domingo, 31 de maio de 2009

AS DUAS RÃS, de Leo Vaz









Era uma vez duas rãs.



Não tinham nada de extraordinário, que as distinguisse de outras rãs, passadas ou pósteras.

Duas rãs vulgaríssimas.


Mas, para moralizar o nosso conto, vamos supor que elas eram dotadas de caracteres respectivos e que esses caracteres eram avessamente o contrário um do outro. Uma era ativa, esperta e diligente, enquanto a outra não passava de uma acabada mandriona.



As duas ranzinhas iam, porém, vivendo a sua vidoca como Deus era servido; pula que pula, aqui, papa uma mosca, ali, sem maiores sobressaltos, nem preocupações.



Até que um belo dia, não se sabe por que fantásticas razões, resolveram sair a correr mundo.



E saíram.



Abandonando a lagoa natal, entraram, campo afora, aos trancos e arremessos de uma viagem sem destino.



Esqueci-me de avisar que eram duas rãs completamente analfabetas em matéria de geografia.



Assim, a arrancadas tantas, foram dar com os costados à casa de campônio, guardador de cabras. Esse campônio, talvez para me ajudar se algum dia me desse na veneta escrever esta mui exemplar e edificante história, estava amavelmente fora e longe no exato momento em que nossas heroínas chegavam à parta do seu tugúrio.



Ora, uma das pouquíssimas características que as nossas rãs tinham em comum, por um milagre, era a curiosidade. Vai daí, entrando pela cabana a dentro, não se puseram quietinhas e com modos, às espera de seu hospedeiro, como competiria a duas rãs escoteiras. Não! Começaram a esquadrinhar tudo, como se a casa estivesse para alugar.



Foi assim que logo depararam com um velho armário, a um canto, com as duas portas entreabertas. Donde se verá que o tal campônio, se guardava as cabras ao relento e o leito delas em casa, não contava, nesse dia pelo menos, com nenhumas esporádicas visitas...



A curiosidade é um vício que desconhece termos. Vendo o armário, imediata, simultânea e maquinalmente, sem trocar uma só palavra de consulta mútua, idearam as duas intrusas ir verificar de perto o que lá por dentro havia.



Zep!... De um salto ligeiro, ei-las ambas no interior do traste. Uma vez ali, a cócega de tudo querer inspecionar pô-las a remexer o móvel com a sem-cerimônia com que haviam devassado a habitação.



Foi quando começou a catástrofe. Ao espirar para dentro de uma larga e bojuda terrina, com tal açodamento o fizeram que, perdendo o equilíbrio, precipitaram-se, de cabeça, no mar de leite que enchia o vaso!



Então, é que principiou-se a fazer-se notar a diversidade de índoles a que se aludiu atrás. Porque, enquanto a rã dinâmica se pôs logo a pernear e a bracejar como uma doida, na superfície do líquido, para ver se se salvava, a outra, preguiçosa, deixou-se ir para o fundo, desenganada de qualquer recurso, sem mesmo tentar o menor esforço para minorar os riscos da situação.



Todo mundo sabe que um dos melhores processos de fabricar manteiga consiste justamente em agitar o leite, numa terrina, mediante umas perninhas de rã. Era o que estava, talvez, fazendo certo sábio, quando, sem querer e muito espantado, veio a descobrir a eletricidade. Por isso, com a rã laboriosa e perseverante veio acontecer coisa muito parecida. Ao fazer as suas tentativas de salvamento, sem querer foi ela executando inconscientemente a tarefa que a mulher do cabreiro só dali a uma hora pretendia levar a efeito.



Com o que, ao cabo de uns tantos minutos, tinha-se formado à flor do líquido um compacto bloco de nata, o qual, aumentando cada vez mais, foi dificultando os movimentos natatórios da desventurada batráquia. E então, esgotadas as forças e arrefecido o ânimo pugnaz, a pobrezinha disse adeus à vida e ao mundo e mergulhou para todo o sempre.



Ninguém ignora que toda rã que se preza e comporta tem a singular capacidade de conservar-se viva, mesmo quando por longo tempo imersa. De sorte que, ao afundar-se a companheira militante, lá estava a outra, vivinha da silva, no fundo da terrina. Mas embora disposta ao último sacrifício, não lhe aprazia esticar as canelas com outro defunto às costas. Assim, pois, com duas braçadas preguiçosas, resolveu, afinal, subir à tona.



Aí chegando, logo viu a ilhota de manteiga construída pela morta. De um pulo rápido, o único pulo rápido de sua vida, ela galgou o cimo daquele aisbergue.



Estava salva.





(O Misterioso Caso de Ritinha)


(Ilustração: autor não identificado)







Nenhum comentário:

Postar um comentário