historian, who canst thus express

A flowery tale more sweetly than our rhyme:

What leaf-fring’d legend haunts about thy shape

Of deities or mortals, or of both,

In Tempe or the dales of Arcady?

What men or gods are these? What maidens loth?

What mad pursuit? What struggle to escape?

What pipes and timbrels? What wild ecstasy?




II


Heard melodies are sweet, but those unheard

Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;

Not to the sensual ear, but, more endear'd,

Pipe to the spirit ditties of no tone:

Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave

Thy song, nor ever can those trees be bare;

Bold lover, never, never canst thou kiss

Though winning near the goal — yet, do not grieve;

She cannot fade, though thou hast not thy bliss,

For ever wilt thou love, and she be fair!



III


Ah, happy, happy boughs! that cannot shed

Your leaves, nor ever bid the Spring adieu;

And, happy melodist, unwearied,

For ever piping songs for ever new;

More happy love! more happy, happy love!

For ever warm and still to be enjoy’d,

For ever panting, and for ever young;

All breathing human passion far above,

That leaves a heart high-sorrowful and cloy’d,

A burning forehead, and a parching tongue.


IV


Who are these coming to the sacrifice?

To what green altar, O mysterious priest,

Lead’st thou that heifer lowing at the skies,

And all her silken flanks with garlands drest?

What little town by river or sea shore,

Or mountain-built with peaceful citadel,

Is emptied of this folk, this pious morn?

And, little town, thy streets for evermore

Will silent be; and not a soul to tell

Why thou art desolate, can e’er return.



V


O Attic shape! Fair attitude! with brede

Of marble men and maidens overwrought,

With forest branches and the trodden weed;

Thou, silent form, dost tease us out of thought

As doth eternity: Cold Pastoral!

When old age shall this generation waste,

Thou shalt remain, in midst of other woe

Than ours, a friend to man, to whom thou say’st,

«Beauty is truth, truth beauty,» — that is all

Ye know on earth, and all ye need to know.





Tradução de Augusto de Campos:





I


Inviolada noiva de quietude e paz,

Filha do tempo lento e da muda harmonia,

Silvestre historiadora que em silêncio dás

Uma lição floral mais doce que a poesia:

Que lenda flor-franjada envolve tua imagem

De homens ou divindades, para sempre errantes.

Na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo?

Que deuses ou mortais? Que virgens vacilantes?

Que louca fuga? Que perseguição sem termo?

Que flautas ou tambores? Que êxtase selvagem?



II


A música seduz. Mas ainda é mais cara

Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom;

Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara,

O supremo saber da música sem som:

Jovem cantor, não há como parar a dança,

A flor não murcha, a árvore não se desnuda;

Amante afoito, se o teu beijo não alcança

A amada meta, não sou eu quem te lamente:

Se não chegas ao fim, ela também não muda,

É sempre jovem e a amarás eternamente.



III


Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor

Das folhas e não teme a fuga da estação;

Ah! feliz melodista, pródigo cantor

Capaz de renovar para sempre a canção;

Ah! amor feliz! Mais que feliz! Feliz amante!

Para sempre a querer fruir, em pleno hausto,

Para sempre a estuar de vida palpitante,

Acima da paixão humana e sua lida

Que deixa o coração desconsolado e exausto,

A fronte incendiada e língua ressequida.



IV


Quem são esses chegando para o sacrifício?

Para que verde altar o sacerdote impele

A rês a caminhar para o solene ofício,

De grinalda vestida a cetinosa pele?

Que aldeia à beira-mar ou junto da nascente

Ou no alto da colina foi despovoar

Nesta manhã de sol a piedosa gente?

Ah, pobre aldeia, só silêncio agora existe

Em tuas ruas, e ninguém virá contar

Por que razão estás abandonada e triste.



V


Ática forma! Altivo porte! em tua trama

Homens de mármore e mulheres emolduras

Como galhos de floresta e palmilhada grama:

Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas

Tal como a eternidade: Fria Pastoral!

