sábado, 19 de novembro de 2011

CABEÇA DE FÓSFORO, de Regina M. A. Machado






E encostavam à terra a boca e a barriga, pedindo para os corpos prazer e harmonia e para o sangue filhos sãos e machos. Cerimonial um tanto enevoado na memória da vila, por demais carregada de naufrágios, emigrações e loucos sem abrigo.


Hélia Correia, Montedemo.


Para minhas amigas gêmeas. 



Fui comentar com a Laurinha que o melhor, quando a gente faz um pum, é acender um fósforo, e ela ficou toda animada. Agora estou preocupada; se ela acende um fósforo, é capaz de pôr fogo na casa. Ainda bem que do jeito que ela é cabeça tonta, daqui a cinco minutos, já esqueceu. Espero. Isso me lembrou quando eu trabalhava numa construtora e fazia traduções, um dia entraram na minha sala duas colegas, e uma delas, a portuguesinha, notou na hora: 

- Hum, cheira bem, parece fogo de agulhas de pinho. 

Achei tão engraçado que contei a história do fósforo e elas não quiseram acreditar. Essa portuguesa morava num daqueles três ou quatro prédios de Botafogo, muito altos e iguais, quase encostados no morro, e ela disse que às vezes ficava tão deprimida com o vento que soprava lá em cima, que se deitava no chão enrolada num cobertor, esperando passar a tristeza. Isso em pleno verão, mas parece que as janelas do prédio não abriam nunca e o ar condicionado ficava ligado e gelado o tempo todo. Com certeza para evitar suicídios. 

Uma vez ela contou que, durante a revolução dos cravos, a família dela, conservadora e medrosa, mudou-se de um velho bairro de Lisboa para uma aldeia e lá ficaram por algum tempo, depois ela se casou e veio com o marido para o Brasil. Da vida dela só fiquei sabendo desse verão na aldeia, que parecia ser a lembrança mais alegre que ela tinha trazido. Contou da matança dos porcos, da partilha entre os vizinhos, das casinhas, do sol na palha dourada e nas montanhas azuis. Minha lembrança dessas histórias que ela contava ficou entre o Sítio do Pica-pau amarelo e A cidade e as serras, mas ainda hoje é uma coisa luminosa e simples, cheia de saudade, como deve ser uma história portuguesa.  

Mas junto com essas, vieram outras lembranças. Essa construtora onde a gente trabalhava fez um projeto para um outro país “do terceiro mundo”, como se dizia, então, e acho que não se diz mais; eu fui para lá durante seis meses, atraída por um bom contrato e para curar uma dor de cotovelo aguda. Uma maluquice total esse projeto de estrada de ferro, calcado num outro feito para a Serra do Mar, cheio de túneis, que os engenheiros locais nunca entenderam para que iam servir em pleno deserto. Também não sei se pagaram o projeto. Eu sei que conheci o deserto e dele me ficou uma lembrança enorme, de silêncio, de noites faiscantes como no tempo em que os homens inventaram constelações olhando os desenhos que as estrelas faziam no céu. De dia fazia calor, mas à noite caía um frio de cristal, seco, luminoso, quase sonoro. 

Talvez por isso tenha ficado tão impressionada com um programa de tv em que o Nicolas Hulot encontra uma tribo nômade e o chefe da tribo explica que nunca poderia morar numa construção dura e fixa, pois, dizia ele, “casa é túmulo para os vivos”. Isso faz anos e eu ainda guardo o impacto dessa frase dita por aquele homem que todas as manhãs punha nas costas dos camelos uma casa leve, feita de bons tecidos de lã que ele montava e desmontava para seguir o rebanho de um oásis para outro, deixando poucas marcas de sua passagem, restos de fogueira, cinzas que o vento leva, pedras que a areia cobre. Meus antepassados nômades acordaram assanhados, me aspirando da minha casa de cimento, apartamento debaixo de apartamento debaixo de apartamento... só de pensar me dá falta de ar. 

Meu deserto aventuroso é um pouco como a aldeia da tradutora portuguesa, um traço luminoso que só ficou como lembrança, rastro de cometa, noite empalidecendo. 

Na estante, minha garrafinha de areia, comprada numa praia da Bahia, com as figuras formadas por areias de cores diferentes, não devia ter sido bem fechada e a areia se mexeu lá dentro, baralhou as figuras, que ficaram difusas e vagas. A paisagem baiana virou uma fluida aquarela de Turner, coqueiros e jegues perderam-se nas brumas geladas da Bretanha, a grande. 

A chama do fósforo tenta lembrar a fogueira na noite gelada, mas só faz bruxulear, desencadeando uma longa caravana – de que? - de lembranças que não chegam a tomar corpo, nem cheiro nem arrepios na pele? Ou de viagens imaginárias, de saudade do que nunca chegou a ser? O cheiro de pinho não basta para reerguer a floresta nem o fósforo alumiar a noite no deserto. 




(Ilustração: Turner - moolight) 
















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