Quando a idade apagar toda a atual grandeza,

Tu ficarás, em meio às dores dos demais,

Amiga, a redizer o dístico imortal:

"A beleza é a verdade, a verdade a beleza"

— É tudo o que há para saber, e nada mais.




(Linguaviagem)




Tradução de Jorge de Sena:




Ó tu, ainda inviolada noiva da quietude,

Por silêncio mantida e pelo tempo imerso,

Silvestre narrador, dotado da virtude

De uma história contar mais doce do que verso,

Que engrinaldada lenda assombra a tua traça

De deuses ou mortais, ou deles confundidos,

Em Tempe ou em de Arcádia os verdejantes prados?

Que homens ou deuses são? Quem virginal perpassa?

Quem perseguindo corre? E quem os perseguidos?

Que tamboris e frautas? Que selvagem graça?



Música ouvida é doce, mas inda mais doce

A não ouvida. Assim, é frautas tão silentes,

Tocais não p’ra os sentidos, mas, como se fosse,

Que ao espírito tocais melodias ausentes!

E entre o arvoredo, ó belo jovem, cantarás

Sempre, e as árvores nunca hão-de aparecer nuas.

Amante audacioso, nunca a beijarás,

Embora quase a beijes – não te dês ao pranto:

Ela não envelhece, embora a não possuas,

Para sempre amarás quem terá sempre encanto.



Felizes ramos, ah, que não podeis perder

As folhas, nem direis à Primavera adeus!

E, ó musico feliz, sempre sem esmorecer

Tocando novos sempre os mesmos ritmos teus!

Oh, mais amor feliz, oh, mais feliz amor!

Ardente para sempre, e ser gozado ainda,

Ansioso para sempre, e sempre juvenil:

E longe, longe o humano e apaixonado ardor

Que deixa o coração numa agonia infinda

E a língua pegajosa, e a testa tão febril!



E para o sacrifício quem aqui vem vindo?

Ó misterioso arúspice, a que verdes aras

A vaca tu conduzes, para os céus mugindo

E nos sedosos flancos tais grinaldas raras?

Que pequena cidade à beira-rio ou mar,

Ou cidadela erguida em escarpa alcantilada,

Desta gente em cortejo esvaziada está?

Cidade: as tuas ruas ora vão ficar

Silentes para sempre. E quem volte não há

Para dizer porquê tu foste abandonada.



Ó Ático contorto! Ó elegância! Ó excesso

De homens marmóreos tantos e donzelas castas,

Como de tantos ramos! Ó joia sem preço!

Tu, forma silenciosa, do pensar afastas

Tal como a eternidade: Pastoral gelada!

Quando esta geração no tempo se perder,

Hás-de sobreviver, entre outros infelizes

Que não já nós, amiga do Homem, a quem dizes:

“O Belo é o Vero, o Vero é o Belo”, eis que mais nada

Na terra vós sabeis ou precisais saber.






Tradução de António Simões:



Tu, noiva inviolada da quietude, filha

Adoptiva do silêncio e dias vagarosos,

Rústica historiadora que nos maravilha

Com um conto florido mais doce que os nossos

Versos: que lenda orlada de folhas ‘stá viva

Nessas formas de deuses ou mortais; ou antes

De ambos, nos vales de Arcádia ou em Tempe?

Que homens são, deuses, donzelas relutantes?

Que perseguição furiosa e tentativa

De escapar? Que adufes, flautas, êxtase ardente?



A música ouvida é doce, a não ouvida

Mais doce é; assim, flautas, continuai,

Não pròs ouvidos, mas prà alma agradecida,

Prò silente canto do espírito, tocai.

Jovens sobre as árvores, tua cantilena

Não vai cessar, as árvores não ficam nuas;

Nunca, nunca darás teu beijo, Amante ousado,

Embora estejas próximo; não tenhas pena:

Ela não envelhece; mesmo desditado,

Bela para sempre, a amá-la continuas.



Ah, felizes ramos, nunca vos cairão

Folhas, de Primavera não vos despedis;

Incansável tocador, como seis feliz,

Tocando sempre, e sempre nova a canção;

Amor, mais feliz, mais feliz, feliz amor!

Sempre ardente e eternamente apreciado,

Sempre anelante e que sempre jovem fica;

À simples paixão humana és superior,

À que deixa um coração triste e saciado,

Uma testa escaldante, uma língua seca.



Quem são estes que vão para o sacrifício?

Mist’rioso sacerdote, pra que verdes aras

Vai a novilha que muge pro infinito,

Com seus flancos macios cheios de grinaldas?

Que cidadezinha junto de rio ou costa

Ou montanha, com cidadela sossegada

Nesta pia manhã, ficou sem sua gente?

E, pequena cidade, as ruas para sempre

Estarão silenciosas e ninguém volta

Pra contar por que ficaste despovoada.



Ó forma ática de mármore, lavada

De homens, donzelas, num entrelaçamento

De ramos de árvore e erva pisada;

Silente, nos levas além do pensamento,

Como a eternidade: Fria cena pastoril!

Quando da velhice vêm as horas más,

Continuas, entre os que estão a sofrer,

A ser amiga do homem a quem dirás:

“Beleza é verdade e verdade beleza, -

Tudo o que sabes e precisas de saber.”
 



Tradução de Fernando Guimarães:


Tu, noiva inviolada da tranquilidade

alimentada pelo silêncio e por um lento passado,

rústica historiadora que consegues dizer um conto

florido em mais belo que todos os nossos poemas:

cercada de folhagens, que lenda assombra o teu contorno

de deuses ou mortais, ou de ambos, através de Tempe

ou pelos vales da Arcádia? Que donzelas esquivas?

Quer perseguição desesperada e que luta para fugir?

Que flautas e tamboris? Que êxtase impetuoso?



As canções que ouvimos são suaves, mas atraem-nos ainda mais

as que não escutamos; continuai pois, melodiosas flautas,

o vosso ritmo. Não para o ouvido corpóreo: mais íntimas,

entoai para o nosso espírito as canções silenciosas.

Sob uma árvore, formoso adolescente, não podes deter

o teu canto, nem estas árvores perder as suas folhas.

E tu, amante ousado, nunca conseguirás dar o teu beijo

ainda que permaneças sempre tão próximo; mas não sofras,

ela não há-de envelhecer e, apesar de não possuíres a felicidade,

continuarás a amá-la, olhando para sempre a sua formusura.



Felizes, felizes ramos que não conseguem perder

as folhas, nem jamais exprimir a despedida da Primavera;

e tu, músico ditoso e infatigável,

que todos os dias vens tocar canções sempre novas.

Feliz, feliz amor, amor tão venturoso,

para sempre ardente e calmo para que fosse possível

realizar-se; para sempre anelante e juvenil,

assim ficaste além de toda a paixão humana

que deixa um coração saciado e cheio de tristeza,

uma fronte ardente e mais secos os nossos lábios.



Que cortejo é este que caminha para o sacrifício?

A que ara tão verde, misterioso sacerdote,

conduzes este novilho que lança os seus mugidos

para o céu, e tem cobertos de grinaldas os flancos lustrosos?

Que pequena cidade junto dum rio ou na margem do mar,

ou sobre um monte, com a sua tranquila cidadela,

se despovoou, nesta manhã piedosa?

Conservar-se-ão para sempre, pequena cidade, as tuas ruas

silenciosas; e ninguém, que saiba explicar-nos

porque ficaste assim abandonada, poderá regressar.



Ó curva ática, perfeito equilíbrio – friso

de homens e mulheres inscritos no mármore,

com ramagens dum bosque e ervas que os pés calcaram.

Tu, forma do silêncio, que ficas para além do pensamento

como a eternidade; tu, fria pastoral!

Quando a velhice chegar para consumir a nossa geração,

continuarás a ser, cercada por outras angústias,

a companheira do homem a quem hás-de dizer:

«A beleza é verdade, verdade é beleza.» Apenas isto

é tudo o que sabes e precisas de saber na terra.


(Ilustração: Riccardo Mantovani)